Nas relações humanas há muitas situações entre pessoas que não se suportam, mas se mantêm juntas por conveniência. Contudo, se essas pessoas romperem a sua relação, não deixarão de existir separadas e individualmente. Por que a relação está no centro da nossa conversa de hoje? Porque quero falar de uma relação universal, a relação entre capital e trabalho. Trata-se de uma relação constrangedora, mas a sua semelhança com certas relações humanas acaba ai. Se, por acaso, a parte aparentemente fraca da relação – o trabalho – decidir por um rompimento, essa decisão implica a total destruição do capitalismo. Resumindo: o capitalismo só existe enquanto relação. O trabalho pode existir sozinho, mas o capitalismo não existe sem o trabalho. Por mais indesejável que seja aos capitalistas lidar com os trabalhadores, há que suportá-los. Observemos que, ao longo do desenvolvimento capitalista, há inúmeros movimentos no sentido de que os trabalhadores tornem-se cada vez mais distantes, preferencialmente, invisíveis. Há trabalhadores que jamais viram o seu empregador presencialmente. Quem assistiu Roger & Me sabe do que estou falando. Michael Moore passa todo o filme a tentar falar com quem manda na General Motors. Não cabe, aqui e agora, entrar em detalhes sobre as razões que movem essa busca. Interessa-nos demonstrar que, apesar da distância material entre capitalistas e trabalhadores, eles permanecem intrinsecamente ligados, embora o capital e o Estado, sobretudo a partir do neoliberalismo, tentem obscurecer essa relação, sem, no entanto, prescindir de nenhuma das conveniências. Contraditoriamente, a centralidade do trabalho, que é negada pelo discurso capitalista é confirmada pela realidade. Para não me alongar, a centralidade do trabalho está expressa nas contradições que permeiam a pandemia. Só não a vê quem não quer.
Permitam-me um pouco de história.
Na antiguidade, o trabalho era considerado um ato tão inferior, que nem era visto como um ato humano. Era suposto que a reprodução do ser humano resultava de um vínculo entre a Terra e as potências celestes. Mas, como nenhuma sociedade vive sem trabalho, é evidente que alguém era obrigado a trabalhar para garantir a manutenção da vida daqueles “seres superiores”. Cabia aos escravos, essa tarefa penosa e degradante, violência que era justificada pela ideia de que os escravos eram seres sem alma. Tratava-se de uma cruel exploração do homem pelo homem, cuja definição era determinada pelo nascimento. Uns nasciam para serem servidos, outros para servir.
Dando um imenso salto histórico, do escravismo ao feudalismo, durante milhares de anos, muitos produtos tinham apenas valor de uso e os produtores eram também os donos dos meios de produção. Se não eram proprietários privados, com direito a vender ou a transmitir a propriedade a outras pessoas, podiam usufruir dela, por toda a vida, como ocorria com as terras comunais. Os meios de produção eram instrumentos simples, como o arado, a enxada, a foice, o serrote, o martelo etc., em geral pertencentes aos mesmos indivíduos que produziam os bens necessários a si e a outrem, fossem palácios, alimentos, roupas, calçados, móveis etc.
A partir do momento em que houve a separação entre os sujeitos que produzem/trabalham e os meios com os quais produziam, quase tudo tornou-se mercadoria. Em nome do desenvolvimento, as terras foram cercadas e apropriadas pelos que faziam as leis. Os meios de produção, por sua vez, foram incorporando o saber produzido, donde surgiu a maquinaria. Desde então, tanto os objetos produzidos, quanto a força de trabalho tornaram-se mercadorias. Os proprietários dos meios de produção, agora capitalistas, precisavam produzir muitas mercadorias, para aumentar o seu capital e os trabalhadores precisavam vender a sua força de trabalho, para comprar as mercadorias necessárias à sua sobrevivência e da sua família. Começava a relação capital-trabalho. Uma relação historicamente desigual. Aparentemente, o capital é o termo forte, porque tem os meios de produção. Contudo, os meios de produção precisam da força de trabalho, para acioná-los e apesar do inegável desenvolvimento tecnológico, o capital continua precisando do trabalhador.
