Rodrigo Caldas é advogado, mestre em Direitos Humanos e escritor. E-mail: autognomes[a]gmail.com
Rodrigo Caldas é advogado, mestre em Direitos Humanos e escritor. E-mail: autognomes[a]gmail.com
ads
A estética da revolução
Compartilhe:


As bases estético-literárias da ideologia revolucionária bolchevique

(Imagem: Bing Image Creator)

1- A natureza semiótica da ideologia em Mikhail Bakhtin

A foice e o martelo que figuravam na bandeira da União Soviética, remetem à história da Rússia. A foice simbolizava a força da terra, a base agrícola da sua economia; o martelo, por sua vez, o proletariado que servia de força de trabalho à indústria incipiente na Rússia. Geograficamente a Rússia, localizada no norte da Europa e tendo a maior parte de seu vasto território na Ásia, simboliza a face mais oriental e polar do mundo ocidental, a Rússia telúrica de uma natureza climatológica adversa. Natureza fria e polar que, por vezes, só é suportável por muitos russos através do consumo imoderado da vodka, a bebida nacional.

A natureza de uma climatologia polar e inóspita, os instrumentos de produção como a foice e o martelo, ou bens de consumo como a vodka, são categorias que convivem com uma outra categoria de fenômeno particular: a dos fenômenos ideológicos. Todo corpo físico pode ser percebido como signo. Os fenômenos naturais como a neve, instrumentos de produção como a foice, enxada, ou bens de consumo como a vodka ou o pão são objetos físicos que podem servir como símbolos e adquirir uma outra significação. Todo fenômeno ideológico possui um significado e remete a algo fora de si mesmo. Assim, todo objeto material que passa a refletir ou refratar outra realidade que não a sua, converte-se em signo. O objeto material que coincide com sua própria natureza e não reflete ou refrata outra realidade fora de si mesmo, não é tomado como signo e não tem qualquer significado ideológico. A foice e o martelo, em si mesmos, são instrumentos de produção, a vodka, em si, uma bebida, um bem de consumo. A foice e o martelo quando estampados na bandeira soviética, por sua vez, são signos quando passam a refletir uma outra realidade significativa, a foice e o martelo não como instrumentos de produção mas como instrumentos políticos de luta ideológica, símbolos do socialismo soviético. Podemos, com isso, afirmar que tudo que é ideológico é semiótico, remete a um signo que em alguma medida reflete ou refrata a realidade fora de si. A par da natureza, dos instrumentos de produção, dos bens de consumo, existem os signos e o mundo ideológico se circunscreve ao domínio semiótico dos signos: sem signos não existe ideologia.

Segundo a corrente de pensamento idealista e o psicologismo cultural, a consciência é a fonte da ideologia, tendo, assim, esta última natureza psicológica. Essa é mesmo a concepção dominante sobre os fenômenos da consciência e da ideologia. Sob essa perspectiva é como se a ideologia surgisse como em um lampejo mágico no interior de consciências subjetivas, servindo estas, muitas vezes, como fonte legitimadora das escolhas ideológicas. Entretanto a consciência só se torna significativa quando expressa em material sígnico, o próprio processo de significação determina a natureza semiótica do fenômeno da consciência. O significado é a tradução de um signo em outro signo, onde a consciência individual se impregnando de signos se torna expressiva. A ideologia, assim, é exterior e anterior às consciências individuais, ela reside nos signos como decorrência do processo de interação social. A consciência individual, na medida em que se estrutura semioticamente, é que passa a se expressar ideologicamente; ou seja, fora do mundo semiótico não existe ideologia, o ideológico e o semiótico se confundem e a consciência não é a fonte da ideologia nem sua sede subjetiva de validação, mas, antes, seu efeito e forma de expressão na interação social.

A ideologia, assim, não possui uma fonte infra ou sobre-humana, ela surge no domínio material e inter-relacional dos homens, relação mediada e expressa em signos. A consciência individual é um fato socioideológico, laborada através de relações sociais no interior de uma organização sociológica onde o signo é o fragmento que registra e transmite essa cadeia orgânica de relações, daí a natureza ideológica do signo. Nestes termos a consciência não pode derivar da natureza como pretende o materialismo mecanicista, onde a consciência surgiria de forma sobrenatural da organização da matéria, nem deriva a ideologia da consciência como pretende a filosofia idealista.

A realidade ideológica não é a consciência mas a realidade semiótica dos signos socialmente laborados na interação intersubjetiva. A ideologia tem uma natureza semiótica que se justapõe imediatamente acima das relações sociais e econômicas, sendo condicionada por essa base sociológica e econômica. A ideologia, assim, não é uma construção da consciência individual, é uma realidade sociossemiótica no interior da qual a consciência é uma inquilina com sua liberdade delimitada pelos termos desse contrato sociossemiótico.

