O futebol é a paixão nacional. É fácil amá-lo sempre — ou desde sempre —, o time pode até perder o título, mas para além da frustração, sempre vai ter um sentimento que leva o torcedor a voltar para frente da televisão, para dentro do estádio ou para comentar os jogos nas redes sociais. Entre um sentimento tão sincero e o esporte, tem algo que não dá para se orgulhar: a violência contra as mulheres.
Dentro ou fora do campo, casos de violência ganharam destaque nacional e regional nos últimos meses, após o registro de ataques físicos e verbais a mulheres que trabalham com o esporte. Segundo a pesquisadora de violência de gênero, Juliana Bandeira, o futebol é um reflexo da sociedade, por ser um evento social, e reflete a violência contra mulheres no Brasil.
Em abril, a assistente de arbitragem Marcielly Neto recebeu uma cabeçada do técnico da Desportiva Ferroviária, Rafael Soriano, em campo, durante o intervalo do Campeonato Capixaba. O técnico iniciou uma discussão porque cobrava da arbitragem um escanteio antes do encerramento do primeiro tempo, e continuou exaltado mesmo após levar um cartão amarelo. Até que Rafael Soriano deu uma cabeçada na assistente, com toda a ação registrada em vídeo.
“Se você disser que eu te agredi, a gente vai para a delegacia. A gente vai fazer corpo de delito. Se não, eu vou te processar. Ela está dizendo que eu agredi, mentira. Está se usando porque é mulher”, disse o técnico em entrevista à TV Educativa, após ser expulso do campo.
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Na Paraíba, a jornalista Ana Flávia Nóbrega tem sua vida, trabalho e dignidade sexual ameaçada por torcedores nas redes sociais, após emitir opiniões e críticas sobre times. Para quem cresceu com o futebol e dentro do estádio, ter o sonho de trabalhar com a área é comum, mas ver pessoas que deveriam compartilhar com ela a mesma paixão, utilizando o futebol para violentá-la, não é fácil.
Dentro das casas brasileiras, uma pesquisa também afirma que o aumento do registro de boletim de ocorrência para ameaças e lesões corporais contra mulheres pode estar relacionado com os dias de jogos em cinco capitais.
No mês passado, quando Botafogo e Campinense disputavam a final do Campeonato Paraibano, a jornalista esportiva Ana Flávia Nóbrega sofreu uma série de ataques de torcedores do Belo após publicar nas suas redes sociais um momento com o seu pai, que é torcedor do Campinense. Os ataques ameaçavam seu trabalho, sua integridade física e sua dignidade sexual.
Ela acredita que tudo começou quando o assessor do Botafogo, André Resende, fez um comentário que circulou por grupos de torcedores. No seu perfil do Twitter, Ana escreveu sobre um áudio que recebeu do seu pai após a vitória do Campinense no primeiro jogo da final do Campeonato Paraibano, ele dizia: “Deus gosta dos humildes, minha filha. Vamos ser campeões, se Deus quiser”.
Os torcedores do Botafogo interpretaram a frase como um ataque ao time, chamando-os de “desumildes”. Após seu tweet, o jornalista André Resende respondeu: “Pilha de torcida é assim mesmo. Já li alguns comentários vindos do rival que já está ganho. Provocação é válida, até porque tem rivalidade envolvida, mas o Botafogo jamais tratou como vitória certa, pelo contrário. Parabéns ao Campinense pela vitória de hj. Vamos para os 90 finais.”
Segundo a jornalista, seu pai não disse que os torcedores do Belo agiam sem humildade, o áudio teria sido gravado após ele passar a semana escutando de Ana Flávia que era possível uma vitória do Botafogo e de ouvir dos rivais, os torcedores do Treze, que o Campinense não teria chances.
Ela buscou explicar a situação na própria rede social e em resposta ao comentário do assessor do Botafogo, mas os agressores continuaram os ataques. Em um deles, divulgado pela própria jornalista no Twitter, um torcedor escreveu: “Tu deu pra quem pra trabalhar com futebol? Deus queira que seja arrombada pelo elenco do Belo todo pra vê se cala a boca.”
Segundo Ana Flávia Nóbrega, ela prestou boletim de ocorrência na delegacia on-line contra os agressores, mas a denúncia foi indeferida. Por isso, ela buscou na última segunda-feira (23) a Delegacia de Crimes Cibernéticos para registrar as agressões. A jornalista afirma que após anunciar nas redes sociais que iria denunciar os torcedores, recebeu várias mensagens de agressores desculpando-se por algo que, segundo eles, foi dito no “calor do momento”.
Após as agressões, Ana Flávia relata o medo de voltar a trabalhar no campo, medo de sair de casa e decidiu se afastar das redes sociais. Ela afirma que, nos últimos meses, evitou emitir opiniões sobre situações criminosas nas suas redes sociais, como casos de racismo e xenofobia, por causa da onda de ataques gerada pelos torcedores e as consequências causadas para a sua saúde mental.
Em mensagem enviada ao Termômetro da Política, André Resende defende a colega e repudia as agressões de parte da torcida. “Os ataques que a jornalista Ana Flávia recebeu de alguns torcedores são abjetos, misóginos, e não podem ser tolerados de forma alguma”. Na mesma mensagem, o assessor do Botafogo reafirma seu apoio, respeito profissional e solidariedade à colega.
