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Pesquisa de médica na Paraíba aborda mulheres e invisibilidade do trabalho de cuidar
Laura de Andrade*
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O tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2023 foi sobre os desafios para enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado prestado pelas mulheres no Brasil. Assunto para uns de muita familiaridade, para outros, pouca. Fato é que o que não tinha tanta visibilidade ganhou notoriedade nesse domingo (5) com a aplicação da prova. No entanto, antes dessa edição do Enem, a médica especialista em Medicina da Família e Comunidade, Marília de Sousa Araújo Barbosa e Silva, já abordava a complexidade do tema no universo dos pacientes.

O trabalho possui relatos da médica por meio do processo de autorreflexão (Foto: Arquivo pessoal)

Com o Trabalho de Conclusão de Residência “Cuidado associado ao gênero: experiências de uma médica residente e o círculo de zelo entre mulheres cuidadoras”, a pesquisadora analisa suas vivências durante a trajetória da residência médica e em contato com cuidadoras de pessoas acamadas. No texto, Marília dá voz para essas mulheres e discute papéis de gênero, as doenças relacionadas à saúde mental e física, suas dificuldades e o próprio crescimento enquanto profissional e mulher.

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Para ela, o tema do Enem, que tem a ver com o assunto desenvolvido no seu trabalho, foi muito pertinente. “Adorei o enfoque nessa parte invisibilizada da população, algo que me incomodou durante toda a residência de Medicina de Família e Comunidade”, afirmou a médica.

Formada pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) com residência pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a médica inicia a introdução do trabalho com a definição do que é ser cuidadora para o Guia Prático do Cuidador do Ministério da Saúde, que diz: a cuidadora “é a pessoa, da família ou da comunidade, que presta cuidados à outra pessoa de qualquer idade, que esteja necessitando de cuidados por estar acamada, com limitações físicas ou mentais, com ou sem remuneração”. Para Marília, esse papel é atribuído, historicamente e tradicionalmente, às mulheres.

Durante a residência, notou que as visitas domiciliares tinham algo em comum: os pacientes, ainda que tivessem várias comorbidades, tinham sempre um aspecto melhor do que a cuidadora, esta que era “geralmente da família, de forma informal, e nem precisava ter laços consanguíneos. Já vi mulheres que cuidavam dos sogros, de um amigo da família, sem remuneração ou sequer valorização em casa. Se essas mulheres fossem pagas, imagina o impacto que o trabalho delas teria no PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro”, diz Marília.

Na prática, a médica percebeu que as mulheres se identificam como cuidadoras. “Havia essa substituição de própria identidade e quando o objeto do seu cuidado falecia, uma parte enorme delas ia junto e elas ficavam perdidas entre a culpa pelo alívio e os sintomas depressivos pelo rearranjo súbito da própria vida”, disse a especialista em Medicina da Família e Comunidade.

O objetivo é propor uma reflexão acerca da experiência de quem o escreveu através do acompanhamento de cuidadoras de acamados cadastradas por uma equipe de saúde da família localizada em João Pessoa, na Paraíba. No desenvolvimento, ela ainda relata percepções pessoais na prática do cuidado com essas mulheres, como também descreve as dificuldades que encontrou durante o processo.

Afinal, o que é “ser mulher”?

As vivências familiares de Marília desde cedo fizeram com que ela acreditasse, por um momento, que ser mulher era sempre ser responsável por alguém além dela. E isso a incomodou. “Ao entrar em medicina, esse aspecto ficou ainda mais evidente. Todas ou a grande maioria das pessoas acompanhando alguém no serviço de saúde são do gênero feminino. Na própria medicina, as especialidades mais voltadas ao contato próximo e acompanhamento do paciente também são ocupadas por mulheres e a medicina de família é uma delas”, disse.

Entre as páginas do Trabalho de Conclusão de Residência, a autora também fala da experiência com a avó materna e o seu legado. “Aprendi sobre cuidado e suas consequências, rede de apoio e apagamento identitário do cuidador nesse meio, quando minha saudosa avó Chiquinha ficou acamada por 6 anos”, escreveu.

*Sob supervisão de Felipe Gesteira.

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