Clique aqui para ler todos os textos da coluna Direito e Literatura

Apartada da consciência individual a ideologia se vincula ao mundo da comunicação, sua real natureza se circunscreve ao mundo da interação e comunicação social. Os signos ideológicos são apenas o registro dessa experiência relacional de base sociológica. Refletindo ou refratando outras realidades fora de si, os objetos materiais tornados signos, registram e transmitem o fragmento desse complexo de interações econômicas e sociais, daí o caráter relacional e vicário de qualquer signo. O signo só é signo em uma relação- o objeto material precisa relacionar-se a algo fora do seu mundo natural- e na medida em que substitui algo em relação a alguém. O exemplo da foice e o martelo na bandeira soviética é expressivo: a imagem da foice e o martelo substitui os instrumentos de produção efetivos, substituição em relação a alguém, comunidade em geral, sob uma perspectiva, luta política ideológica.

O espaço ideológico se confunde com o espaço semiótico, portanto a ideologia é um fenômeno linguístico-semiótico. Segundo Mikhail Bakhtin “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência.” Isso porque a palavra é abarcada em sua totalidade pela sua função de signo, nada existe na palavra fora dessa função semiótica. Sendo a ideologia semiótica, a palavra é a sua expressão mais sensível; em termos sociológicos a palavra é a representação mais pura das relações sociais registradas pelo signo. Mas a palavra se distingue dos demais signos por ser, dentre eles, um signo neutro. Todo signo é criado por sua função ideológica e com ela se confunde, cada domínio possui o seu material ideológico e produz os seus signos específicos, signos que só fazem sentido naquele domínio particular (notas musicais, traços arquitetônicos, formas pictóricas). A função ideologicamente neutra da palavra permite que ela se vincule a qualquer desses domínios específicos, refletindo ou refratando a ideologia desses domínios e potencializando sua comunicação. A palavra assim faz a ponte entre domínios e funções ideológicas específicas, articulando e intercambiando material ideológico entre domínios particulares como a música, artes plásticas, ciências etc. Além de traduzir experiências ideológicas regionais (domínio específico), a neutralidade ideológica da palavra permite a ela tratar adequadamente a comunicação cotidiana que não está presa a um domínio ideológico específico. A ideologia do cotidiano que abrange o caleidoscópio das diversas ideologias regionais, tem na palavra o signo dotado da plasticidade e neutralidade necessárias para articular e potencializar comunicacionalmente os mais diversos domínios ideológicos da comunicação cotidiana.

A palavra por ser a protagonista da comunicação cotidiana é também o primeiro meio de consciência individual. No que pese o conteúdo consensual da palavra enquanto signo social, a palavra em sua construção fonética depende exclusivamente do patrimônio biológico do indivíduo, o que permite a sua independência comunicacional. Nesse particular a palavra se apresenta como o material semiótico da vida interior, da consciência individual. Pode-se afirmar que é através da palavra, sua pedagogia e incorporação ao repertório comunicacional do indivíduo que se permite a estruturação de sua vida interior e maturação de sua consciência individual na medida em que esta se impregna de signos verbais.

É por estruturar a organização da consciência individual que a palavra se apresenta como instrumento da consciência. Ao se apresentar como signo fundamental da consciência a palavra acompanha todo e qualquer processo de criação ideológica. A criação de todo ato ideológico e a sua compreensão exige a mediação da palavra. Um quadro, uma música só se torna comunicativa com a atuação correspondente do discurso interior. Todas as criações ideológicas particulares e seus respectivos signos não-verbais banham-se no discurso verbal para potencializarem sua compreensão, por ex., a música não raras vezes se faz acompanhar pelo canto; as artes plásticas só se tornam compreensíveis pela crítica de arte. Nenhuma criação ideológica específica pode ser compreendida totalmente apartada da palavra.

A pureza semiótica da palavra, sua neutralidade ideológica, sua relevância no discurso cotidiano, sua potencialidade de interiorização e seu protagonismo na criação de atos ideológicos são propriedades que constituem a palavra como o signo ideológico por excelência. Mas, de todas as propriedades da palavra, é a ubiquidade social o seu traço mais relevante para os fins que o presente artigo visa abordar. O tema da ideologia revolucionária se revela através da ubiquidade social da palavra, exatamente porque esta perscruta os mais variados aspectos da vida social, permeando os mais variados tipos e gêneros de relações sociais.

Por ser ideologicamente neutra a palavra reflete o colorido ideológico de domínios culturais específicos, por ser socialmente ubíqua ela media e registra as mais variadas formas de interações sociais. A palavra, assim, tem um enorme poder de criação e registro de atos ideológicos, revelando-se a literatura, seu campo de realização estético por excelência, um terreno rico, onde as camadas geológicas das transformações ideológicas são percebidas e registradas. O objeto desse artigo é a ideologia revolucionária, como ela surgiu e se desenvolveu na Rússia no ambiente que precede à Revolução Bolchevique de 1917, bem como seu significado. Mais especificamente como a estética literária registrou e refletiu essa transformação. A escolha do terreno da estética da palavra não é casual, pois é na superfície da palavra que sensivelmente se esboça o ideológico. Antes do entendimento crítico, da elaboração das categorias no plano do discurso científico, as mudanças ideológicas já se processaram no plano da imaginação e percepção verbal. Antes de surgir estruturada e categorizada no discurso político, a ideologia revolucionária bolchevique foi sendo esboçada no plano estético e perceptual. As transformações da estética literária, dos estilos de época que antecedem a ambiência da Revolução Russa, oferecem uma importante referência nesse processo de construção da ideologia revolucionária que alterou a estrutura política e econômica da Rússia no começo do sec. XX. Os efeitos que essa mesma revolução imprime no imaginário russo, através da estética soviética no período imediato à revolução também é um importante indicativo de como essa transformação sociológica foi percebida pelo imaginário coletivo russo, traduzida em sua estética literária. A tentativa de reconstrução desse itinerário estético-ideológico que delimita e dá significação ao político será desenvolvido nos tópicos seguintes.

