A pedido do Ministério Público Federal (MPF), a Justiça deferiu liminar para regularizar oferta de leitos a gestantes na primeira macrorregião de saúde da Paraíba, notadamente na capital. Com a decisão, União, Estado da Paraíba, Município de João Pessoa e Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) devem deflagrar providências de averiguação e planejamento, ao longo do prazo de 90 dias, para que possam atingir solução definitiva para o problema do déficit de leitos obstétricos. Havendo descumprimento da decisão sem justificativa por algum dos réus, a Justiça determinará multa diária por dia de atraso.
A magistrada da 3ª Vara Federal decidiu que o Município de João Pessoa e o Estado da Paraíba têm de promover medidas de registro de todas as pacientes em excesso diante do número de leitos regulares ofertados pelas maternidades que administram (Hospital Frei Damião, Hospital Edson Ramalho e Instituto Cândida Vargas), e a formalização de pedidos de transferência dessas pacientes aos núcleos de regulação das demais maternidades ou a central de regulação de leitos do município, bem como, diante da inexistência de vagas, ao órgão central da Secretaria de Estado da Saúde (SES-PB), para promover acomodação em leitos privados, conforme Lei Estadual 11.758, de 31 de julho de 2020.
Determinou, ainda, que efetivem, em 90 dias, estudos e medidas conjuntas com outros municípios e gestores dos estabelecimentos que compõem a sua rede própria e o Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW – por meio da Ebserh) para detecção definitiva das causas de superlotação em alguns serviços (seja por insuficiência de leitos, equipes, insumos ou qualquer outra causa) e adoção de providências para sanar tais problemas, mediante checagem da efetiva oferta de leitos (com disponibilização de equipes completas) e eventual redefinição de referências e responsabilidades e/ou ampliação de número de leitos na rede pública da capital, inclusive com planejamento integrado da construção de Centros de Parto Normal e Casas da Gestante, Bebê e Puérpera e/ou de outras medidas consideradas adequadas.
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Com relação à União e Ebserh, a Justiça determinou que participem dos estudos e medidas conjuntas com as demais instâncias estaduais e municipais do Sistema Único de Saúde (SUS), inclusive para viabilizar o cumprimento do papel da Ebserh na rede de atendimento do SUS (Rede Cegonha), conforme pactuado em Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e definido no Plano de Ação Regional e no Plano Estadual de Saúde em vigor, inclusive com retomada do planejamento integrado da construção de Centros de Parto Normal (CPN) e Casas da Gestante, Bebê e Puérpera (CGPB), além do Centro Obstétrico cuja instalação foi anteriormente almejada e/ou de outras medidas consideradas adequadas.
Lei estadual garante atendimento
A Lei Estadual 11.758 foi aprovada pela Assembleia Legislativa da Paraíba e sancionada pelo governo estadual ainda em julho de 2020, em um momento em que se tinha notícia que a taxa de mortes maternas brasileiras, considerando suspeita ou a confirmação da covid-19, já era maior do que a de oito países juntos. A lei estadual determina a internação de parturientes na rede privada em caso de inexistência de vaga na rede pública, por meio de lista única nas maternidades da rede pública e privada, com o objetivo de garantir que nenhuma parturiente no estado fique sem atendimento durante a pandemia. Gestantes e parturientes foram incluídas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como grupo de risco para a covid-19.
Superlotação
A atuação do Ministério Público Federal no caso teve início em 2018, a partir do recebimento pelo MPF de documento encaminhado pelo Hospital Universitário Lauro Wanderley, no qual se relatavam dificuldades operacionais vivenciadas pela Unidade Materno Infantil do hospital, em razão da ausência de regulação no encaminhamento das gestantes de alto risco. A partir desse documento, o MPF instaurou inquérito civil, no âmbito do qual foram realizadas diversas tratativas ao longo dos últimos três anos, envolvendo a Ebserh, a SES/PB e os municípios de João Pessoa, Cabedelo e Bayeux.
