Reportagens focadas em um crime específico, que ouvem apenas a polícia e não trazem à tona as raízes da violência contra a mulher na sociedade nem divulgam os serviços disponíveis para denúncia e proteção. Esse é um resumo dos problemas encontrados por pesquisadores e pesquisadoras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em um trabalho de análise de mais de 800 reportagens publicadas sobre feminicídio no estado, entre 2015 e 2021.
A análise, realizada nos anos de 2021 e 2022, foi feita pelo grupo de pesquisa Transverso – Estudos em Jornalismo, Interesse Público e Crítica, do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC. O trabalho rendeu o podcast “História mal contada – Os feminicídios na cobertura jornalística” e também um documentário, com o mesmo nome, disponível gratuitamente no YouTube.
Coordenadora do estudo, a professora da UFSC Terezinha Silva, diz em entrevista que o objetivo do trabalho era avaliar como a cobertura dos veículos de imprensa no estado iria se comportar a partir da Lei nº 13.104/2015, que reconheceu o feminicídio como um homicídio qualificado que envolve violência de gênero.
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“Houve avanços importantes a partir de 2015. O próprio uso do termo feminicídio, e a maior visibilidade dos crimes, o que é importante. E há casos em que a reportagem dá um serviço da rede de proteção e canais de denúncias, que são questões importantes”.
Apesar disso, a pesquisadora aponta que predomina na amostra analisada, segundo ela, uma lógica que prioriza a quantidade de matérias em vez da qualidade da cobertura, que tem a ver com o modelo de negócio dos veículos jornalísticos, a redução do número de jornalistas nas redações e outros fatores.
Agência Brasil: Além de a UFSC ficar em Santa Catarina, vocês também entendem que o estado se destaca de alguma forma nos casos de feminicídio?
Terezinha Silva: Santa Catarina é um dos estados que tem o número mais significativo [de feminicídios], segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A taxa é superior à média nacional, que é de 1,2 casos para cada 100 mil mulheres. Santa Catarina tem 1,5. Para nós, isso é bastante significativo. E, para além de ser uma amostra de um estado, também corrobora outras pesquisas que vêm sendo feitas há alguns anos em outros estados e com abrangência nacional. Então, essa pesquisa corrobora outros dados e outros limites existentes em relação à cobertura jornalística. Parece que tem certos problemas que a cobertura jornalística não consegue superar. Se mantém um certo modelo de cobertura que prioriza a quantidade de notícias a respeito desses crimes em vez de um aprofundamento, de pautas mais aprofundadas a respeito do problema que está na base dos feminicídios, que é a violência de gênero. A cobertura acaba tratando cada caso como se fosse um caso isolado, episódico, e não como parte de uma trama mais ampla.
Agência Brasil: Apesar de a pesquisa estar ancorada em dados de Santa Catarina, a reflexão alcança todo o Brasil?
Terezinha Silva: A pesquisa percebe aspectos dessa cobertura jornalística que é feita mantendo certos problemas. A gente percebe avanços também, é verdade, mas é uma cobertura que prioriza a quantidade à qualidade e aprofundamento no tratamento dessas pautas relacionadas aos feminicídios.
Agência Brasil: Esse é o ponto central do trabalho? Que a cobertura está voltada ao registro do episódio e às informações do boletim de ocorrência?
Terezinha Silva: Esse é o ponto central, e esse aspecto não chega a ser uma grande novidade, porque outras pesquisas antes de nós e feitas em outros estados ou com dimensão mais nacionalizada já apontavam isso. Esse é o modelo de cobertura jornalística do qual parece ser difícil a imprensa se desvencilhar. E por que é tão difícil para a imprensa tratar com um pouco mais de contexto, maior problematização, trazendo fontes diferenciadas? Uma limitação acaba levando a outra. Por que é tratado de forma tão episódica? Porque as fontes de informação geralmente são as mesmas, as fontes policiais. Então, é muito difícil dar uma outra dimensão ao problema se você escuta só a polícia e se ela é a fonte central da notícia. É claro que a polícia é essencial, fazendo seu papel para solucionar o crime, mas ela não é a única fonte que poderia ser acionada e falar sobre o crime. Falta essa iniciativa da cobertura jornalística.
Agência Brasil: Essa falta está ligada de alguma forma à precarização do trabalho do jornalista e à falta de jornalistas nas redações?
Terezinha Silva: Com certeza. É um problema muito complexo. Não dá para a gente apenas dizer que não estão fazendo a cobertura como deveria. Não é tão simplista. Tem uma série de fatores que dificultam essa cobertura mais adequada. E isso decorre de uma série de problemas. Um deles, com certeza, é a precarização. As redações estão mais enxutas, os jornalistas cada vez mais sobrecarregados e também há toda uma geração mais inexperiente e jovem. Quando a gente é mais jovem, também não tem tanta experiência para tratar de determinadas questões. Mas também tem um básico do trabalho jornalístico que não é feito. Vi matérias muito incompletas, sem informações básicas. E aí há uma série de limitações dos profissionais que estavam fazendo a cobertura, por uma série de motivos, inclusive a precarização do trabalho. E a gente percebe que também, cada vez mais, falta especialização, com o profissional tendo que cobrir várias coisas ao mesmo tempo, de todas as áreas e para todas as mídias.
Agência Brasil: São muitas questões do modelo de negócio dos veículos jornalísticos que acabam negando uma discussão necessária à população, então?
Terezinha Silva: Essa lógica da produção industrial, de produção em quantidade, é contraproducente no sentido de que não aprofunda nada. Então, a gente tem uma grande quantidade de matérias produzidas, mas o aprofundamento é quase nenhum. E não é que não haja visibilidade para o problema. Tem sim. Todo dia tem um caso sendo noticiado. O problema tem visibilidade, mas não chega nesse outro nível, de sair da visibilidade em termos de quantidade para uma abordagem com qualidade, que seria um segundo nível. A visibilidade foi um ganho importante nesses anos através da Lei do Feminicídio. A gente observou alguns avanços também.
Agência Brasil: O próprio uso do termo feminicídio foi um dos avanços que vocês destacam.
Terezinha Silva: Exatamente. Esse foi um avanço importante. Ele não era muito notável logo nos anos seguintes à lei, em 2016 e 2017. Em 2018, foi um pouco mais e, em 2019, começou a ser muito mais usado. Ele começa a ter um uso quase generalizado, não apenas no âmbito da polícia e do Judiciário, mas também dos próprios jornalistas. A gente viu coisas interessantes, como o fato de que, em alguns casos, mesmo quando a polícia não usava o termo feminicídio na matéria, os jornalistas usavam em um título. Não havia mais uma dependência de que, primeiro, a polícia precisa definir que é feminicídio. A cobertura passou a se apropriar de uma forma mais generalizada, e isso é muito bom, porque é um aprendizado social tanto dos jornalistas quanto dos demais atores encarregados de tratar desse problema e da própria sociedade, que está lendo aquela matéria. As pessoas passam a entender que a raiz desse crime é a violência de gênero, que não é um homicídio como qualquer outro. E tem outras matérias que, apesar de serem absolutamente factuais, são boas matérias factuais e trazem, por exemplo, um serviço com a rede de proteção que existe e os telefones de denúncia. Isso é importante também. Mas falta na cobertura um pouco mais de cobrança do Poder Público sobre o por que esses crimes continuam acontecendo com tanta frequência.
Agência Brasil: Outro problema que vocês apontam é que na pressa de registrar apenas o episódio, fontes qualificadas deixam de ser ouvidas, como pesquisadoras do tema e ativistas feministas. O que o leitor deixa de receber como informação quando o jornalista não ouve essas pessoas?
