As escritoras não estão sozinhas quando o assunto é a busca pela garantia dos seus espaços na literatura, o fortalecimento e visibilidade das suas obras. Com elas estão centenas de clubes e grandes movimentos literários, como o Mulherio das Letras, um movimento político que reúne mais de 7 mil mulheres no Brasil e no exterior, comprometidas em discutir questões da mulher na literatura. A escritora Maria Valéria Rezende foi a idealizadora do movimento, que, em 2017, promoveu um evento para debater literatura com mulheres de todo país, no município de João Pessoa.
Maria Valéria Rezende define o Mulherio das Letras como um movimento de descoberta das mulheres, porque elas são muitas e vão além daquelas que aparecem no mercado editorial, explica. O movimento queria “mexer com tudo” e era uma faísca, diz a escritora em uma analogia: “sabe quando estamos antes do início do São João? A fogueira já está montada e espera só uma faísca para queimar. O Mulherio das Letras foi essa faísca”. Para Rezende, o movimento era algo que já iria acontecer, de um jeito ou de outro.
Ela acredita que o movimento incentivou as mulheres a tirarem seus textos da gaveta, mas segundo ela, ainda não é possível afirmar se isso aconteceu após o Mulherio ou se é resultado do fortalecimento dos movimentos feministas. Maria Valéria destaca que também viu muita solidariedade e apoio dentro do movimento, que passou a vibrar com as conquistas de todas as escritoras ao longo dos últimos cinco anos.
“Ninguém convence as mulheres que elas escrevem apenas mimimi”, reage a escritora, falando por todas as outras, que não vão aceitar mais serem diminuídas. Ela também defende que elas não escrevem “literatura feminina”, mas uma literatura de autoria feminina, porque não existe uma “literatura masculina”.
Para Maria Valéria Rezende, as mulheres podem começar a ser mais lidas quando a mídia abrir espaço para essas escritoras, mas a sociedade também precisa ter vontade, principalmente de valorizar obras do nosso próprio país.
O Mulherio das Letras se expandiu para diversos estados, países e regiões e também para outros grupos, como o das mulheres indígenas. Em 2022, o movimento foi levado para o sertão paraibano e contou com Maria Valéria Rezende na palestra de abertura. A escritora afirmou que ficou muito feliz em ver tantos jovens envolvidos no evento promovido por esse braço do movimento, tanto mulheres quanto homens.
O primeiro suspiro do Leia Mulheres foi registrado longe da Paraíba, com uma iniciativa da escritora inglesa Joanna Walsh, que lançou o projeto #readwomen2014 – ou #leiamulheres2014, em tradução livre. O projeto incentiva a leitura de escritoras, mas, em 2015, ganhou um formato diferente no Brasil: reuniões presenciais em livrarias e espaços culturais para leitura e discussão de obras escritas por mulheres, das clássicas às contemporâneas. As responsáveis por essa mudança foram Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, em São Paulo.
O formato se espalhou do norte ao sul do país, originando mais de 150 grupos de leituras em diversas capitais, municípios e até outros países, como Alemanha, Portugal e Suíça. Na Paraíba, o Leia Mulheres está presente nas cidades de Areia, Campina Grande, João Pessoa, Remígio e Santa Rita.
Em João Pessoa, o clube é mediado por Naíla Cordeiro, que considera o Leia Mulheres um projeto de grande incentivo à literatura de autoria feminina. Ela afirma que os clubes aumentam o número de leituras, os debates literários e os “extra-literários”, além de aquecer o mercado editorial, demonstrando que há público interessado em livros escritos por mulheres.
Os encontros são mensais e, geralmente, possuem uma temática sugerida pelas coordenadoras e criadoras do projeto. A partir dela, são escolhidas três obras. O livro trabalhado será selecionado por meio de uma votação no Instagram, sendo o mais votado debatido pelo clube, mas a leitura também pode ser definida por votação informal pelas participantes que frequentam os encontros. O grupo também conta com a presença das autoras, quando o clube decide debater obras delas. Já estiveram presentes as escritoras Marilia Arnaud, Aline Bei e Danielle Souza.
Entre os debates de obras escritas por autoras internacionais e de várias regiões do país, também há o incentivo para o consumo de literatura paraibana, que são lidas e discutidas ao longo do ano no clube. Para complementar, há indicação das obras, de eventos realizados pelas escritoras e editoras locais.
