A briga pelos direitos de transmissão do futebol brasileiro é antiga, envolve concentração de poder, monopólio sobre audiência e muita política. Sempre transcorreu nos bastidores, até a edição da Medida Provisória 984/2020, do presidente da República, que serviu para jogar um imenso holofote sobre o problema. Bolsonaro queria acertar somente a Rede Globo, terminou prejudicando a população, os clubes, as competições e tudo o mais, porém, fazendo na verdade, sem querer, um grande bem a longo prazo, pois finalmente o problema deixou de fazer parte das discussões apenas em poucos espaços na imprensa especializada.
A grande polêmica se deu porque a MP em questão cede aos clubes mandantes o direito de transmissão das partidas. Assim, embora ainda não tenha sido votada pelo Congresso Nacional, tem força de lei, e logo que entrou em vigor virou do avesso os contratos de exclusividade da Globo, seja na TV aberta ou em seus canais fechados. Não faz sentido transmitir a partida se o clube também o faz, ao mesmo tempo, e de graça.
Esses contratos, aliás, são tão questionáveis quanto nebulosos. Primeiro porque são mais vantajosos para clubes com maior torcida. O Flamengo sempre sai com a cota maior de todas, seguido por Corinthians, São Paulo, Palmeiras. E assim, clubes menores, os do Nordeste que flutuam na Série A, por exemplo, acabam sendo gravemente prejudicados.
Não há interesse de nenhuma das partes em tornar o Campeonato Brasileiro ou os estaduais mais competitivos. Os grandes querem cotas maiores e pronto. É a velha forma de se pensar e fazer política no Brasil, pensando no caixa e no imediato.
Foi dividindo cotas de TV igualmente que a Liga Inglesa se tornou a mais competitiva e o melhor produto a se vender no futebol internacional. Por aqui, se o Flamengo nunca quis nem saber de perder sua parte na cota, outros clubes grandes que poderiam ser vozes ativas na disputa por equalizar as fatias do bolo, terminavam pensando que era mais confortável manter as coisas do mesmo jeito.
Além das cotas, existe a influência obscura por trás dos direitos de transmissão. Houve um emblemático caso da proposta da RedeTV, muito superior à da Globo, em que os clubes optaram pela Globo. Anos depois, a Turner ofereceu uma proposta 11 vezes superior à da Globo pelos direitos para a TV fechada, e muitos clubes preferiram fechar com a Globo.
Foi medo de retaliação? Falta de espaço no jornalismo esportivo da gigante? Nunca saberemos.
A questão atual é que o Flamengo, que já detinha privilégio sobre as transmissões, cresceu o olho e quis mais poder. Costurou junto ao presidente Bolsonaro a MP e mostrou o tamanho da audiência do futebol no YouTube. Na quarta-feira, em transmissão exibida pelo Fluminense, 3,3 milhões de pessoas assistiam à disputa de pênaltis na final da Taça Rio.
Outros clubes já haviam tentado transmitir seus jogos antes. O Atlético Paranaense é um dos defensores mais antigos da pauta pelos direitos aos mandantes. Quebrar o monopólio da Rede Globo e democratizar as transmissões é um passo necessário, assim como dividir a renda da publicidade em cotas mais justas, de forma que os torneios possam ser mais competitivos. Isso não vai tornar, por exemplo, o Sport um gigante, mas vai diminuir os abismos nas folhas salariais e condições estruturais entre clubes do eixo Sudeste-Sul contra os clubes do Nordeste.
Além da polêmica político-econômica, o que ninguém se preocupou na hora de discutir jogar o modelo pra cima feito quem joga confete foi como cidadão que não tem acesso à internet assistiria aos jogos. Sim, existe uma parcela grande da população brasileira que recebe sinal de TV aberta, mas não tem internet. Estes entram para mais uma lista dos esquecidos pelas elites que pensam o futebol, e pelo governo que trabalha para as elites.
Artigo publicado na edição de 10.07.2020 do jornal A União