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Há 30 anos, Brasil foi às urnas decidir se manteria regime ou teria rei e primeiro-ministro
Termômetro da Política
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Há exatos 30 anos, a televisão brasileira transmitia diariamente episódios de uma propaganda eleitoral peculiar. Não se viam candidatos pedindo votos para cargos eletivos. O que estava em jogo era algo bem maior: a própria estrutura política e administrativa do Brasil.

No feriado de 21 de abril de 1993, após dois meses de propaganda eleitoral, os brasileiros foram às urnas decidir se o país voltaria a ser monarquia ou continuaria sendo república e também se seria instaurado o parlamentarismo ou mantido o presidencialismo. 

Documentos desse plebiscito guardados hoje no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que havia senadores de todas as tendências. Eles usaram os microfones do Plenário para defender a forma e o sistema de governo que julgavam mais adequados para o país.

Parlamentarista, o ex-senador Pedro Simon argumentou: “Será que não se entende que o presidencialismo é o regime da irresponsabilidade do parlamentar? Se sou deputado, começo apoiando o presidente. Às vésperas da eleição, brigo com o presidente, nada tenho a ver com os projetos dele e voto contra. A minha eleição depende só de mim, do meu prestígio”.

Simon continuou: “O parlamentarismo, ao contrário, é o regime da responsabilidade. O deputado tem o seu destino ligado ao gabinete ministerial [liderado pelo primeiro-ministro]. Se o primeiro-ministro for mal, o presidente da república dissolverá o gabinete e também o Congresso. O deputado terá que votar bem para que o gabinete vá bem”.

Do lado presidencialista, o ex-senador Epitácio Cafeteira criticou a ideia de o governo ser repartido entre um primeiro-ministro poderoso e um presidente fraco: “Nós, que lutamos no velho MDB em torno do direito de o povo escolher o seu governo, de repente vimos que muitos se separaram. Em vez das Diretas Já, da luta que teve o respaldo do povo nas ruas e nas praças, agora temos uma luta das “Indiretas Já”, pelo parlamentarismo, para que os políticos escolham pelo povo quem vai governar o país. O povo escolhe o presidente, mas este não governa, apenas reina. Quem governa é a classe política, através do gabinete”.

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O ex-senador Valmir Campelo acrescentou: “O que não se compreende é o alvoroço dos adeptos do governo de gabinete em adotar um regime que, ao contrário do que vem sendo apregoado, não garante, absolutamente, a solução para os nossos problemas e a promoção do crescimento econômico e da justiça social. O que não se compreende é essa ânsia quase juvenil pela aventura, esse passo rumo ao desconhecido”.

Enquanto a balança no Senado ficou equilibrada entre o parlamentarismo e o presidencialismo, no quesito forma de governo ela pendeu com força para o lado da república. Os debates parlamentares praticamente ignoraram a monarquia.

À esquerda, uma cédula que chegou a ser estudada para o plebiscito; à direita, a que foi adotada (Foto: Arquivo do Senado/Reprodução)

As pesquisas de intenção de voto já adiantavam que a monarquia não tinha chance e a república ganharia de lavada. Monarquista assumido no Senado, só havia Ney Suassuna. Em janeiro, ele revelou seu posicionamento num diálogo com o ex-senador Jarbas Passarinho.

“Defendo não o presidencialismo, mas o semipresidencialismo”, discursou Passarinho. “O povo precisa ter o referencial central do presidente da república eleito, o que não ocorre num sistema parlamentarista em que de quatro em quatro meses tenhamos de mudar primeiros-ministros”.

“Se Vossa Excelência é semipresidencialista, faço um pedido: considere-se também semimonarquista. Pondere, pense e deixe nas suas conjecturas também a alternativa monarquista, porque seria um grande ganho para a nossa causa”, pediu Suassuna.

“Aleluia! Eu não sabia que havia no Senado um forte concorrente a barão ou duque!”, respondeu, em tom de brincadeira, Passarinho.

“Não”, devolveu, sério, Suassuna. “Só teremos a família real em primeiro grau. Os demais [nobres] não existirão. Mas será, com certeza, mais permanente e econômico”.

“Então Vossa Excelência já tirou todas as minhas aspirações. Se houvesse a monarquia, eu iria pleitear pelo menos o baronato de Xapuri. Mas, pelo que Vossa Excelência está dizendo, não poderei nem isso ter”, concluiu Passarinho, entre risos, referindo-se à cidade do Acre onde nasceu.

Nas páginas dos jornais e nos programas da TV, a monarquia ganhava destaque só por causa do inusitado e da curiosidade popular. Muito se noticiou, por exemplo, sobre a briga entre os descendentes da princesa Isabel pelo direito de ser coroado em caso de vitória no plebiscito. A revista Manchete publicou o perfil de um deles chamando-o de D. Pedro III.

