O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição que ainda não é completamente entendida pela ciência. Vários fatores podem contribuir para o desenvolvimento do autismo, como questões genéticas, ambientais e biológicas. Entretanto, nenhum deles diz respeito a uma ligação entre a condição e um “assassinato na família”, como sugerem vertentes de uma pseudociência bastante popular, a Constelação Familiar. Várias famílias de pessoas com TEA estão se manifestando contra essas afirmações, entendidas como preconceituosas e criminosas.
Uma chamada consteladora publicou recentemente nas suas redes sociais um vídeo onde respondia a pergunta de uma seguidora: “O pai tem TDAH e autismo, meu filho também, acredito que meus irmãos também possam ter autismo. Pode ser sistêmico?”, para a blogueira a condição é “normalmente sistêmica, resultado de um assassinato no sistema”. A mãe de uma criança com o transtorno afirmou ter realizado um boletim de ocorrência contra a consteladora e pediu para que outras famílias fizessem o mesmo quando se depararem com discursos que incitam ódio contra pessoas com deficiência.
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A Constelação Familiar é uma técnica que promete para o paciente uma interpretação de relações familiares para identificar possíveis bloqueios emocionais ocasionados por membros da família ou de gerações anteriores. A técnica define leis que, se quebradas, mudariam o “equilíbrio e harmonia”, gerando problemas de saúde, dificuldades para manter relacionamentos afetivos e explicariam fracassos na busca pelos objetivos da vida. A prática não tem comprovação científica e é considerada uma pseudociência.
A psicóloga e mestre em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano, Talita Queiroga, explica que um discurso capacitista, como o da consteladora, gera danos na vida de pessoas autistas e de suas famílias. “Gera mais julgamentos, preconceitos, desinformação e impede que as pessoas recebam o tratamento adequado, tratamento este que deve ser baseado na ciência e não baseado em pseudociências e crenças”, afirmou a psicóloga. Talita alerta que o discurso também busca culpar a família, o que pode tornar o aceitamento do diagnóstico ainda mais difícil, além de tornar dolorosa a manutenção do tratamento.
A médica e pesquisadora Melania Amorim, também mãe de uma criança inserida no espectro autista, afirma ter ficado indignada com a fala da consteladora e já encontrou diversas pessoas explicando o autismo através de uma relação com assassinatos na família ou outras reencarnações, além de abortos e até mesmo relacionando a condição com vacinas. Ela vem fazendo publicações recorrentes que questionam a prática e discursos utilizados na técnica.
“Eu me sinto no dever e na obrigação de fazer o possível para desmistificar essas pseudociências e prosseguir meu trabalho de divulgadora científica. Até porque elas vêm crescendo e não é por acaso”, disse Melania.
Como pesquisadora, Melania diz acreditar que o aumento de pseudociências está ligado à uma onda de obscurantismo e anti-ciência que ocorre nos últimos anos. Ela concorda que nem todo saber é científico, mas diz não querer proximidade com pseudociências, além de acreditar que a Constelação Familiar deveria ser proibida por considerar uma prática “fraudulenta e criminosa”.
A Lei nº 13.146 tipifica como crime “praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência”. A pena é de reclusão, e pode chegar a até cinco anos se a conduta for realizada em um meio de comunicação social, como as redes sociais, além de multa.
Segundo a psicóloga Talita Queiroga, o tratamento indicado para pessoas autistas varia de acordo com o nível dentro do espectro, mas geralmente envolve uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, pedagogos, terapeutas ocupacionais, neurologistas ou psiquiatras. Na psicoterapia, ela indica a técnica de Análise do Comportamento Aplicada, que é uma forma de desenvolver o comportamento que está em déficit e reduzir o que está em excesso.
Em setembro, o Jornal O Globo revelou denúncias de mulheres que sofreram violência doméstica e passaram pela Constelação Familiar durante audiências. Durante a aplicação da técnica, uma das vítimas foi coagida a pedir desculpa para o ex, que a agrediu durante a gravidez e após o nascimento do filho. Nos relatos feitos pelas vítimas, há convites para que elas se coloquem no lugar do agressor e reflitam sobre o que poderia ter causado a violência, além de dramatizações em auditórios lotados, onde desconhecidos são convidados a encenar os envolvidos no processo.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 16 estados brasileiros e Distrito Federal aplicaram a técnica em 2018 com o objetivo de facilitar a conciliação no Judiciário, sendo mais utilizada em questões que envolvem, por exemplo, divórcio, guarda, alienação parental e pensão alimentícia. Mas a Constelação Familiar também está sendo aplicada em casos de estupro de vulnerável e violência doméstica.
Desde 2018, a técnica também faz parte da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Ministério da Saúde, um plano que consolida terapias tradicionais que se desenvolveram, passando a serem oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No mesmo texto, aprovado pelo então ministro da saúde Ricardo Barros, também foram consideradas, por exemplo, a aromaterapia, ozonioterapia e hipnose clínica. O Conselho Federal de Medicina (CFM) considerou que as práticas não possuem evidência científica e que é um desperdício de verba pública destinar recursos para a promoção pelo SUS.