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Internacional -
Assédio e objetificação: vivência de brasileiras em Portugal está longe do sonho europeu
Heloísa Holanda*
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A figura da mulher latina historicamente exportada para fora do Brasil reflete na visão que os homens europeus têm das mulheres brasileiras. Sexualidade aflorada, corpos curvilíneos, sensualidade e desejo. A maioria desses homens acredita que todas as mulheres latinas vão performar essas características, e isso torna o comportamento deles muitas vezes incisivo e agressivo, levando a situações de assédio.

Vida noturna em Portugal está cada vez menos segura para mulheres estrangeiras (Foto: Heloísa Holanda)

Essa imagem é difundida pela mídia, não surgiu no imaginário das pessoas. O cinema norte-americano usa estereótipos para mostrar a América Latina como um todo, desqualificando as características individuais, criando uma ilusão de uma identidade comum sobre aquele território. 

A mulher latina é frequentemente objetificada através da exposição de imagens que realçam corpos esbeltos, parcialmente nus ou vestidos com roupas chamativas que enfatizam a sua sexualidade, retratando-os como o objeto de desejo, enquanto suas vozes são silenciadas. Essas mulheres muitas vezes são utilizadas como um mero acessório dentro da narrativa.

Isso são heranças culturais, algo que se permeia desde a época de Carmem Miranda. No longa-metragem “Aconteceu em Havana” (1941), a cantora e atriz conhecida mundialmente como “Brazilian Bombshell” e “Pequena Notável” interpreta Rossita Rivas. Carmen Miranda não aparece muito durante o filme, mas quando aparece traz imagens carregadas de estereótipos sobre a mulher latina. Rossita é uma personagem sensual, a própria figura do exotismo e da tropicalidade. Em suas cenas ela é usada para cumprir um papel de se apresentar como a mulher disposta a sexo fácil, “caliente“. E, ironia ou não, Carmen Miranda foi uma mulher nascida em Portugal e que repercutiu uma imagem massificada de como seria uma mulher brasileira.

Reflexo dos estereótipos em Portugal

Em Portugal esse reflexo dos estereótipos se mostra muito presente. De acordo com Aline Rossi, coordenadora da Coletiva Maria Felipa, um grupo anti-colonial de mulheres brasileiras imigradas, “isso tem um histórico, tem uma construção histórica em cima e é uma situação muito complexa, pode implicar violência sexual, assédio, dificuldade de acesso a serviços, nas ruas, no trabalho, na entrada no país”.

No quadro “Brasil-Mundo”, do podcast do RFI, a coletiva já relatou que isso se reflete até na questão da moradia. Dentro do contexto português, algumas mulheres brasileiras enfrentam obstáculos ao tentar alugar uma casa. Muitas vezes, os proprietários as rejeitam imediatamente ao identificarem sua nacionalidade, ou então criam entraves, como exigir o pagamento adiantado de doze meses de aluguel.

A jornalista e pesquisadora Flávia Lopes acredita que o problema enfrentado pelas mulheres hoje enquanto imigrantes é uma herança da colonização. “Nós precisamos ter uma visão decolonial quando tratamos essas questões da xenofobia, porque nós precisamos sair dessa posição eurocêntrica de que os imigrantes estão invadindo a Europa, invasão fizeram eles há muitos anos atrás da America Latina. Invasão é chegar sem pedir, e no caso são exigidas de nós muitas documentações”, explica. 

A pesquisadora considera que essa maneira de ser vista, a partir do aspecto da xenofobia e da sexualização, atinge muito as atividades diárias das mulheres, suas dinâmicas dentro do trabalho, as relações na universidade, e até mesmo o modo como elas são conhecidas. “Isso interfere diretamente no nosso modo de socializar”, o preconceito acaba levando à exclusão. Nós vemos grupos de brasileiros, grupos de pessoas de outros países da América Latina se conglomerando, se fortalecendo e sendo mais amigos entre si, é difícil entrar nos círculos de amizade dentro da Europa”, analisa Flávia Lopes, que é doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais na Universidade do Porto.

Jornalista e pesquisadora Flávia Lopes (Foto: Autorretrato)

Brasileiras contam suas experiências morando fora 

Algumas cidades de Portugal se tornaram destinos de intercambistas que buscam fazer períodos de mobilidade internacional durante os seus anos de estudos acadêmicos, como é o caso de Covilhã, município que é distrito de Castelo Branco. Com isso, pessoas de diversas nacionalidades passam a ocupar a vida social da região, permeando espaços e consequentemente interagindo com pessoas locais. O problema acontece quando se analisa o teor dessas interações quando elas são voltadas para mulheres latinas, especialmente brasileiras. 

Durante a reportagem algumas estudantes foram ouvidas, mas por questões de segurança optaram por aparecer com nomes fictícios durante o texto. Na cidade em questão, a vida noturna é permeada por casos de assédio, que muitas vezes acabam atrapalhando a socialização dessas mulheres por não se sentirem confortáveis em alguns ambientes. 

Viver fora do país sempre foi um sonho distante de Ana (20), mas a partir da aprovação que chegou com a carta de aceite, a estudante de Arquitetura fez de tudo para que o seu semestre de estudos em Portugal acontecesse. Rifas, trabalhos como freelancer, ajuda de familiares, suas expectativas estavam prestes a se cumprir chegando na cidade que seria o seu destino final, Covilhã. Mas, a realidade é sempre diferente do que o imaginado. A integração com estudantes portugueses logo de cara já se mostrou difícil e enquanto uma mulher jovem e solteira, ela nem sempre se sente respeitada. 