“Quando ouço dizerem que se deve votar no rei, pergunto-me: “Em qual rei?”. Porque parece que há dois candidatos, o Pedrão e o Pedrinho. A luta vai ser muito grande”, provocou o ex-senador Epitácio Cafeteira.

A repórter Cissa Guimarães fala a favor da monarquia e a atriz Neusa Borges, do parlamentarismo (Foto: Agência Senado/Reprodução)

Outros senadores avaliaram que seria uma aberração voltar um século na história e “desproclamar” a república.

“A monarquia não se coaduna com a democracia, por impedir que o povo escolha seu governante”, discursou o ex-senador Valmir Campelo. “Além disso, concentra excessivo poder nas mãos de um único indivíduo, o que é extremamente perigoso. E não há qualquer garantia de que o titular do Poder seja de fato preparado e detenha liderança e carisma para o exercício de suas funções. Haverá quem diga que o rei, limitando-se à função de Poder Moderador, não governa de fato. Estaremos, então, diante de uma inutilidade, de um simples adereço, de um totem para o qual serão carreados recursos oriundos do povo.

“O Império foi tresloucado. E não só porque teve a mancha da escravidão, que é terrível”, criticou o senador Cid Saboia de Carvalho. “D. Pedro I, irritado, era capaz de sufocar com sangue qualquer movimento. D. Pedro II também não teve clemência em determinados momentos. A Guerra do Paraguai é a coisa mais ridícula da história do Brasil. Até hoje não há quem a explique. Estamos no século 20, na era do computador, e agora há essa história de rei. Isso é uma autêntica palhaçada!”

A lei determinou que três frentes se formassem para falar na propaganda eleitoral: a da monarquia parlamentarista, a da república parlamentarista e a da república presidencialista. Não houve a frente da monarquia presidencialista porque tal arranjo é impossível, um país não pode ter rei e presidente ao mesmo tempo.

O ex-senador Nelson Wandekin acusou as duas frentes republicanas de promover apenas o parlamentarismo e o presidencialismo e deixar de lado a defesa da república. Para ele, a propaganda monarquista, mesmo estando na prática fora do páreo, poderia fazer a sociedade enxergar a república com maus olhos:

“A frente favorável à monarquia vai falar sozinha todos os dias. Dizem-me: ‘Mas não há nenhuma chance de a monarquia ganhar’. Todos nós, republicanos, estamos cometendo uma enorme irresponsabilidade. Não usaremos o nosso tempo para defender 100 anos, mal ou bem, da nossa república, alguma coisa que tem a ver com os avanços sociais, institucionais e políticos do nosso país”.

Wandekin aproveitou para alfinetar os monarquistas. “É preciso reconhecer que a monarquia está um tanto abalada com esses últimos acontecimentos de um certo e conhecido príncipe europeu e suas conversas gravadas no telefone com uma certa dama casada”, disse o senador, referindo-se à divulgação, dias antes, de uma conversa telefônica picante do então príncipe Charles, do Reino Unido, com Camilla Parker Bowles quando ele ainda estava casado com a princesa Diana.

Jornal carioca Tribuna da Imprensa ouve artistas sobre o plebiscito de 1993 (Foto: Biblioteca Nacional Digital/Reprodução)

As frentes foram suprapartidárias. A maioria das siglas se dividiu internamente entre o parlamentarismo e o presidencialismo e liberou seus políticos e filiados para votar como quisessem.

Poucos partidos fecharam questão. O PSDB encampou o parlamentarismo. O PT fez um plebiscito interno, que deu presidencialismo. O presidente do partido, Luiz Inácio Lula da Silva, que inicialmente se declarara parlamentarista, teve que mudar de lado.

O chefe do PDT, Leonel Brizola, chamou Lula de “biruta”, por causa do brusco reposicionamento. O pedetista já sabia que o petista seria seu adversário na corrida presidencial de 1994.

Em 1889, logo após liderar o golpe de Estado que derrubou D. Pedro II e a monarquia, o marechal Deodoro da Fonseca assinou uma lei determinando que o povo brasileiro oportunamente se manifestaria nas urnas sobre a continuidade ou não da república.

O plebiscito de 1993 não teve nenhuma relação com essa lei. Deodoro, ao notar que não viria nenhuma tentativa de restauração monárquica, desistiu da ideia de legitimar a república pelo voto e baixou meses depois uma nova norma tornando crime a tentativa, por qualquer via, de implodir a forma republicana de governo.

A consulta de 1993 tampouco teve relação com um plebiscito organizado 30 anos antes. Em 1963, os brasileiros foram às urnas e votaram pela volta do presidencialismo, pondo fim a uma experiência parlamentarista que durou apenas um ano e quatro meses.

