Rodrigo Caldas é advogado, mestre em Direitos Humanos e escritor. E-mail: autognomes[a]gmail.com
Rodrigo Caldas é advogado, mestre em Direitos Humanos e escritor. E-mail: autognomes[a]gmail.com
ads
A Biblioteca de Babel como metáfora do mundo
Compartilhe:
(Imagem gerada pela inteligência artificial do Bing)

Jorge Luis Borges (1899-1986), escritor argentino, notabilizou-se por seus textos curtos e precisos, ao mesmo tempo carregados de enigmas, paradoxos, encruzilhadas hermenêuticas. Não por acaso suas metáforas literárias recorriam a figuras como espelhos, tigres e labirintos. Talvez, de todas as enigmáticas metáforas borgeanas, a “Biblioteca de Babel” seja a mais significativa do seu ofício de escritor. A Biblioteca de Babel é uma metáfora do mundo, ou, segundo ele mesmo sugere, o próprio mundo. No mundo borgeano, a biblioteca é constituída de infindáveis andares hexagonais, para baixo e para cima, suas prateleiras detêm todos os livros do universo, livros que registram e explicam tudo. Na Biblioteca de Babel estão todos os livros que foram escritos e aqueles que ainda serão, mundo metafórico como fractal onde cada parte possui as mesmas propriedades do todo. Escrito na década de quarenta, o conto “A Biblioteca de Babel” antecipa, segundo intérpretes contemporâneos, a internet, a biblioteca virtual que contém em si o universo inteiro compreendido pela humanidade. Em verdade, a biblioteca é o mundo interpretável através do qual os homens leem o universo, Kósmos Noetós (ordem inteligível). Borges, através da metáfora da biblioteca universal, problematiza a condição humana de intérpretes da vida e do mundo, a condição hermenêutica do entendimento humano. O homem interpreta os signos da natureza e cria seus próprios signos culturais para sobreviver e se tornar também significativo. A Biblioteca de Babel da ficção borgeana ou a internet dos dias correntes são apenas metáforas do nosso destino hermenêutico de intérpretes do texto do mundo.

Não por acaso, Borges entendia o ofício de escrever como o reverso da leitura. Um reverso complementar, pois o escritor é antes um leitor que escreve para reelaborar suas leituras. O mérito da literatura do escritor argentino não reside apenas em apontar o estatuto hermenêutico do entendimento humano, da relação complementar entre leitura e escrita. Reside, também, na capacidade de transgressão das fronteiras entre os gêneros literários. Ele transita entre o ensaio e a ficção, seus contos eruditos e filosóficos estranhamente seduziram inúmeros leitores em todo o mundo. A metáfora borgeana da biblioteca universal também nos fala da memória, da memória coletiva que ela representa. Em “Funes, o Memorioso” (Funes el memorioso), livro de contos Ficções de 1944, a memória de um homem que nada esquece e que lembra os mais comezinhos detalhes de suas vivências aponta para o pesadelo de uma memória total que de tão cheia, impede a capacidade de abstração e, por consequência, compreensão do mundo. Funes, o Memorioso, é prisioneiro de sua própria memória.

Se Borges foi um homem que viveu totalmente a literatura, seja como poeta, crítico ou contista, é conhecida também sua aversão às democracias. O caráter aristocrático do escritor argentino, sua tolerância às ditaduras, como a argentina e chilena, sombreiam sua biografia. O recebimento de uma condecoração dada por Pinochet talvez seja a razão política da negativa do Nobel de Literatura que nunca lhe foi outorgado. Ironia do destino que o maior talento literário latinoamericano do sec. XX não tenha recebido o galardão máximo da literatura ocidental. Talvez, por outro lado, não seja tão irônico assim, seu talento era eloquente demais. Borges, entretanto, não escapou a outro destino: o da cegueira congênita que herdou de seu pai, também escritor. A partir dos anos quarenta a cegueira progressiva se manifestou e tornou escura a metade restante de sua longa vida. O mestre da palavra escrita então viveu sua tragédia de ser afastado progressivamente dos livros. Borges, o bibliotecário que amava as enciclopédias, agora ouvia as histórias que eram narradas por seus amigos. Assim, aos poucos, foi construindo uma memória como a de Funes, o Memorioso. Era capaz de recitar longos trechos de memória de seus escritores favoritos em espanhol, inglês, francês e alemão. O mestre da palavra escrita fez o caminho inverso da história da literatura e paulatinamente migrou para a literatura oral, da palavra falada e memória narrativa. Assim como Homero, Borges fez-se rapsodo.

Clique aqui para ler todos os textos da coluna Direito e Literatura

A leitura do mundo e a memória são matérias-primas de uma dimensão fundamentalmente humana, aquilo que a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) chamou de “esfera pública”. A dimensão onde o homem se humaniza e através da qual tem acesso pelo discurso e pela ação. A hermenêutica da leitura e a escrita, a memória daqueles que registram e reproduzem a ação e o discurso, é o que faz a vitalidade da esfera pública: a esfera do comum pois o visível. A política é exatamente alimentada e reproduzida nessa esfera, onde os homens têm consciência da sua mortalidade. Somente através da palavra, da ação política e da memória compartilhada que a mortalidade individual é superada pela imortalidade coletiva. A política que em nossos dias é o espaço do execrável, da corrupção e da desilusão vai além de uma questão exclusivamente moral. Esse desencanto coletivo com a política e o modo contemporâneo de se fazer política, põe em questão a própria vitalidade da esfera pública. O espaço por excelência onde a humanidade se renova, produz sentido e memória. É na esfera pública que se assegura a imortalidade de uma comunidade política inteira. Em verdade aqueles que defendem ou se interessam pela política, o modo ético de se fazer política, estão defendendo a sobrevivência da coletividade a qual pertencem. A medida que a política se desencanta, como o que ocorre no Brasil e de resto na civilização ocidental, a sociedade perde sua força vital, sua capacidade de se reproduzir e gerar valores aptos a acolher os novos integrantes da espécie que a cada dia chegam para ocupar a lacuna deixada por aqueles que saem de cena. Se Hannah Arendt estava certa em apontar a “natalidade”, a vida, como categoria central da política, como sendo a necessidade de contínua renovação do espaço público, Borges, o Homero do prata, velho e cego, com sua poesia paradoxal nos ensina como a biblioteca é uma metáfora do mundo. A necessidade contínua de interpretação (hermenêutica) e a permanência da memória (mnemônica) através do coletivo (linguagem), são as bases da construção de um mundo inteligível (kósmos Noetós).

Fonte bibliográfica:

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Prefácio Davi Arrigucci Jr. Trad. Carlos Nejar- 8 ed. São Paulo: Globo, 1999.

Fonte de mídia eletrônica:

https://www.youtube.com/watch?v=sJAjpJpDW2w

Compartilhe: