O dia a dia é uma obviedade que lateja como goteira em nossas cabeças no quarto escuro. É tão repetitivo que se transforma em um movimento inercial. Ele fala por si só, como se fosse uma causa de si sesmo. Esse movimento toma conta dos nossos corpos que andam como nosso cavalo Corisco. Ele de tanto fazer o mesmo caminho já sabia voltar sozinho para sua cocheira como se fosse livre.
Inocêncio era parecido com Corisco. Depois de se acordar e tomar café toda manhã, por uma vida toda, pegava o ônibus de casa para o trabalho e do trabalho para casa todos os dias. Parecia as contas de um rosário, uma oração católica, apostólica, romana. Bem disciplinada, bem São Paulo. Ele nem sentia os 25 minutos de ida e os 50 minutos de volta, as variações eram imperceptíveis. Não aconteciam.
As paisagens estavam congeladas. O tempo passava parado. Os prédios mudavam para ficarem no mesmo lugar. Os viajantes esmorecidos. Cansados. Irreflexivos. Olhares ao longe. O dia começava e terminava sempre às 7 horas: da manhã ou da tarde. Nesse período, era tudo tão protocolar que se bebia água sem sede. Seu trabalho falava sobre o mundo, mas numa língua diferente da realidade. O mundo mesmo ficava distante.
Num desses dias, Inocêncio subiu no ônibus, na mesma parada, na mesma linha; e ao se dirigir para fazer o pagamento do bilhete, já na catraca, a cobradora fulminantemente disse: – o senhor não precisa pagar, sua idade não permite. Ele ficou parado. O dinheiro em suspenso na mão, como quem quisesse dizer: faço questão de pagar! A cobradora insistiu: – por favor, se sente nessa cadeira ao lado, as pessoas precisam passar na catraca. Ele, mudo, assentiu.
A viagem deixou de ser monótona. Ele observou as paisagens. Sentiu os trancos do ônibus: riu! Viajou mais que todo mundo. Mais que o motorista já tenha feito. Viu o tempo no corpo. Ficou tão absorto que passou da parada do trabalho. O ônibus estaciona. Seu motor desliga. Sua carroceria se acalma.
A cobradora bate no ombro de Inocêncio: – meu senhorzinho, o senhor perdeu a parada! Ele olhou para a cobradora. E sorriu com os olhos como quem agradecendo-a.