Conhecido por suas convicções firmes e por defender posicionamentos isolados, alguns dos quais posteriormente passaram a nortear o entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Marco Aurélio Mello conclui, nesta segunda-feira (12), sua trajetória de 31 anos na mais alta Corte do país. O decano, que está entre os que mais tempo permaneceram em atuação no STF, é considerado um dos grandes intérpretes da Constituição Federal de 1988, cuja história se permeia com atuação do ministro na Corte, iniciada em 1990, aos 43 anos.
O ministro Marco Aurélio é considerado, por seus pares, como um magistrado comprometido, visionário, perspicaz e vocacionado a servir o semelhante. Sua judicatura em mais de três décadas no Supremo é celebrada por imprimir como características a garantia dos direitos fundamentais, do equilíbrio entre os poderes e da independência judicial, bem como a defesa da observância irrestrita das leis e da Carta Maior pelos poderes públicos. O decano também é tido como um juiz coerente em seus entendimentos, uma vez que sua dissidência, mesmo sendo voto vencido, enriquece o debate e a pluralidade de ideias no colegiado, importante aspecto para a consolidação da democracia.
No Supremo, o ministro Marco Aurélio participou de decisões históricas, entre elas ações sobre a permissão da interrupção da gravidez em casos de constatação de anencefalia no feto (ADPF 54) e sobre a validade da Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher (ADC 19), das quais foi relator. O decano atuou em outros julgamentos emblemáticos, como o da prisão por dívida de depositário infiel (HC 87585), o da possibilidade de prisão após decisão em segunda instância (ADCs 43, 44 e 54) e o do uso de algemas (HC 91952), que serviu como precedente para a edição da Súmula Vinculante 11.
Também relatou processos sobre a possibilidade, aos transgêneros, de alteração do registro civil sem mudança de sexo (ADI 4275); a criação do cadastro de empregadores que submeteram seus empregados à condição análoga à de escravo (ADPF 509); acessibilidade de pessoas com deficiência em prédios públicos (RE 440028), entre outros. Recentemente, o ministro Marco Aurélio foi responsável por relatar importante tema envolvendo o combate à pandemia. Ao analisar a ADI 6341, o Plenário do STF concluiu pela competência concorrente de estados, Distrito Federal, municípios e União no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus.
A pandemia também é objeto de petição apresentada na ADPF 347, relatada pelo decano, em que, ao iniciar o julgamento da matéria, o ministro votou no sentido de reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, proibir o contingenciamento de verbas do Fundo Penitenciário Nacional e determinar a realização de audiências de custódia em todo o país.
Antes de se aposentar, o ministro Marco Aurélio liberou alguns processos importantes para julgamento, entre eles, a ADO 55, que trata da não regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), cuja arrecadação é destinada ao combate à pobreza, conforme estabelece a Constituição Federal (artigo 153, inciso VII).
O entendimento do ministro Marco Aurélio foi seguido, por maioria, no julgamento do RE 591054, com repercussão geral (Tema 129), em que a Corte decidiu que inquéritos policiais ou processos penais em curso não podem ser considerados maus antecedentes para fins de dosimetria da pena. Na ocasião, ele enfatizou a necessidade de existir decisão condenatória definitiva para que se afaste a presunção de inocência. Em outro recurso analisado há pouco tempo pelo Plenário e também com repercussão geral (RE 1209429 – Tema 1055), o voto do decano orientou a maioria do Tribunal que entendeu que o Estado tem o dever de indenizar jornalista ferido por policiais em cobertura de manifestação.
Porém, nem sempre a manifestação do ministro Marco Aurélio prevaleceu. Apesar de ser voto isolado em diversos julgamentos, o ministro Marco Aurélio esteve à frente em grandes transformações jurisprudenciais. Muitas vezes a posição minoritária do decano se transformou em majoritária ao longo dos anos, como na questão envolvendo a possibilidade de progressão de regime para crimes hediondos (HC 82959) e sobre a necessidade de conexão e continência para julgamento de não detentor de foro por prerrogativa de função (Inq 3515).
O ministro Marco Aurélio também deixa a marca de ser o terceiro integrante, em toda a história do STF, a completar mais de 31 anos de atividades no Tribunal, exatos 31 anos e 29 dias. O primeiro magistrado a alcançar esse feito foi o ministro José Paulo Figueirôa Nabuco de Araujo, que atuou durante o Império (31 anos, 2 meses e 22 dias), seguido pelo ministro Celso de Mello, que se aposentou no ano passado (31 anos, 1 mês e 26 dias).
Filho de Plínio Affonso de Farias Mello e de Eunice Mendes de Farias Mello, o ministro Marco Aurélio nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 12/07/1946. Ele é casado com a desembargadora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) Sandra De Santis Mendes de Farias Mello, com quem tem quatro filhos – Letícia, Renata, Cristiana e Eduardo Affonso – e quatro netos – João Pedro, Rafaela, Luisa e Laura. Não esconde o time do coração, o Clube de Regatas Flamengo, e o hobbie de andar de motocicleta.
