O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu acolher uma denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e mais sete indivíduos, acusados de envolvimento em uma suposta tentativa de golpe de Estado. Esse processo é visto por especialistas como um marco na história da democracia brasileira, pois será o primeiro julgamento de um ex-chefe de Estado e de militares de alta patente por alegações de conspiração contra a ordem constitucional. No entanto, mesmo diante da relevância do caso, o cientista político Fernando Limongi expressa cautela em sua análise.
Embora reconheça que houve uma tentativa de golpe, ele alerta para um desbalanço preocupante entre os Poderes da República. Em entrevista ao jornalista Leandro Prazeres, da BBC News Brasil, Limongi afirmou que há elementos suficientes para levar Bolsonaro a julgamento, mas criticou o que considera uma politização excessiva do Judiciário. Segundo ele, decisões como a do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que em 2023 declarou Bolsonaro inelegível, podem minar a credibilidade do STF e fortalecer a ideia de que o ex-presidente está sendo alvo de perseguição.
Veja também
Trump dobra aposta e ameaça China com tarifas adicionais de 50%
Limongi também comentou sobre a queda na popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e as perspectivas para as eleições de 2026. Para ele, a desaprovação de Lula segue um padrão semelhante ao de outros governantes em cenários econômicos difíceis, como o ex-presidente dos EUA Joe Biden.
Na opinião do especialista, a inflação é o ponto mais vulnerável do governo atual. Apesar disso, ele acredita que Lula ainda é um forte candidato para a próxima disputa presidencial. O cientista político também ressaltou a dificuldade da esquerda em promover novas lideranças, embora destaque que esse não é um problema exclusivo desse espectro político. Por fim, avaliou que as ações de Bolsonaro nos próximos anos serão cruciais para definir o rumo da direita no país.
BBC News Brasil – Faz pouco a Primeira Turma do STF aceitou uma denúncia contra o ex-presidente Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado. Muita gente à esquerda e no universo acadêmico comemorou. Na sua avaliação, há algo a ser celebrado?
Fernando Limongi – Não propriamente. Termos um ex-presidente que está sendo processado não é algo para ficar feliz. Melhor seria não ter tido uma tentativa de golpe e não ter tido um presidente com essa inclinação. Por outro lado, dado que ele tentou dar um golpe ou que, pelo menos, há essa suspeita, o fato de o Supremo abrir o processo é uma boa notícia. Mostra que estamos atentos a isso.
Na sua avaliação, houve uma tentativa de golpe?
Do meu ponto de vista, sim. Houve uma tentativa de golpe e de desrespeito ao resultado das urnas. Bolsonaro fez um questionamento consistente, desde antes das eleições, levantando suspeitas sobre o processo eleitoral. […] Há bastante indícios de que ele deve ser investigado e julgado. Mas quem vai decidir se houve ou não tentativa de golpe são os juízes do Supremo.
Bolsonaro e alguns dos seus apoiadores afirmam que ele é alvo de uma perseguição político-judicial. Na sua avaliação, esse argumento tem fundamento?
Não tem fundamento. Há indícios suficientes [da atuação de Bolsonaro na suposta tentativa de golpe]. Tem uma delação premiada feita pelo braço direito dele [o tenente-coronel do Exército e ex-ajudante de ordens Mauro Cid] dizendo que houve uma tentativa de golpe. Existem documentos suficientes para levantar suspeitas, há uma minuta e várias falas nesta direção.
Se isso é suficiente para provar que houve a tentativa de golpe ou não, isso já é uma questão judicial […] Essa argumentação de que ele está sendo perseguido injustamente não cabe […] O problema que vemos nisso tudo é que as questões políticas brasileiras estão sendo judicializadas e Bolsonaro não é o primeiro ex-presidente a enfrentar problemas judiciais. Lula enfrentou, foi preso e depois foi solto. O que eu vejo com preocupação é o fato de nossas divisões políticas estarem sendo resolvidas pelo Supremo.
Em 2018, Lula ficou de fora da disputa presidencial por uma decisão judicial. Em 2023, o TSE declarou Bolsonaro inelegível e ele poderá ficar de fora das próximas eleições. Pode, inclusive, ser preso se for condenado pelo Supremo. O que isso diz sobre nosso sistema político?
