Rodrigo Caldas é advogado, mestre em Direitos Humanos e escritor. E-mail: autognomes[a]gmail.com
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A Arquitetura política e os inimigos da Democracia
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(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A multidão que tomou de assalto a Praça dos Três Poderes em Brasília e depredou orgulhosa os símbolos da democracia brasileira, expressa, não apenas, o descontentamento violento daqueles que tiveram o seu candidato derrotado no processo eleitoral, mais que isso, dá o testemunho histórico de que fora da política não há solução racional para os conflitos de convivência. Os conflitos de interesse, fora da política, caem no pântano da barbárie.

Brasília, o espaço arquitetônico modernista, inspirado no estilo de Le Corbusier (1887-1965) e desenhado pelo gênio de Oscar Niemeyer (1907-2012), com suas largas avenidas sem esquinas, onde as aglomerações de multidões só poderiam se dar em espaços previamente determinados para isso, como na gigantesca Praça dos Três Poderes, ao longo das décadas foi tendo seu traçado arquitetônico engolido e remodelado pelas cidades satélites. Se a Brasília de Kubitschek era modernista, a Capital Federal de hoje é a terceira concentração urbana do país, com todas as contradições urbanísticas de uma metrópole de país subdesenvolvido. Se o plano arquitetônico originário era racionalizar os espaços e eliminar os acidentes e surpresas, o curso do tempo foi modelando acidentalmente outra cidade, mais larga e populosa, mais caótica e despida do projeto arquitetônico inicial.

A Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, inspirada na Constituição Dirigente portuguesa e espanhola, foi pensada também como um projeto arquitetônico, arquitetura legislativa que tem no Estado Democrático de Direito seu modelo político, na dignidade humana seu vetor axiológico humanístico. A Carta de 1988 é chamada de dirigente porque contém as diretrizes mestras do ordenamento político e jurídico que conjugam os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, com o pluralismo político e a dignidade humana. A Constituição visou, em uma proposta ousada, conjugar liberalismo e socialismo, liberdade e igualdade.

Assim como a arquitetura da cidade que é sede dos poderes da União, a arquitetura legislativa pensada pelo legislador de 1988 foi engolfada e remodelada pela sucessão de emendas constitucionais que ultrapassam a cifra de cem. O legislador constituído redesenhou ao longo dos anos a Constituição por meio de emendas constitucionais casuísticas. Como alertava o juiz da Suprema Corte alemã, Konrad Hesse (1919-2005), a força da Constituição reside no comprometimento que uma comunidade política tem com ela, é a “vontade de constituição” que políticos e cidadãos têm em relação ao texto constitucional que lhe conferirá força vinculante. Do contrário, a Constituição se converterá em alegoria, um símbolo esvaziado de qualquer valor.

A multidão que tomou de assalto a Praça dos Três Poderes, travestidos com camisas da seleção e envoltos em bandeiras do Brasil, a um só tempo profanou a racionalidade da arquitetura modernista dos prédios dos três poderes, como a pedagogia democrática que fora pensada pelo constituinte de 88. A racionalidade do espaço arquitetônico e político sucumbiu à barbárie da turba barulhenta que não se civilizou na acrópole dos valores humanistas da democracia. A força estética da arquitetura de Niemeyer só tem significado político quando a massa popular que a habita entra na esfera pública e dá voz aos seus dissensos por meio das instituições. A Filosofia Política tem ensinado que a democracia não é o regime do consenso, mas o regime político que institucionaliza o dissenso. Em uma sociedade complexa e heterogênea de milhões de pessoas, é impossível o consenso, mas é possível erigir instituições que administrem o dissenso.

O Estado Democrático de Direito é um modelo político que permite a convivência equilibrada entre os vários segmentos de uma sociedade heterogênea. Assim, a soberania popular que está na base da democracia só é legítima quando se manifesta segundo as regras do jogo democrático. A Constituição é o contrato social que materializa essas regras. Não há no texto constitucional uma só regra que autorize um golpe de Estado. A democracia não autoriza o exercício da soberania popular para destruir a própria democracia. A negação da política é a afirmação da barbárie. Fora do jogo político da democracia o dissenso recairá em uma conflagração violenta e assassina.

A arquitetura das relações políticas tem um grande custo social e humano, a democracia é uma construção coletiva que impõe um ônus. O benefício dos direitos fundamentais e das políticas públicas que visam corrigir as desigualdades têm o encargo do respeito às instituições, mesmo que sua elite dirigente não comungue da mesma orientação ideológica do cidadão comum. A democracia aceita a divergência, institucionaliza o dissenso, só não tolera os intolerantes: os inimigos da democracia. O evangelho da intolerância é, de todos os credos, o único que não tem abrigo na acrópole da democracia.

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