Os dados obtidos durante a apuração dos fatos apontaram para uma superlotação diuturna nas maternidades da capital. O hospital universitário informou que não conseguia transferir gestantes por falta de vagas em outros serviços. Em 2020, primeiro ano da pandemia de covid-19, houve um aumento de 11% no número de partos (mais de 200 partos por mês) na maternidade do HULW, sem considerar os atendimentos na triagem e outros procedimentos obstétricos, relata o MPF na ação civil proposta.
Uma das consequências desse aumento é o número crescente de pacientes que necessitam ser internadas, mesmo sem vagas na maternidade, segundo relatado pelo HULW, de modo que os corredores das suas instalações vêm sendo ocupados por macas que servem como “vagas extras” para o excesso de pacientes, fato já noticiado pela imprensa local. “Ademais, aportou nos autos a informação de que, recentemente, chegou-se ao extremo de haver 16 pacientes internadas em macas, dentre essas, pacientes soropositivas, hipertensas graves, diabéticas e bebês recém-nascidos que ficam em berços no corredor, aumentando o risco de queda e a exposição das pacientes, apesar de haver ali vigilância”, registra a ação ajuizada.
Recomendação sem resposta
Em dezembro de 2020, o MPF e o Ministério Público da Paraíba (MPPB) recomendaram ao governo estadual e à Prefeitura de João Pessoa que adotassem providências imediatas para garantir às gestantes acesso a leitos públicos. A recomendação, não acatada, incluía a implementação do encaminhamento das gestantes para a rede privada, previsto na Lei Estadual 11.758, quando verificadas situações como superlotação.
No primeiro semestre de 2021, o MPF realizou diligência no hospital universitário e constatou a existência de superlotação e suas consequências: paciente nos corredores sem qualquer privacidade; risco de queda para mãe e o filho, por estarem em uma maca que não oferece segurança; aglomeração nos corredores, pacientes, filhos, acompanhantes; quantidade de berços existentes que não suprem a demanda da maternidade; quantidade de macas existentes que não suprem a demanda da maternidade; existência de apenas uma sala de obstetrícia para partos, levando a equipe de saúde a improvisar novos espaços, com partos em locais inadequados; falta de medicamentos, dentre outras.
Devolução de recursos federais
Apesar da evidente necessidade de expansão de leitos para as parturientes, o hospital universitário deixou de receber recursos e a Paraíba teve de devolver dinheiro ao Fundo Nacional de Saúde, em razão de aparente falha burocrática também atribuível ao hospital. O MPF ressalta na ação que, do ponto de vista dos princípios da moralidade e eficiência da gestão pública, e diante do quadro de superlotação de maternidades na Paraíba, “não se mostra admissível que o estado, municípios e o HULW devolvam recursos federais que poderiam ter auxiliado a financiar a construção de unidades de acolhimento para parturientes, puérperas e recém-nascidos, desafogando a pressão sobre leitos de maternidade hoje disponíveis”.
Diante da não implantação das obras, o Ministério Público Federal questionou o estado e o município do João Pessoa. Ao MPF, o município de João Pessoa informou que os repasses federais para construção de um Centro de Parto Normal no Instituto Cândida Vargas teriam sido insuficientes para implementação de seu projeto executivo. No entanto, o município não esclareceu detalhes sobre possibilidades de redimensionamento do projeto, inclusive com aporte de recursos adicionais próprios ou do estado.
Violação de direitos humanos
A insegurança vivenciada pelas gestantes paraibanas atesta violação de direitos humanos, também por descumprimento de recomendação expedida ao Brasil pelo Comitê Sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (Committee on the Elimination of Discrimination against Women – Cedaw), no conhecido caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira.
Conforme o artigo 12 da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (adotada pela Organização das Nações Unidas em 18 de dezembro de 1979), os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância. Em consonância, a Recomendação Geral nº 24, do Comitê Cedaw, (promulgada no Brasil pelo Decreto nº 4.316/2002), destaca em seu Parágrafo 27 que “há um dever dos Estados-Partes em garantir às mulheres o direito à maternidade segura e aos serviços de emergência obstétrica e que deveriam alocar o máximo de recursos disponíveis para este fim”.