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Ação do MPF pede que pastor pague indenização de R$ 100 mil por danos causados por racismo religioso
Termômetro da Política
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O Ministério Público Federal (MPF), pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro (PRDC/RJ), ajuizou ação civil pública contra um pastor evangélico por disseminar discurso discriminatório que ataca religiões de matrizes afro-brasileiras e seus seguidores. Na ação, o MPF pede indenização de R$ 100 mil, em função das violações aos direitos fundamentais causadas pelas ofensas.

De acordo com apuração no âmbito cível, foram violados direitos de grupos historicamente vulnerabilizados pela chamada intolerância religiosa e pelo racismo cultural (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

De acordo com representação formulada pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Estado do Rio de Janeiro, o pastor, em vídeo que circulou na internet, atacou o evento chamado “Águas de Axé”, realizado anualmente, na cidade de Mangaratiba (RJ). O evento foi incluído no calendário oficial do município neste ano. 

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Para o MPF, as declarações do líder religioso caracterizam discurso de ódio, uma vez que associa as religiões de matrizes afro-brasileiras à desgraça e à degradação. Segundo a ação, o discurso beligerante associou, por exemplo, a representação de Iemanjá a toda sorte de coisas maléficas que possam ocorrer ao município.

A ação aponta que o pastor também convocou seus fiéis para uma espécie de “guerra espiritual”, a fim de que a Praia de Jacareí não se transformasse em “lama”, como teria se tornado a Praia de Sepetiba, após a colocação de uma escultura de Iemanjá no local. O vídeo original foi apagado do Instagram, após intensa repercussão negativa, o que não exime seu responsável do dever de indenizar, explica o procurador regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Jaime Mitropoulos.

Os fatos ensejaram o Registro de Ocorrência na Delegacia de Polícia Civil de Mangaratiba. A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão também determinou a remessa de cópia para apuração na área criminal, tendo em visto o artigo 20, parágrafo 2º, da Lei nº 7.716/89. A norma define como crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, prevendo uma pena que pode chegar a cinco anos, caso o delito seja “cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza.

Racismo cultural e religioso

De acordo com apuração no âmbito cível, foram violados direitos de grupos historicamente vulnerabilizados pela chamada intolerância religiosa e pelo racismo cultural. Na ação, a PRDC/RJ destaca que o discurso constitui cristalina discriminação contra as manifestações culturais afro-brasileiras, à medida que desumaniza e associa a valores negativos por meio de estereótipos e estigmas discriminatórios, demonstrando que as vítimas devem se “comportar de acordo com as expectativas criadas e lugares socialmente atribuídos a elas” por quem se imagina numa posição de superioridade social”, destaca o procurador Jaime Mitropoulos.

Segundo a petição inicial, comunidades tradicionais e minorias culturais têm o direito de praticar sua própria religião, de viver e se expressar de acordo com sua identidade cultural, de manter e preservar seus direitos à consciência, identidade e memória. Por outro lado, o Estado tem o dever de salvaguardar a diversidade das expressões culturais, nos termos dos artigos 215 e 216 da Constituição Federal e da Convenção Para Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.

No caso sob enfoque, as ofensas dirigidas contra as religiões de matrizes afro-brasileiras e a declaração de guerra espiritual foram motivadas a partir da notícia de que o município de Mangaratiba estabeleceu que o evento “Águas de Axé” passou a integrar o calendário oficial da cidade. A celebração ocorre todo dia 20 de janeiro e tem como objetivo promover a cultura afro-brasileira e incentivar a reflexão e a conscientização acerca do necessário enfrentamento ao racismo, discriminações e intolerâncias correlatas, bem como sobre a importância de se estimular a cultura do respeito pela diversidade.

No caso da ação ajuizada, fazendo valer sua posição de líder religioso, em um culto assistido por dezenas de fiéis e publicado na internet para um número incalculável de pessoas, o autor das ofensas proferiu discurso que discrimina, deprecia, humilha, estigmatiza e demoniza. Para explicar o fenômeno, o procurador lança mão de abordagens feitas por estudiosos do tema, como Muniz Sodré e Frantz Fanon, que entendem o racismo religioso como vertente do racismo cultural.

Nessa mesma linha, a antropóloga Rosiane Rodrigues aponta que os adeptos das tradições de matrizes africanas enfrentam discriminação não apenas por sua religião, mas também por sua identidade étnica e pelo conjunto cultural relacionado ao modo de viver dessas comunidades. Rodrigues evidencia como os meios de comunicação são utilizados para propagar discursos e ações que visam a exterminar as práticas tradicionais desses grupos, abrangendo, inclusive, a desterritorialização e o apagamento cultural. Por sua vez, Maria Lúcia Montes entende que tal sistemática constitui verdadeiro “etnocídio, na medida em que visa à eliminação que vai além das manifestações religiosas, objetivando solapar a identidade e o universo cultural de povos e comunidades tradicionais”.

A ação também aponta dados que mostram o constante crescimento da violência em face das religiões de matrizes afro-brasileiros nas últimas décadas. A recorrência de gravíssimos fatos motivou a elaboração da Nota Técnica no 5 de 2018, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, na qual destacou-se que o proselitismo destrutivo contribui decisivamente para o aumento dos casos de intolerância e racismo religioso, conforme também foi abordado, em setembro de 2019, durante o evento “Perseguição religiosa: um estado de coisas: cenários e desafios”.

A ação está fundamentada na Constituição Federal e em diversas convenções e declarações internacionais, como a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, na Lei Antirracista (Lei n 7.716/89) e no Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010). A ação cita a obrigação do Estado brasileiro de buscar reparações contra a discriminação odiosa, o racismo e a intolerância religiosa, bem como de proteger a dignidade da pessoa humana, as minorias étnico-culturais, além de preservar a democracia contra atos fundamentalistas que pregam o aniquilamento da diversidade cultural e o pluralismo religioso.

Novos dados e perspectivas

Em 2024, apenas no primeiro semestre, o Disque 100 recebeu 91% dos registros de violações computadas em 2023, sendo certo que, das quase duas mil violações denunciadas, as religiosidades afro-brasileiras são o principal alvo dessa intolerância. 

Recentemente, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, voltou a abordar o tema, frisando que a disseminação do discurso de ódio tem contribuído para a desterritorialização de comunidades, não raro impedidas até usar suas vestes brancas em locais dominados por facções criminosas, que passaram a utilizar a segregação de seguidores das religiões de matrizes afro-brasileiras e um discurso pseudo-religioso para legitimar seus domínios em muitas regiões dominadas da cidade do Rio de Janeiro.

Em julho deste ano, a PRDC/RJ realizou o seminário “Por que precisamos falar de genocídio negro?”. Organizado em parceria com a iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), o debate procurou refletir sobre as formas de violência praticadas contra a população negra no país, abordando também a questão dos apagamentos culturais e a intolerância religiosa decorrentes do racismo.

Fonte: MPF

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