Terezinha Silva: Os leitores deixam de entender que as políticas públicas são uma luta de muitos anos, e que os movimentos sociais há muitos anos reivindicam essa rede proteção e sua ampliação. E também que cortes de orçamento, por exemplo, em estados ou na União, tiram recursos dessa área de prevenção à violência contra as mulheres. Ouvir os movimentos sociais e pessoas que pesquisam há muitos anos dá aos leitores essa dimensão do problema, que o crime não é isolado e faz parte desse problema mais estrutural. Que isso vem sendo discutido há muitos anos no Brasil. Os feminicídios não surgiram em 2015, a partir do momento em que a lei passou a nomeá-los desse jeito. Isso acontece há muito tempo e ganha visibilidade maior agora. Ouvir outras fontes ajudaria a entender também que, muitas vezes, há um ciclo de violências que desencadeou aquele feminicídio, que era algo que poderia ter sido evitado. Isso, muitas vezes, é apenas tangenciado pela matéria. Muitas mulheres já tinham feito mais de dez boletins de ocorrência. Há mulheres que já tinham medida protetiva, inclusive. E, se tinha medida protetiva, como foi assassinada? O que nós, sociedade, estamos deixando de fazer para impedir que esse crime aconteça? É preciso cobrar isso do Estado.
Agência Brasil: E alguns casos saem dessa regra de ser noticiado apenas como um episódio isolado. Por quê?
Terezinha Silva: A maioria dos casos recebe até três matérias relativamente curtas, factuais e com tratamento superficial, sempre muito restrito às informações policiais. Alguns casos se destacam dessa média, e fomos olhar o porquê. Porque são casos que envolveram muita brutalidade ou envolviam um certo status social, seja da vítima ou do agressor. Um exemplo: era um advogado conhecido na cidade. Mas, tem um outro ponto que é bastante interessante, que tem a ver com a mobilização da sociedade, de movimentos sociais. Isso acaba contribuindo para que haja uma discussão do problema, porque outras fontes acabam tensionando e pressionando para que aquilo seja tratado de modo diferente. Identificamos esses três fatores para que um crime tenha mais repercussão sobre outros.
Agência Brasil: E quando ele tem mais repercussão, a discussão sobre o feminicídio vem à tona ou não?
Terezinha Silva: O fato de ter mais repercussão não significa que tenha maior aprofundamento. Identificamos que, nesses casos que envolvem movimentos sociais, por exemplo, sim. Mas, nos outros casos, não necessariamente. Tivemos um caso em Joinville, que foi o que mais repercutiu em termos de quantidade de matérias na nossa amostra, em que a discussão em termos de motivação de gênero no crime foi zero. Continuou sendo limitado às fontes de sempre. A polícia, para tratar das investigações, e aos familiares e pessoas próximas, para falar sobre a vítima e sobre a relação deles. Isso até gerou um pouco de discussão sobre o histórico de violência, mas não aprofundou muito. E, depois, o julgamento faz com que um monte de matérias seja produzida, mas restritas ao resultado.
Agência Brasil: A chegada de mais mulheres às redações está contribuindo para uma mudança da forma de discutir violência contra a mulher na imprensa?
Terezinha Silva: Contribui, sim. Talvez não apareça tanto ainda, mas tende a aparecer mais. No material que analisamos, temos catalogado quem era a jornalista ou o jornalista da matéria que foi produzida. A gente não fez esse recorte de quantas matérias eram assinadas por mulheres e assinadas por homens, mas a gente pode dizer que tinham matérias assinadas por mulheres que tampouco traziam esse aprofundamento, assim como tinham matérias assinadas por homens que se mostravam bastante completas. Mas, por que eu acho que a representatividade tende a influenciar? Porque se tem uma nova geração se formando nesse contexto todo dessa última década, de uma discussão mais intensa sobre questões de gênero. Não quero dizer que antes disso não havia jornalistas mais velhas e mais velhos sem essa perspectiva de gênero. Não é isso. O que quero dizer é que mesmo as mulheres atuando nas redações enfrentam resistências ao tratar certos casos e a trazer discussões de gênero para suas pautas. A gente sabe que não é algo consensual, que há uma disputa interna nas redações.
Fonte: Agência Brasil