Ana relata que quando vai em festas ou menciona em alguma conversa que é brasileira, o olhar das pessoas muda, principalmente o dos homens. “Sempre é muito desconfortável perceber que com mulheres brasileiras o homens portugueses não convidam para encontros, sempre é um convite direto para casa, como se as nossas relações fossem pautadas apenas em sexo”, conta a jovem. 

Ao baixar o Tinder, um aplicativo de relacionamento, quando chegou na cidade, ela esperava poder conhecer pessoas novas e ir a encontros, coisas comuns para uma mulher da sua idade. Mas a experiência foi tão negativa que em apenas uma semana utilizando o aplicativo ela o deletou. “O primeiro homem que me mandou mensagem primeiro questionou o que eu tinha vindo fazer em Portugal, expliquei que vim morar aqui por conta da universidade, logo em seguida perguntou se eu tinha interesse em fazer um ménage com ele e a sua amiga”, relata.   

Experiência de intercâmbio acaba sendo prejudicada por conta de situações de assédio (Foto: Roberto Gómez/Divulgação)

E isso não é um caso isolado. A estudante de Engenharia Civil da Universidade da Beira Interior, Julia (21), diz que quando é abordada à noite em baladas também passa por situações incômodas. “Muitas vezes já fui embora mais cedo de festas por conta de algum homem que ficou puxando assunto comigo durante a noite de forma desconfortável, ou por alguém tentar se colocar atrás de mim enquanto eu estava dançando”, relata a estudante.

Em um caso específico, ela descreveu um homem que aparentava ser pelo menos cinco anos mais velho, ele a seguiu a noite toda em um dia que ela saiu com os seus amigos. “Quando eu estava me divertindo ele aparecia do lado, quando ia para a parte de externa do bar ele surgia junto, se oferecia sempre para comprar bebidas para mim, e ao bar fechar ficou me chamando para ir com ele a outro lugar. Foi uma situação onde me senti vulnerável”, conta Julia. 

Esse tipo de comportamento tóxico com mulheres latinas não se restringe apenas aos europeus, muitos homens de outras nacionalidades, até mesmo latinos, reproduzem comentários e ações que se configuram como assédio. “É preciso ficar sempre atenta, nunca vou para os lugares sozinha, até nos caminhos de ida e volta estou sempre acompanhada de amigos”, diz a estudante. 

Relato pessoal

De forma geral, uma das coisas mais atrativas para mim em relação a Europa sempre foi os elogios que as pessoas faziam sobre a segurança daqui, e de fato, em relação a andar na rua tarde da noite, medo de ser roubada, deixar o carro ou a porta de casa destrancada, isso me surpreendeu bastante logo de início. Vez ou outra ainda tenho meu reflexo brasileiro de estar mexendo no celular na rua e esconder quando alguém se aproxima, hábitos não morrem tão cedo. Porém, não percebi essa segurança quando se trata de mim, o impacto do assédio aqui me surpreendeu, para dizer o mínimo. 

Os homens aqui têm uma abordagem muito assertiva e direta, o que já assusta de início, mas a mudança de tom quando você fala que é brasileira é notável, você já se sente taxada: puta. Muitas foram as vezes que já escutei “no Brasil pode tudo”, “é o país da putaria”, “mulher brasileira é fácil”, e a gente acaba sofrendo as consequências dessa construção histórica. 

Sempre vou em festas acompanhada, não aguentaria de outra forma, sempre tem algum engraçadinho querendo se aproveitar quando estou me divertindo distraída, homens mais velhos querendo pagar bebidas, mensagens esquisitas no dia seguinte, no Instagram, de homens com quem eu não tive interação alguma dizendo que me viram na noite anterior. Muitas vezes causa uma sensação de estar sendo seguida. “Como essa pessoa está sempre nos mesmos lugares que eu?”, penso. 

Quem vendeu essa ideia de corpos de mulheres brasileiras estão disponíveis para quem tiver interesse por favor tire essa propaganda do ar. 

Contexto social

De acordo com o Relatório de Experiências de Discriminação na Imigração em Portugal, um estudo de 2020 elaborado pelo Projeto #MigraMyths – Desmistificando a imigração, desenvolvido pela Casa do Brasil de Lisboa, 85,6% dos respondentes da pesquisa afirmaram que já sofreram algum tipo de discriminação em Portugal baseada em preconceitos e estereótipos sobre a imigração. A maioria deles eram brasileiros (77,1%) e mulheres (82,7%).

Fazendo um paralelo com a experiência de estudantes homens que vieram do Brasil, o estudante de Bioquímica da UBI, Daniel Almeida, conta que ser brasileiro não repercutiu no seu sentimento de segurança no país, mas, que sente uma expectativa diferente vinda mulheres e homens portugueses quando é abordado: “eles sempre têm uma visão de que nós somos pessoas muitos sexuais, que o Brasil é um país totalmente liberal”.

Telefones para denúncia 

Para pessoas que não possuem uma rede de apoio ou não se sentem seguras o suficiente para reportar as suas violências sofridas, existem alguns números que podem ser contactados: 

Mulheres Vítimas de Violência Doméstica: 800 202 148 Apoio psicológico, social e jurídico. Todos os dias 24h.

Sexualidade em Linha: 800 222 003 – Infos na área da saúde sexual reprodutiva. Dias úteis das 11h às 19h. Sábados das 10h às 17h.

Linha de Apoio a Migrantes: 808 257 257 (rede fixa) e 218 106 191 (rede móvel e do estrangeiro). Atendimento em 9 línguas diferentes para responder as perguntas mais frequentes. Dias úteis das 9h às 19h.

Embaixada do Brasil (Lisboa): 217 248 510. Dias úteis das 09h30 – 13h, 14h30 – 18h.

*Sob supervisão de Felipe Gesteira

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