O que aconteceu com nosso sistema político foi uma forte judicialização, saudada como positiva por uma boa parte dos analistas. Eu nunca vi isso com bons olhos. A Operação Lava Jato nasceu como uma operação judicial, mas ela era claramente politizada e o grande objetivo dela sempre foi prender o Lula. Esse tipo de ação judicial é muito negativa […] Nossos poderes estão desequilibrados e desequilibrados em favor do Judiciário.
Quando Bolsonaro foi condenado pelo TSE, eu talvez tenha sido uma das poucas pessoas que criticaram a decisão […]. Havia a politização excessiva do Judiciário para retirar um ator político relevante da disputa. Já no caso da tentativa de golpe, estamos diante de outro tipo de evidência. Neste caso, a situação muda qualitativamente. Uma coisa é fazer discurso para embaixadores contra as urnas […] Agora, estamos diante de uma tentativa de golpe e isso não pode ser aceito […] Se Bolsonaro for condenado, ele deve ficar fora do processo eleitoral de 2026.
Essa suposta politização da decisão do TSE pode contaminar a visão que se possa ter sobre o julgamento da suposta tentativa de golpe no STF?
Politicamente, eu preferia que não tivesse havido a decisão do TSE porque isso fortaleceria o julgamento do STF sobre a tentativa de golpe […]. Essa decisão do TSE dá possibilidade de os defensores de Bolsonaro dizerem que ele está sendo perseguido.
Na sua avaliação, a decisão do TSE enfraquece a legitimidade do julgamento do STF?
Acho que sim. Ou, digamos assim: dá espaço para que Bolsonaro e seus aliados digam que ele foi perseguido. Mas isso é o de menos. O fato é que ele tentou um golpe e isso não é admissível […]. Se há alguma função que o Supremo deve desempenhar, aqui está o momento de agir […]. Acho que o Supremo intervém demais e desbalanceia o sistema político brasileiro. Tudo vai bater no STF. E todo presidente agora sabe que precisa nomear um membro do Supremo que seja partidário, alguém que vai defendê-lo. O Supremo se tornou um ator político- partidário e isso vai enfraquecer a decisão do STF com relação ao Bolsonaro porque todo mundo interpreta as decisões do Supremo, acertadamente, como partidárias.
Por tudo isso o que o senhor mencionou, esse julgamento ajuda a pacificar ou a inflamar o país?
O país não está inflamado. As pessoas estão vivendo, pegam ônibus, fazem suas coisas. Não tem nenhuma iminência de guerra civil ou algo como isso. Podemos falar que há algumas opiniões mais extremadas que antes, mas a vida segue tranquila. O que faz com que esse golpe possa ser julgado é o absurdo dele […] Esse golpe era totalmente palaciano. Era sobre a preservação no poder daquele grupo político pelo temor do que está acontecendo agora. Era pelo temor de serem responsabilizados pelas decisões que tomaram, especialmente, durante o período da covid-19.
Quais podem ser as consequências de um julgamento num contexto em que, segundo o senhor disse, a população já vê o julgador como um ator partidário?
Há esse problema de legitimidade do Supremo, mas o Supremo tem que cumprir seu papel. E, neste caso, o seu papel é punir quem cometeu crimes contra a democracia. É inadmissível que alguém que tentou um golpe possa continuar a disputar eleições porque se ele ganhar eleições no futuro, ele vai tentar outro golpe ou vai tentar consolidar o seu poder. Estamos assistindo a isso […].
Seria melhor que o Supremo estivesse mais supremo, mais superior, mas neste caso não é isso que vai acontecer. Agora, uma coisa que fortalece a posição do Supremo e enfraquece os bolsonaristas é que isso já ocorreu no passado. Quando foi condenado, Lula foi para a prisão e cumpriu sua pena. Quem mudou de posição foi o próprio Supremo.
O senhor já disse que, em 2018, houve um erro ao formularem a ideia de que seria preciso tirar Lula da disputa política porque ele representaria uma ameaça à democracia. Como o senhor avalia o argumento de que, agora, seria preciso tirar Bolsonaro da disputa por ele representar um risco à democracia?
