O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública em que pede a condenação do apresentador de televisão José Siqueira Barros Júnior, conhecido como ‘Sikêra Jr”, a reparar dano moral coletivo decorrente de discurso de ódio às mulheres. Ele é acusado de proferir falas discriminatórias, machistas e misóginas, além de humilhar com expressão racista, em transmissão ao vivo, uma mulher negra, que estava sob custódia do estado da Paraíba, em cadeia pública da capital. O fato ilícito ocorreu em 5 de junho de 2018 e repercutiu em todo o estado, causando grande comoção entre as telespectadoras paraibanas, que se sentiram ofendidas com as agressões verbais do apresentador.
À Justiça, o MPF pede que o apresentador indenize em R$ 200 mil a mulher negra que teve a dignidade ofendida por ele, além do pagamento de R$ 2 milhões a entidades representativas feministas ou de promoção de direitos humanos ou, alternativamente, ao Fundo Nacional de Direitos Difusos. O valor deve ter atualização monetária e juros.
Veja também
Alexandre de Moraes retira sigilo do inquérito sobre atos antidemocráticos
O Ministério Público também pede que o apresentador seja condenado a se retratar publicamente, reconhecendo expressamente a ilicitude de suas falas, mediante discurso a ser publicado em todas as suas redes sociais e na TV Arapuan – emissora onde a conduta ilícita foi praticada. A duração do discurso não deve ser menor que 2 minutos e 47 segundos, que foi o tempo em que ele proferiu as ofensas. A retratação deve ser feita no mesmo horário em que o apresentador proferiu as agressões, entre 12h e 13h, durante o período de sete dias. Conforme o pedido ministerial, o início da retratação deve ocorrer em até 10 dias, após a intimação do trânsito em julgado desta ação.
O conteúdo da retratação deve ser previamente aprovado pelo MPF e por pessoas ou instituições que também participarem do processo como amicus curiae (que auxiliam o tribunal com esclarecimentos sobre questões essenciais ao processo). O MPF ainda pede multa diária, não inferior a R$ 10 mil, em caso de descumprimento da sentença condenatória. Para tanto, também foi pedido à Justiça Federal que intime a Defensoria Pública da União e associações civis representativas de movimentos feministas e do direito à comunicação cidadã para integrarem o polo ativo ou participarem do processo, como amicus curiae, caso queiram.
“O Ministério Público Federal está muito atento para os chamados ‘discursos de ódio’, crimes que causam grande prejuízo ao tecido social, além de graves danos psicológicos às vítimas”, afirma o procurador da República José Godoy Bezerra de Souza. Ele ressalta que há uma grande preocupação do MPF com os discursos de ódio que vêm sendo praticados através das redes sociais em larga escala. “O que chama a atenção nesse caso é que, além de ter sido praticado numa emissora de televisão aberta, também foi publicado na plataforma de vídeos do YouTube e acessado milhares de vezes. Isso demonstra o potencial danoso desse tipo de crime, que vem assolando a sociedade brasileira, numa verdadeira epidemia de crimes de ódio contra grupos vulneráveis, no caso, as mulheres, especialmente, a mulher negra”, afirma Godoy.
O procurador também alerta que, historicamente, de início, as pessoas não dão tanta importância aos crimes de ódio e ataques a grupos vulneráveis, até que os ataques vão subindo o tom. “Normalmente, os primeiros degraus desse tipo de violência se iniciam com piadas – o chamado ‘racismo recreativo’. Em seguida, passa-se à agressão verbal, agressão física, muitas vezes chegando à destruição de grupos. Então, é preciso combater todo tipo de discurso de ódio e a legislação brasileira possui meios para que isso possa ser feito e é o que o Ministério Público está fazendo neste momento”, assegura Godoy.
As ofensas do apresentador provocaram reações imediatas e diversas entidades feministas e organizações realizaram protestos e denunciaram o fato ao Ministério Público. A partir de representação assinada pelo Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação do Estado da Paraíba (Findac/PB), o MPF instaurou procedimento administrativo, que resultou em assinatura de termo de ajustamento de conduta (TAC) com a TV Arapuan.