No início, enquanto eram os operários a usar os meios de produção, os capitalistas precisavam de muitos trabalhadores. À medida que a situação foi se invertendo, isto é, a máquina passou a determinar de quantos operários necessitava, a desigualdade social foi, progressivamente, sendo ampliada. Não estou dizendo que antes do capitalismo não havia pobreza. Sim, havia muitos pobres, mas em meio a muita escassez. No capitalismo, chama atenção o fato de existirem tantos pobres numa sociedade tão rica. Tornava-se evidente que não havia viabilidade econômica para todos na sociedade capitalista, como pensara Adam Smith, no século XVIII. Diferentemente dele, os economistas do século XX, começaram a pensar seriamente no desemprego, fator que atua em favor do capital, mas em grande proporção torna-se indesejável. Da parte dos trabalhadores, entre compor o exército de reserva e ter uma longa jornada de trabalho por um baixo salário, eles aceitam, majoritariamente, a exploração. Ainda assim, há muitos sobrantes. Se os sobrantes fossem abduzidos e nunca mais voltassem à terra, não fariam nenhuma falta à sociedade capitalista. A miséria é uma presença incômoda e o Estado é chamado a mitigá-la. Supostamente, havia um pacto: a mercadoria força de trabalho seria comprada pelo capital. Nem o capital e nem o Estado, em momento nenhum, aventaram a possibilidade de vir a não comprar a única mercadoria que o trabalhador tem para vender. A promessa era que o desenvolvimento capitalista beneficiaria a todos. Depois que Adam Smith publicou o seu conhecido livro Riqueza das Nações, não houve mais dúvida que a riqueza produzida no mundo era resultado do trabalho. Mesmo olhando o mundo da perspectiva do capital, Smith afirmara o trabalho como fonte do desenvolvimento econômico e essa afirmação manteve-se firme até o último quarto do século XX. O tratamento dado aos trabalhadores nunca foi compatível com a riqueza que produziram nesses quase dois séculos, mas era inegável a centralidade do trabalho.
Com a crise dos anos 1970, começou a surgir a negação do trabalho. Diversos intelectuais anunciaram o fim do trabalho, às vezes, o fim do emprego. Ao mesmo tempo, realçava-se o conhecimento e obscurecia-se o trabalho, como se não houvesse nenhuma relação entre os dois. No sentido de negar a centralidade do trabalho, muitas estratégias foram criadas. Sob o signo da flexibilidade e as possibilidades oferecidas pela internet, o processo produtivo e a gestão da produção foram assumindo novas formas, pautadas, na sua maioria, no discurso da autonomia. Por essa via, tornava-se possível fazer desempregados produzirem para o capital, sob a ilusão de não serem trabalhadores. Ou ainda mais ilusório, de estarem a produzir com autonomia.
Como ter autonomia sem ter liberdade? Como, numa sociedade em que até o mais rico dos capitalistas está submetido às leis do mercado, pode um trabalhador ter autonomia? Se a sociedade não terá mais trabalhadores assalariados, significa que deixa de ser capitalista? Algum capitalista abriria mão da acumulação? Não, mil vezes não. O propósito, portanto, não é acabar o capitalismo, mas preservá-lo sem os custos variáveis da produção. Em alguns casos, com redução dos fixos. Nessa trilha, a terceirização tem sido uma forte aliada, inclusive por incentivar o empreendedorismo, em muitos casos, tornando pequenas empresas departamentos externos das grandes.
Eis que surge a pandemia do Covid-19 e mais uma oportunidade para o capital. Sob a alegação – muito nobre – de preservar vidas, o distanciamento agora é aprofundado pelo chamado trabalho remoto. São tantas as vantagens apontadas para esse tipo de trabalho, que eu as deixo para outra oportunidade. Quero apenas alertar os empreendedores digitais. Estes serão demandados em todos os ramos em que essa prática for favorável à acumulação capitalista, não importando que muitos objetivos sejam depreciados e até inviabilizados, a exemplo do que está a ocorrer com a educação, em todos os níveis. Não tenho dúvida que o chamado trabalho remoto sobreviverá à pandemia. Com isso, ganham as indústrias que produzem mais computadores, celulares, tabletes etc., ganham os empregadores, objetivamente, com a redução de custos fixos e variáveis e subjetivamente, pela ausência dessa figura constrangedora que é o trabalhador. A mim parece que há mais perdas do que ganhos aos que produzem e, principalmente aos que consomem o trabalho remoto. É razoável pensarmos sobre essa novidade.
Paço d’Arcos, 08 de julho de 2020.