No caso do Lula, ele nunca representou um risco para a democracia. Tanto é que ele é presidente hoje e não está ameaçando ninguém. O que houve foi uma invenção vocalizada e amplificada como se o PT fosse bolivariano, seguindo a tradição de Evo Morales ou Nicolás Maduro. O PT é um partido eleitoral […]. Mas, neste momento, estamos diante de uma tentativa de golpe. Temos uma minuta e vários outros elementos que dizem que ele [Bolsonaro] é antidemocrático. E ele sempre foi. Estamos em outro departamento. Por isso, é importante que o julgamento seja feito com todos os cuidados que um julgamento desse tipo pede, com bastante provas e fundamentação.
Saindo do tema Bolsonaro… os dados oficiais indicam que o Brasil tem registrado taxas relativamente baixas de desemprego, a renda do trabalhador tem aumentado e o Produto Interno Bruto (PIB) tem crescido acima do que avaliavam alguns analistas. Ainda assim, o presidente Lula enfrenta uma crise de popularidade. O que explica esse fenômeno?
Penso que o que acontece aqui é similar ao mesmo problema que [Joe] Biden [ex-presidente dos Estados Unidos] enfrentou. Se você olhar para as estatísticas nos Estados Unidos relativas a emprego e ao crescimento da economia dos Estados Unidos no ano passado, são positivas e semelhantes às que Lula tem hoje. Isso até levou a uma expectativa de vitória dos democratas, mas o que aparentemente afeta é a inflação. E não falo da inflação oficial, mas aquela que é sentida no bolso do consumidor. Falo do preço do ovo, do tomate, da carne, do café…
E esse é o tipo de cenário que é possível reverter?
Sim. Isso [crise de popularidade] é um fenômeno de curto prazo. Quando começaram as pesquisas em 2022, Lula aparecia bem à frente de Bolsonaro e havia gente prevendo uma vitória fácil porque a economia estava muito mal. Bolsonaro, então, ativou a economia de forma bem irresponsável, no espírito populista que a direita acusa a esquerda de fazer, soltou gastos do Estado […] a economia deu uma recuperada e ele foi se aproximando do Lula.
O curto prazo é muito influente e não tem nada decidido nas eleições presidenciais. O principal fator [a decidir as eleições], na verdade, vai ser a coordenação na direita e o quanto Bolsonaro vai atrapalhar a direita. Se Bolsonaro insistir em ser candidato ou quiser controlar seu candidato, impondo alguém em desacordo com a opinião pública, ele pode favorecer o Lula.
Na sua avaliação, qual a melhor estratégia para a direita e que papel Bolsonaro deveria desempenhar em 2026?
Eleição presidencial no Brasil é bipartidária por definição e tem sempre um azarão tentando correr por fora. Se o presidente concorre à reeleição, a oposição tem que se unir para fazer frente a esse candidato que é muito forte porque ele já foi eleito e tem a máquina do Estado. Se essas forças se desagregarem, isso dará vantagem para Lula.
O quanto Bolsonaro é um ativo ou um passivo para a direita na atual conjuntura?
Depende do comportamento dele. Ele vai ter que ser, pela primeira vez, generoso. Se ele não puder concorrer, tem que confiar em alguém que vai representá-lo e não querer impor um nome que ele invente e tire da cartola.
Para além da inflação, tem algum outro elemento que explique a baixa popularidade de Lula?
Numa eleição altamente disputada como sempre são as eleições presidenciais no Brasil, até dor de dente explica uma diferença [eleitoral]. Em toda eleição, há uma briga para saber o que foi que determinou o resultado […]. A gente sabe que a economia é o principal fator de voto no Brasil e ele tem impacto sobre o curto prazo. O eleitor é míope e avalia [o governo] pelos últimos semestres. Tem uma boa parte dos eleitores que já está decidida. Pode ser eleição do clube de bocha do bairro, condomínio, o que for. Esse eleitor vai votar para o PT ou para o Bolsonaro. O eleitor que realmente vai decidir a eleição flutua e ele flutua de acordo com a conjuntura.
O governo reclama da fatia do orçamento que está sob controle do Congresso Nacional por conta das emendas parlamentares. É uma reclamação justa?