No curto período parlamentarista, uma grande fatia do poder do presidente da República foi entregue ao primeiro-ministro. O presidente foi sempre João Goulart. Por outro lado, foram três os primeiros-ministros, sendo Tancredo Neves o mais longevo deles, com dez meses no poder.

Essa, contudo, não foi a primeira vez que o Brasil teve primeiro-ministro. O país também foi parlamentarista durante o reinado de D. Pedro II. Os primeiros-ministros eram escolhidos no Senado.

Charge publicada no jornal Tribuna da Imprensa critica o plebiscito (Foto: Biblioteca Nacional Digital/Reprodução)

O plebiscito de 1993 foi convocado por determinação da Constituição de 1988. Na Assembleia Nacional Constituinte, muitos deputados e senadores desejavam converter o país ao parlamentarismo, muitos deles motivados pelo trauma dos 21 anos da ditadura militar, na qual os generais presidentes deram todas as cartas.

O que vingou na Constituição, porém, foi o presidencialismo. Os parlamentaristas de 1988 não se deram por vencidos e conseguiram incluir na Carta Magna a possibilidade de virar o jogo cinco anos depois.

“O artigo [prevendo o plebiscito] só existe pela iniciativa do deputado [monarquista] Cunha Bueno, que pôs na Constituição a consulta sobre a restauração da monarquia. Derrotado o parlamentarista, os parlamentaristas, inclusive eu, se apropriaram da emenda de Cunha Bueno para preservar também a hipótese do parlamentarismo”, revelou o ex-senador Nelson Carneiro.

Em abril de 1993, quando os eleitores foram às urnas, o Brasil ainda se recuperava de um turbilhão político. O presidente Fernando Collor de Mello havia sofrido impeachment em dezembro de 1992. Quem governava era o presidente Itamar Franco, que não interferiu na campanha eleitoral.

As três frentes usaram a queda de Collor em seus programas. Para os monarquistas, o rei garantiria a estabilidade política que faltava ao Brasil. Na análise dos parlamentaristas, a queda de um primeiro-ministro escolhido pelo Parlamento não prejudicava tanto o país quanto a de um presidente eleito pelos cidadãos. Os presidencialistas, por sua vez, argumentaram que um presidente poderia ser facilmente removido sempre que fizesse um mau governo.

Notícia publicada pelo jornal Tribuna da Imprensa mostra movimentação dos monarquistas (Foto: Biblioteca Nacional/Reprodução)

Para explicar didaticamente suas próprias ideias à população, as frentes se dedicaram com mais afinco a enxovalhar as ideias adversárias. O tom das campanhas foi duramente criticado no Senado. O ex-senador Jutahy Magalhães discursou:

“Está havendo uma confusão tal que outro dia, em minha casa, ouvindo uma conversa das empregadas domésticas, escutei-as dizerem que, se voltar a monarquia, voltará a escravidão. Pensei que aquilo fosse apenas desinformação de pessoas menos esclarecidas, mas, por coincidência, lendo a seção do plebiscito no jornal O Globo, uma das perguntas que havia era: ‘se voltar a monarquia, voltará a escravidão?’. Este debate está se parecendo com o das eleições estaduais e municipais, em que a preocupação de um candidato e criticar o outro, e não a de esclarecer o público sobre o que vai fazer”.

Diante de tanta desinformação, o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Paulo Brossard, viu-se obrigado a aparecer na propaganda eleitoral da TV para explicar de forma imparcial o que significavam os quatro quadradinhos da cédula de votação.

Como o voto era no papel, o apuração do plebiscito foi concluída poucos dias depois do feriado de Tiradentes. O resultado não surpreendeu ninguém. Tudo ficaria como estava. Venceram a república, com 66% dos votos, e o presidencialismo, com 56%.

Na forma de governo, os votos brancos e nulos (23%) foram mais numerosos que os dados à monarquia (10%). A abstenção foi considerável. Dos 90 milhões de eleitores, 23 milhões não se sentiram motivados a ir às urnas (26% do total).

Na avaliação do historiador Roberto Biluczyk, que produziu uma dissertação de mestrado sobre o plebiscito de 1993, a população não se engajou naquela discussão política por vários motivos, como a disputa ser entre ideias, e não candidatos, e a campanha não ter sido didática o suficiente.

“Perdeu-se uma grande oportunidade de incluir a sociedade nos grandes debates políticos do país. Ela poderia ter passado a entender, por exemplo, o funcionamento e a importância do Congresso Nacional para a nossa democracia, o que até hoje não é bem compreendido e é fonte de desconfianças. A sociedade também poderia ter passado a entender como esta quantidade enorme de partidos afeta o andamento da política. Se a discussão tivesse sido aprofundada, provavelmente a nossa democracia hoje teria mais qualidade e seria mais valorizada”.

Fonte: Agência Senado

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