Nessa última semana, tivemos uma inundação de postagens, matérias e debates sobre a campanha publicitária do Dia dos Pais da Natura, que utilizou dentre outros personagens o modelo Tammy Miranda, para representar a figura do pai. A campanha sofreu ataques preconceituosos do Pastor Silas Malafaia, que acusou a marca de usar uma mulher para fazer o papel do pai, o que seria um desrespeito à instituição familiar.
De imediato uma onda de apoio à marca se instalou, notadamente, de pessoas que se alinham com o identitarismo, de perfil progressista ou de esquerda. Diante de mais uma manifestação explícita de preconceitos contra transsexuais, Malafaia usou do fundamentalismo do grupo que representa, para dizer que não aceita as diversas formas de formação familiar e representação de gênero.
Porém, mais que os ataques sofridos por Tammy e pela Natura, a ação de marketing colocou a empresa em evidência e a transformou em ícone pela causa LGBTQI+, deixando de lado qualquer questionamento sobre quais limites devem existir entre a questão identitária e uma postura classista.
Combater preconceitos é uma questão humanitária. Não se pode aceitar que pessoas sejam agredidas em decorrência da moral religiosa ou de qualquer ideologia que permita tratar a questão de gênero como alvo de ataques, muitas vezes de forma violenta. Contudo, a situação envolvendo a Natura é parte de uma ação de marketing, com objetivo mercadológico claro e sem qualquer engajamento real com a questão social. À empresa interessa tão somente os ganhos que possam lhe render na forma de vendas ou especulação na Bolsa de Valores.
Nessa hora, quem se arvora de esquerda não pode abstrair a perspectiva classista e transformar uma ação de mercado em manifestação de enfrentamento ao preconceito. A mesma Natura que usa a transsexualidade em uma peça publicitária, explora o trabalho de comunidades extrativistas para obtenção de seus produtos, em péssimas condições de trabalho, aliadas à geração de impacto ambiental.
Não bastasse isso, a mesma empresa tem em seu histórico o sistema de venda direta, no qual mais de 1,2 milhão de “Consultoras de Beleza” ou Revendedoras Natura, formam uma grande rede de informalidade, trabalhando em regime de metas, sem qualquer vínculo empregatício, direitos trabalhistas e previdenciários. Se os debates sobre a precarização do trabalho tomaram volume nos últimos meses em decorrência da evidente uberização e exploração dos entregadores, a Natura já promove prática análoga, sob o manto do empreendedorismo e de maneira silenciosa há décadas.
Uma empresa que usa a questão de gênero em sua publicidade e tenta construir uma imagem socialmente responsável e de defesa humanitária, deveria dar exemplos mais efetivos em suas práticas, já que explora trabalhadores desde a extração de matéria-prima até à venda dos produtos. Se o preconceito é algo que deve ser combatido fortemente, a questão classista é algo ainda mais grave pela sua centralidade. Note-se que, a desigualdade social é fator determinante para aprofundar preconceito e intolerância. Basta avaliar que nos países com menores índices de desigualdade, o respeito ao ser humano se apresenta de forma muito mais ampla e atitudes de preconceito como as que são vistas no Brasil são muito menos frequentes.
Dessa forma, a perda do referencial classista é algo que preocupa e direciona os movimentos progressistas para uma armadilha identitária, muitas vezes oportunisticamente armada por aqueles que a utilizam como mecanismo para ganhos de mercado. Sendo assim, fortalecer o mercado é dar força ao preconceito, na medida em que o aumento da desigualdade é também o aumento da opressão que, numa escala maior, atinge os mais necessitados.
Alguém tem dúvidas que é muito mais difícil ser homossexual pobre do que rico? Muitas vezes, a condição socioeconômica serve como passaporte para ingresso em diversos segmentos, fazendo supor que essa aparente aceitação atesta a ausência de preconceito. Contudo, ao preto, pobre e gay não é dado qualquer espaço. A segregação e o preconceito proporcionam uma situação marginal, que pode levar à prostituição, o que reforça o discurso moralista de que a condição social estabelece um ambiente de perversão. Desconsideram que aquela situação é decorrente de uma construção social, na qual a desigualdade é o principal fator determinante.
Diante disso, não diferenciar os limites entre o identitarismo e a questão classista, denota uma falta de percepção dos mecanismos que fortalecem o preconceito. A Natura ganha duas vezes: crescem suas vendas sobre um segmento que talvez não tivesse resultados significativos e mascara a desigualdade que promove, quando explora através da precarização do trabalho. Sem contar o ganho especulativo, com o aumento recorde do valor das suas ações na Bolsa.
Fosse mesmo uma empresa com algum tipo de responsabilidade social, começaria por assinar a carteira de seus extrativistas e de vendedoras sem vínculo empregatício. Da mesma forma, poderia promover ações efetivas de combate à transfobia, que não apenas o uso em peças publicitárias de maneira ocasional. Muito pelo contrário, a trajetória da Natura é a mesma de qualquer empresa conservadora, que em meio a oportunidades de marketing, aproveita os espaços para ganhos financeiros e segue omissa com relação aos preconceitos e a outras expressões da desigualdade social.
Para os que defendem e entendem que a perspectiva classista é necessária, perceberão que a matriz que alimenta os preconceitos é a mesma da desigualdade. Sendo assim, não será com demagogia de mercado que promoveremos avanços humanitários capazes de reduzir práticas como as de Malafaia. Quanto à Natura, espero que melhore sua relação com os trabalhadores e prove suas boas intenções, começando por aquilo que lhe cabe. Afinal, já diz o ditado: de boas intenções o inferno está cheio, sejam as do Malafaia ou as da Natura.