O decano tinha o sonho de cursar direito para seguir os passos do pai, advogado, o qual queria que seu filho se tornasse engenheiro. O ministro, porém, resolveu seguir seu propósito. Em 1973, ele obteve o diploma em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também concluiu o mestrado. Após exercer a advocacia, em 1975 o ministro passou a ser membro do Ministério Público do Trabalho e, no ano de 1978, ingressou na magistratura, tendo integrado o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (Rio de Janeiro) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST).
No dia 13/06/1990, o ministro Marco Aurélio tomou posse no STF, por indicação do então presidente da República Fernando Collor de Mello, sendo o primeiro integrante da Corte oriundo da Justiça do Trabalho. Chegou ao Supremo aos 43 anos de idade, tornando-se o mais jovem entre os ministros daquela composição.
Em 2001, passou a ocupar o cargo de presidente da Corte e, em razão da linha sucessória, assumiu a Presidência da República, interinamente, por cinco vezes. Em uma delas, no dia 17/05/2002 o ministro Marco Aurélio sancionou a Lei 10.461/2002, que criou a TV Justiça, emissora dedicada a divulgar as atividades do sistema judiciário, aproximando os brasileiros da Justiça. As instalações da TV foram inauguradas pelo ministro Marco Aurélio em 02/08/2002, e já no dia 11 daquele mesmo mês, data em que se comemora a criação dos cursos jurídicos no Brasil, a programação da emissora teve início. Em 2007, foi inaugurado o primeiro canal aberto da TV Justiça.
O ministro Marco Aurélio também tem atuado como colaborador da Rádio Justiça. Semanalmente, sempre às segundas-feiras pela manhã, a partir das 10h, ele participa do programa Revista Justiça, no quadro “Por dentro do STF”, em que comenta a pauta de julgamentos da semana e outros assuntos de interesse dos cidadãos, até mesmo os acontecimentos sobre o mundo do futebol.
A passagem do ministro Marco Aurélio pela justiça eleitoral destacou-se pelo início da votação eletrônica no país. Desenvolvida em 1995, a urna eletrônica foi utilizada pela primeira vez nas eleições municipais de 1996, durante a gestão do ministro Marco Aurélio como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Naquele ano, um terço do eleitorado votou por meio das urnas eletrônicas.
Precursor do diálogo virtual no STF, o ministro Marco Aurélio deu início à integração da Corte com as redes sociais. Ele foi o primeiro presidente do Supremo a participar de um bate-papo na internet, com aproximadamente 915 internautas, uma das maiores audiências do horário registradas à época. O ministro respondeu a 35 perguntas enviadas pelos internautas.
Na gestão do ministro Marco Aurélio à frente do STF, as pautas de julgamento passaram a ser divulgadas na internet para o conhecimento prévio dos temas a serem analisados pela Corte. A novidade gerou maior transparência dos julgados, possibilitando um melhor acompanhamento das atividades do Supremo pela sociedade.
Ainda na Presidência da Corte, o ministro também determinou a adoção da cota de 20% para negros nas empresas prestadoras de serviços ao Tribunal. A Suprema Corte tornou-se a segunda instituição pública do país a adotar ação afirmativa voltada à ampliação do acesso da população negra ao mercado de trabalho.
O ministro Marco Aurélio é autor de frases emblemáticas bastante conhecidas daqueles que acompanham as atividades do Supremo. Em votos apresentados durante as sessões de julgamento da Corte, seja no Plenário ou na Primeira Turma, bem como em decisões e despachos monocráticos, é possível que o decano utilize expressões como: “a resposta é desenganadamente negativa”, “a quadra vivida é alvissareira”, “o processo não tem capa”, “vivemos tempos estranhos”, “atuo com pureza d´alma e a partir apenas da minha ciência e consciência”, “pagamos um preço módico para vivermos em um Estado Democrático de Direito”, entre outras expressões.
Em razão da aposentadoria do ministro Celso de Mello, em outubro de 2020, o ministro Marco Aurélio tornou-se o magistrado mais antigo no Tribunal, função em que permaneceu por mais de oito meses. No dia 25/02/2021, ele ocupou a cadeira física do decano no Plenário da Corte pela primeira e única vez, tendo em vista que, por pertencer ao grupo de risco da Covid-19, participou das sessões por videoconferência.
Após mais de um ano de pandemia, o ministro Marco Aurélio se despediu do STF do escritório de sua casa, através da tela de seu computador, do mesmo modo em que participou dos julgamentos da Corte nesse período. Em sessões realizadas por videoconferência, o Plenário e a Primeira Turma do Supremo, colegiado do qual ele era integrante, prestaram homenagens ao ministro. A Corte também lançou um livro, que reúne 31 votos importantes de relatoria do decano, e um site especial com registros de sua trajetória, dados estatísticos detalhados sobre suas decisões, entre outras informações sobre esses 31 anos de judicatura no STF.
Na última sessão plenária do decano, no dia 1º/7, o presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, declarou que apesar de o exercício do cargo público ser passageiro, “os feitos em prol do fortalecimento das instituições e em benefício da sociedade não conhecem tempo nem espaço: permanecem atemporais e universais”. “Saiba que esta Corte sempre será a sua Casa”, finalizou Fux, durante a despedida ao ministro Marco Aurélio.
O homenageado afirmou que atuará na área acadêmica, buscando passar “um pouco da experiência e formação humanística para os meus concidadãos”.
Fonte: STF