Uma parte do orçamento estar na mão do Legislativo não é, em si mesmo, um problema. Não é como se a decisão do Executivo sobre alocação de recursos seja sempre mais bem qualificada que a do Legislativo. A decisão do legislativo é sempre mais complexa porque ela é coletiva e tomada à luz do público, ou pelo menos mais do que aquela tomada pelo Executivo, nas burocracias estatais e sem visibilidade.
O que está acontecendo agora começou no período Bolsonaro e foi herdado pelo Lula. A questão é que um grupo de parlamentares tomou conta de uma parte considerável do orçamento. Eles tem know how e sabem como fazer a execução dessas emendas. Esse grupo estava reunido em torno de [Arthur] Lira e [Davi] Alcolumbre. Esses parlamentares sabem como executar e como desviar parte desses recursos para benefício próprio.
Mas o governo usa essa perda de verbas para justificar suas dificuldades de articulação política no Congresso. Esse argumento faz sentido ou é apenas uma forma de mascarar falhas de articulação política do governo?
Obviamente, ter mais recursos é sempre melhor do que ter menos. Mas não é esse o problema do Executivo com o Legislativo […] O problema para o governo é que ele tem uma maioria muito exígua. E por que não tem maioria? Porque a direita venceu as eleições legislativas de 2022 e com um grupo de deputados ligados ao bolsonarismo, com um tipo de agenda política bem diferente. Esse pessoal se fez politicamente sem tanta verba do Executivo porque eles trabalham direto nas redes sociais, lacrando, sem tanta preocupação com o oferecimento de políticas públicas e recursos. O problema do governo é não haver mais tantos deputados querendo participar do governo como havia antes. Antes, havia um centro pragmático e adesista que aderiu aos governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Lula e Dilma. Esse grupo, que era muito maleável e fácil de lidar, diminuiu de tamanho e deu lugar a uma oposição que aposta radicalmente no fracasso do atual governo.
O senhor diz que esse centro adesista diminuiu e foi ocupado, em parte, por parlamentares mais à direita que usam as redes sociais para ter contato direto com o eleitor. Por que a esquerda não consegue rivalizar com a direita nessa batalha pelo eleitorado?
É que esse eleitorado é o eleitorado que está na oposição… Não vejo como as redes sociais poderiam beneficiar mais a direita do que a esquerda.
Mas se as redes sociais não favorecem mais a direita do que a esquerda, o que explica a esquerda não superar a direita nessa disputa?
A esquerda sempre elegeu poucos parlamentares e aí temos uma realidade incontornável que é a distribuição de preferência do eleitorado. Não adianta querer que o eleitorado brasileiro seja todo ele de um determinado tipo de gente. O eleitorado brasileiro é majoritariamente conservador. Ele também é majoritariamente preocupado com justiça social e isso faz com que Lula tenha apelo e eleitorado.
A possibilidade de Bolsonaro ficar fora das próximas disputas eleitorais fez com que surgissem alguns nomes à direita como Tarcísio de Freitas (Republicanos), Ronaldo Caiado (União Brasil) e Romeu Zema (Novo). À esquerda, por outro lado, parece não haver tantos nomes competitivos politicamente. Por que a esquerda parece depender tanto de Lula?
Porque ele é o presidente e vence eleições. Mas, de fato, não houve geração de lideranças [à esquerda], mas também não houve à direita. Houve o Bolsonaro, mas ele saiu de zero a 100 em dois minutos. Quando começou a campanha, ninguém botava fé que ele poderia chegar onde chegou. Construir lideranças políticas e candidatos à presidência, em qualquer lugar do mundo, e no Brasil em especial, é muito difícil. Zema ou Caiado, em determinadas condições, podemos dizer que vão ter traço em termos de apoio eleitoral. Se não conseguirem montar uma coalizão forte e obter apoio em um bom número de Estados, eles não vão sair como candidato.
Lula vai fazer 81 anos em 2026. Na sua opinião, ele deveria disputar mais um mandato?
Isso quem deve saber é ele. Mas, se ele derrapar na rampa como o Biden começou a derrapar, isso gera um custo imenso. Mas se ele estiver bem, é o candidato mais forte da esquerda. Sendo presidente, ele é um candidato fortíssimo, não tenho a menor dúvida. […] Agora, se não for ele, eles [a esquerda] precisam, e isso precisa ser rápido, achar um candidato de consenso.
Fonte: BBC News Brasil