Além de diversas medidas de reparação, já cumpridas pela emissora, o TAC tinha uma cláusula de penalidades e responsabilidades que previa a possibilidade de responsabilização cível e penal do apresentador. Nesse caso, a ação ajuizada na sexta-feira (4) tem como foco a tutela cível/constitucional dos direitos coletivos e individuais indisponíveis lesados, com vistas à reparação/compensação dos danos decorrentes da conduta ilícita. Já as possíveis repercussões criminais da conduta do apresentador continuarão sendo investigadas, considerando-se a independência das instâncias judiciais.
Na ação, o MPF demonstra que, num primeiro momento, o apresentador achincalhou a imagem da mulher negra detida pela polícia, ridicularizando a dignidade dela, ao compará-la com o refrão de música popular “pau que nasce torto, nunca se endireita” e disseminando entre os telespectadores o fato de que, na visão do apresentador, a vítima seria incapaz de ser reeducada e ressocializada. “Nessa parte, então, o desígnio do réu é claramente escarnecer a personalidade de uma mulher em situação de vulnerabilidade social (pobre, vítima das drogas e com a liberdade cerceada) que sequer pôde exercer seu direito de resposta, por estar sob custódia do Estado”, aponta o Ministério Público.
Já no segundo momento das ofensas, o apresentador inicia ataques misóginos em atos de discriminação e preconceitos generalizados contra as mulheres. Ele profere e estimula as pessoas que estão no estúdio a dizerem, “pelo menos, por 16 vezes, em apenas um minuto e sete segundos, o adjetivo ‘sebosa’ às mulheres que não pintam as unhas”, relata a ação ajuizada. É nítido o desprezo do apresentador às mulheres, quando no final do vídeo, “prossegue com outros atos misóginos, em gestos não menos repugnantes, que simulam o uso de barbeador de lâminas nas genitálias e em ambas as axilas, para dizer que mulheres que não se depilam também seriam sebosas”, narra o órgão ministerial.
Ao praticar as agressões, o apresentador violou direitos fundamentais da mulher detida e de todas as mulheres, como também infringiu princípios e valores éticos e sociais previstos na Constituição Federal, deveres e obrigações previstos em tratados internacionais e normas do ordenamento jurídico brasileiro. “A Constituição da República, em seu artigo 1.º, inciso III, atribuiu absoluta prioridade ao fundamento da dignidade da pessoa humana. No artigo 3.º, inciso IV, a Constituição também fincou como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, lembra o órgão fiscal da lei.
A Constituição Federal ainda prescreve no artigo 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza; que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; não será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante e que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, das Organização das Nações das Unidas, promulgada pelo Decreto n.º 4.377, de 13 de setembro de 2002. Segundo o artigo 2º da Convenção, “os Estados Partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher”.
Entre os compromissos assumidos pelos signatários estão: adoção de sanções e medidas que proíbam toda discriminação contra a mulher; estabelecer proteção efetiva da mulher contra todo ato de discriminação, zelar para que as autoridades e instituições públicas não cometam discriminação contra a mulher; tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa, dentre outras medidas.
As ofensas do apresentador também ferem a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém de Pará”, promulgada pelo Decreto n.º 1.973, de 1º agosto de 1996, segundo a qual, toda mulher tem direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa. Conforme a Convenção Interamericana, o direito de toda mulher a ser livre de violência abrange o direito a ser livre de todas as formas de discriminação; e o direito a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação.
Na ação ajuizada, o MPF frisa a vedação ao uso do direito à liberdade religiosa, de pensamento e de expressão, como instrumento de opressão, “notadamente em face de minorias sociais, cujos integrantes são mais suscetíveis ao silenciamento pela parcela majoritária da população”. O órgão ministerial demonstra que a conduta do apresentador “não se restringiu ao mero desferimento de ofensas à honra subjetiva de uma mulher vulnerável”. Ele também “incorreu em verdadeiro discurso de ódio porque a agressão realizada pelo réu constituiu-se de condutas nocivas ao equilíbrio psicológico da vítima e de uma coletividade de mulheres telespectadoras e internautas, que ao ouvirem o discurso proferido, sentiram-se segregadas da sociedade”, aponta o autor da ação.
O órgão fiscal da lei arremata que a responsabilidade pelo que se diz ou pelo que se divulga é pressuposto para que as relações sociais se mantenham organizadas e harmoniosas. “Deste modo, extrapolados os limites aceitáveis em um discurso democrático, cabe ao Poder Judiciário restabelecer a legalidade e integridade das pessoas eventualmente atingidas”, conclui.
Fonte: MPF