“Não é a primeira vez e não será a última”, afirma a jornalista Ana Flávia Nóbrega. Ela percebe que os ataques aumentaram em 2021, mas agora além de ameaçar seu trabalho também ameaçam sua vida.
“Sempre teve confronto de ideias com torcedores, é normal no nosso trabalho. Mas depois da final da Série D de 2021, quando o Campinense foi vice-campeão, surgiram os primeiros ataques a mim enquanto profissional e ao meu trabalho. Neste ano, após o primeiro jogo da final, houve ameaças a mim. Antes eram ataques, mas sem ameaças a minha integridade ou trabalho”, recorda a jornalista.
Segundo Ana Flávia, trabalhando em João Pessoa, ela entende que é criada uma narrativa entre os torcedores para que opiniões emitidas contra o time signifiquem perseguição ou que o jornalista é contra o time. Apenas se ela declarar torcida para o time, poderia emitir uma crítica ou opinião, e essa não é uma opção para a jornalista. “Eu sou torcedora dentro das quatro paredes da minha casa”, disse.
Para além da profissão, muitos torcedores pensam que por ser mulher, ela não entende ou não pode falar sobre o esporte. Ana aponta que várias vezes comentou sobre crimes contra minorias cometido pelos torcedores, mas sentiu que apenas quando outros jornalistas homens falaram sobre o assunto, as torcidas aceitaram. Até hoje perguntam se Ana Flávia sabe o que é um impedimento.
“Para ser mulher no esporte, é preciso provar que você merece estar ali todos os dias. Para os homens não é assim”, afirma a jornalista.
“O futebol é um reflexo da sociedade. Ele está doente e doentio porque nossa sociedade também está doente”, analisou a jornalista Ana Flávia Nóbrega.
Juliana Bandeira pesquisa violência de gênero contra jornalistas esportivas e concorda com a afirmação de Ana Flávia. As violências sofridas pelas mulheres refletem em eventos sociais, como o futebol. Segundo ela, observamos o aumento da violência contra mulheres, do feminicídio e altas taxas de violência sexual, condutas que são levadas para o espaço do esporte.
Segundo a pesquisadora, a agressão do técnico Rafael Soriano é também estratégia para minimizar as violências, por exemplo, quando ele afirma que a assistente de arbitragem Marcielly Neto estava utilizando seu gênero para fingir ser vítima de uma agressão — gravada em vídeo e reproduzida em todo o Brasil.
“É uma estratégia para inferiorizar o discurso da vítima, questionar o indivíduo que está denunciando a agressão, para que a denúncia perca força. É usar o discurso da vítima contra ela. Quando um agressor é exposto, ele tenta minimizar a agressão, o que é ainda mais covarde”, afirmou a jornalista.
A pesquisadora Juliana Bandeira, que também é jornalista esportiva, se solidarizou com Ana Flávia Nóbrega. Ela definiu os agressores como “organizações criminosas que se transvestem de torcida”, que são formados por homens resistentes a mudanças e que buscam intimidá-la. Para ela, as violências contra Ana precisam ser punidas e servirem como exemplo.
“É muito revoltante o que a Ana passou, eles precisam ser punidos. As autoridades precisam dar exemplo contra essa clara tentativa de calar uma jornalista. Não é fácil chegar no jornalismo esportivo paraibano. São pouquíssimas mulheres que atuam na Paraíba para representar todas nós. Mas tenho certeza que isso não vai calá-la”, declarou a jornalista e pesquisadora.
Para além dos gramados, o futebol também está relacionado com o aumento da violência doméstica contra mulheres. Segundo uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, encomendada pelo Instituto Avon, o número de boletins de ocorrência de ameaças contra mulheres aumenta em 23,7% nos dias de jogos dos times locais de cinco capitais brasileiras: São Paulo, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Os registros de boletins de ocorrência para lesão corporal também aumentam em até 20,8% nos dias de jogos. Caso o time jogue na própria cidade, os registros apontam que a mesma violência pode aumentar até 25,9%. Os autores da violência eram, na maioria das vezes, ex-companheiros ou companheiros nos casos de lesão corporal e ameaça. Em Salvador, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, as mulheres negras foram as maiores vítimas das violências, representando 85%, 61% e 52% dos casos, respectivamente.
A pesquisa “Futebol e Violência Contra a Mulher” aponta que o aumento da violência não é causado pelos jogos, mas sugere que esteja relacionada aos “valores do patriarcado”, que leva o esporte a funcionar como um “catalisador” para o ideal de masculinidade e as desigualdades de poder entre os gêneros. Essas características interagem com valores de competitividade, rivalidade, hostilidade, pertencimento, virilidade e, muitas vezes, à frustração, quando o time perde jogos, por exemplo.
O estudo cruzou dados de violência com os dias de jogos do Campeonato Brasileiro da série A, entre 2015 e 2018. Os dados são de cinco capitais brasileiras: Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre.
Matéria alterada em 8 de junho de 2022 para acréscimo da fala do assessor do Botafogo, André Resende.