Para participar dos encontros do clube em João Pessoa é necessário enviar uma mensagem para o perfil do Instagram do Leia Mulheres JP. No dia do encontro, a mediadora deve enviar o link do encontro. No perfil da rede social, o público também pode acompanhar informes e participar das votações. Os encontros são realizados no último sábado do mês e estão sendo promovidos on-line, mas, segundo a mediadora, a perspectiva é que retornem a acontecer de modo presencial em breve.
Com festa e poesia: aniversário se transforma em sarau poético entre mulheres
Há dois anos, Luísa Gadelha decidiu comemorar seu aniversário de modo diferente: um sarau poético. Foi espontâneo, despretensioso e informal, adjetiva a servidora federal. Ela espalhou os livros de poesia pela sala e separou alguns temas para que seus convidados lessem, desde natureza, política, viagens e poesia erótica. Seus convidados também deveriam levar um presente diferente, todos deveriam chegar com um poema.
“Foi tão proveitoso e divertido que minhas amigas sugeriram fazermos mais vezes e deram ideias de temáticas e jogos de linguagem. Com isso, os encontros foram se tornando mais organizados e regulares. Também lemos poesia de autoria masculina mas, como costumamos ler mais mulheres no cotidiano, essa prática acaba por reverberar nos saraus”, afirma Luísa.
Ela acredita que os encontros, além de estimular o consumo de obras de autoria feminina, também incentivam que as participantes comecem a escrever. É um movimento que permite dar projeção e visibilidade para escritoras não conhecidas, porque as participantes levam novas autoras para o debate, define a servidora federal.
A professora Clarissa Monteiro foi convidada por Luísa para participar do sarau, quando se conheceram em um círculo de leitura. Segundo ela, a poesia sempre foi negligenciada na sua vida, mas o sarau permitiu que ela se aproximasse do gênero e a incentivou a comprar mais livros, debater e pesquisar sobre poesia.
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O sarau poético acontece até hoje e, além da poesia, também debate obras de prosa na casa de Luísa Gadelha. Ela afirma que as participantes costumam ler autoras diversas como Wislawa Szymborska, Ana Cristina César, Maya Angelou, Ana Martins Marques e não deixam de fora as conterrâneas, como Eliza Araújo e Débora Gil Pantaleão. Mas a experiência com escritoras paraibanas é diferente, porque elas são convidadas a participar presencialmente dos encontros.
As autoras Helena Medrado e Ana Adelaide Peixoto já participaram do sarau, um encontro que permitiu múltiplas discussões sobre processo criativo, desafios da escrita com a dupla e até tripla jornada, sobre as inspirações, leituras e a história de cada escritora. Tassyla Queiroga, uma das autoras que participou do sarau, decidiu que também se tornaria uma participante.
“É sempre instigante, também, ouvir a própria autora lendo seus escritos. Nessa experiência de saraus, acabei por perceber como a palavra falada, cantada, representada, performática, pode dar vazão a uma série de interpretações e sensações que são mais limitadas numa leitura solitária e silenciosa”, afirma Luísa Gadelha.
No início deste ano, a escritora Tassyla Queiroga, de 35 anos, sentiu falta dos eventos literários após a flexibilização das medidas de isolamento e também decidiu montar um clube de leitura. O clube não trabalha apenas obras de autoria feminina, mas essas escritoras são prioridades no grupo, que recebe em média 20 mulheres participantes. Ele também não é exclusivo para o gênero, pelo contrário, a escritora gostaria que mais homens estivessem presentes, trouxessem seus pontos de vista e lessem mulheres.
“O clube serve como um incentivo à literatura, à partilha, aos abraços, e nos ajuda a respirar um pouco longe da rotina”, explica ela.
Apesar de não possuir exclusividades, o clube acredita que está fortalecendo o movimento das mulheres que escrevem, além de se auto fortalecerem. Segundo a escritora, o clube é fruto do impacto causado por grandes movimentos, como o Leia Mulheres e o Mulherio das Letras.
“Torço pra que chegue logo o momento em que possamos ler os livros escritos por mulheres apenas pelo seu talento, sem nos preocupar tanto com seu gênero”, afirmou Tassyla.
O sarau poético, promovido por Luísa Gadelha, tem encontros mensais, marcados através de um grupo no WhatsApp, onde as participantes acertam datas e o que pretendem ler. O local também é limitado, porque são reuniões realizadas no próprio apartamento da servidora federal. O clube de leitura de Tassyla também é presencial, e acontecem no segundo e quarto domingo de cada mês nas casas das participantes.