Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
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A conta é pública, mas a festa é privada (do mercado)
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Reprodução Instagram

A pandemia do coronavírus está longe de acabar. Quando imaginamos que está sob controle, uma nova variante aparece e o sinal de alerta é aceso. Mas os sucessivos avisos não foram suficientes para algo imprescindível, que é o senso de coletividade. Dessa forma, as mazelas são públicas, mas as exceções que provocam o problema coletivo são sempre privadas.

A covid-19 não foi capaz de promover um movimento de união entre as nações, muito menos dar uma pausa no processo de acumulação capitalista. Pelo contrário, durante todo decorrer da emergência sanitária, vimos as práticas mais predatórias possíveis, de confisco de cargas com respiradores a produção de vacinas para auferir lucros bilionários as empresas farmacêuticas.

Certamente, uma postura de isonomia, sem distinção geográfica e livre do determinismo econômico, produziria uma situação muito melhor no mundo e a pandemia poderia estar controlada. Porque está claro que as desigualdades econômicas, sociais e culturais alimentam o vírus e abrem espaço para variantes que se adaptam a essa falta de unidade.

A ação de combate a pandemia é desconexa e regida pela competição por mercados. Promove distorções como o continente africano ter apenas cerca de 8% da sua população vacinada. Enquanto isso, em Nova York sobram vacinas e o governo local oferece 100 dólares a quem se vacinar. É um valor que ultrapassa a renda anual das pessoas mais pobres do planeta, gente que vive com menos de 10 dólares por mês, com perspectiva de vida e capacidade de consumo tão baixas, que para o mercado pouco importa se serão ou não vacinados.

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Por mais que líderes políticos façam discursos sobre a necessidade de tratar a pandemia de forma global, não temos ações efetivas que quebrem as fronteiras e estabeleçam que não é hora para se lucrar. Em paralelo a esse cenário de calamidade e empobrecimento da maioria da população, os mais ricos ostentam ganhos da casa de um trilhão de dólares só em um ano. Esse volume absurdo de recursos é decorrente em grande parte de movimentos especulativos, baseados em ações de marketing como a corrida pelo turismo espacial.

Imagine que no meio da maior crise de saúde já enfrentada, as pessoas mais ricas do mundo destinam seus esforços para proporcionar a milionários a chance de tirar uma foto na órbita da Terra ou a construção do metaverso. Diante de problemas tão reais como a morte de pessoas por covid ou fome, tem mais valor inovações sem propósito relevante algum, que servem apenas para gerar novos espaços de consumo.

E essa é a questão que impulsiona o lado privado da covid em todo mundo, seja em Nova York ou Cabedelo onde moro. A lógica é que a pandemia é um ambiente propício para se ganhar ainda mais com a segregação. As medidas sanitárias adotadas por Governos e Prefeituras para proibir festas públicas, mas que liberam eventos privados, deixam claro a quem serve o estado. Qual a justificativa para milhares de pessoas se espremerem assistindo um show pago na Praia de Intermares, em Cabedelo-PB, cercado de uma estrutura com todo suporte da prefeitura local, mas a festa fora do ambiente privado não pode existir para controlar a pandemia?

Na verdade não existe nenhuma lógica sanitária. As duas situações deveriam ser proibidas. Ainda mais que quem paga a conta para que os eventos privados aconteçam é a grande massa pública. Afinal, as vacinas e toda estrutura de saúde é bancada pelo SUS. 

Em situações como essas sobram demagogias. Dos governantes que dizem estar preocupados com o controle da doença e, também, dos artistas. Basta lembrar que convenientemente usam discursos engajados sobre a necessidade de vacinar, de respeitar normas sanitárias, que a ciência deve ser seguida, mas diante de milhares de pessoas que pagaram para trocar suor e vírus tocam o baile.

Alguém pode dizer, mas as pessoas precisam trabalhar, ganhar seu dinheiro. É verdade, mas isso não se encaixa ao show do Alok, nem de empresas de eventos que não deixam nada de positivo num momento como esse. Não estamos falando do artista que toca seu violão num bar, com mesas limitadas e cachê simbólico. Aqui a conversa é de mercado. Porém, mesmo assim, se alguém tem que pagar essa conta não é a sociedade.

Os trilhões acumulados pelos mais ricos seriam mais que suficientes. Ou alguém acha normal a especulação desenfreada durante uma calamidade? É justo se rentabilizar com base na perspectiva de que o mundo real é cada vez mais nocivo e espaços paralelos, seja na estratosfera ou no metaverso, são a alternativa? Parece claro que a pandemia é útil e promissora para quem trata o planeta dessa forma desconectada da realidade.

A covid-19 assume papel de objeto para estabelecer mercados. Serve para condenar o lazer público, mas garante a permissividade privada com aval do poder estatal. A vacina que deveria ser um instrumento de saúde pública e controle da pandemia, passa a ser o passaporte para o consumo. 

A lógica do “deixar fazer, deixar passar, que o mundo vai por si mesmo” (“laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même”) se apresenta ainda mais dura. Com o detalhe que não é o mundo todo que pode passar, mas a parte que gerar demanda e pagar. Dessa forma, restringir o que é de ordem pública serve para direcionar ainda mais recursos aos interesses privados. Assim, explicitam qual faceta da covid lhes interessa.  E o Estado? Esse continuará a cumprir o papel histórico de servir ao mercado, seja em Cabedelo, no Rio de Janeiro ou Nova York. 

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