2- Tese: o romantismo conservador como eslavofilia (Púchkin, Gógol)

A história da literatura russa não conheceu a periodização tradicional das demais línguas modernas europeias, o renascimento, barroco, classicismo são estilos e categorizações que não encontram ressonância na experiência literária do povo russo. Sua literatura permanece oral, no sec. XI, Kiev é o primeiro centro cultural russo, após a unificação das tribos eslavas. O cisma religioso entre Roma e Bizâncio ocorrido em 1054 teve o efeito de abandonar e isolar os eslavos de rito ortodoxo. Esse fato lança a semente do dilema da cultura russa consistente em uma tendência entre o isolamento em relação ao ocidente e, por outro lado, a crença de ser a última lança em defesa da civilização cristã. A tese da terceira Roma sedimentará o terreno ideológico da unidade dos povos eslavos. Entre 1240 e 1480 o povo russo será sucessivamente submetido por invasões tártaras, em torno do sec. XV, os principados sobreviventes se agruparão em torno de Moscou em uma tentativa desesperada de sobrevivência. O credo cristão ortodoxo e a atração para Moscou do espólio do Império Bizantino converterá a Rússia na encarnação da terceira Roma, o czarismo absolutista é a fórmula eslava do cesarismo latino, só que assentado em credo cristão ortodoxo. A tradição literária russa, assim, é subterrânea e oral, registrando os embates contra invasores orientais e ao mesmo tempo dando testemunho da fé cristã. Coube aos monges de origem búlgara Cirilo e Metódio a codificação escrita dessa língua rica em oralidade, através do alfabeto cirílico. Os monges se dirigiram aos eslavos das tribos “ross” com o propósito de levar-lhes o evangelho, para isso traduziram o evangelho para a língua eslava. O alfabeto cirílico, um híbrido do alfabeto grego e latino, revela o dilema dos cristãos ortodoxos eslavos entre o isolamento e o diálogo com o ocidente, o elemento cristão evangelizador figurando como o elemento de sua unidade.

A língua russa só passará a vigorar efetivamente em meados do sec. XVIII, quando Mikhail Lomonossov compila a primeira gramática russa. Lomonossov, considerado o pai da ciência russa e que dá nome à Universidade Estadual de Moscou, foi um enciclopedista de inspiração iluminista. O compilador do russo moderno dedicou-se ao estudo da língua, da arte vitral dos mosaicos e das máquinas voadoras. Lomonossov foi um homem de ciência total que antecedeu Lavoisier no estudo da conservação das massas e desenvolveu o primeiro protótipo do helicóptero, sendo, por isso, comparado ao artista e inventor Leonardo da Vinci. A modernização da Rússia e sua abertura para o ocidente já havia se iniciado com Pedro, o Grande. A criação de São Petersburgo inspirada no modelo francês de Versailles, anuncia a era iluminista na Rússia czarista. A língua russa, então passa a confluir entre suas origens orais e eclesiásticas e o salto iluminista de Lomonossov, prenunciando o voo e o mosaico de vitrais literários que viriam efetivamente no sec. XIX com o romantismo.

O romantismo se afigura como oposição ao classicismo, esta última a estética do Iluminismo. O romantismo enquanto estilo de época é assim a expressão estética do subjetivismo individualista em oposição ao racionalismo iluminista. Se o classicismo, enquanto estética do Iluminismo, tem aspiração universalista e repercussão internacional, o romantismo, como oposição, tem vocação nacionalista. É, pois, com a estética literária do romantismo que se inicia uma filologia das línguas nacionais modernas.

“O Romantismo foi, em grande medida, uma reação contra a palavra estrangeira e o domínio que ela exerceu sobre as categorias do pensamento. Mais particularmente, o Romantismo foi uma reação contra a última reincidência do poder cultural da palavra estrangeira: as épocas do Renascimento e do Classicismo. Os românticos foram os primeiros filólogos da língua materna, os primeiros a tentar reorganizar totalmente a reflexão linguística sobre a base da atividade mental em língua materna, considerada como meio de desenvolvimento da consciência e do pensamento.” (Marxismo e Filosofia da Linguagem, pag. 112)

O ideal iluminista que ocidentaliza a Rússia na era do Czar Pedro, o Grande, é caraterizado por uma filologia internacionalista que cultiva o latim como a língua franca da intelectualidade e dos povos civilizados. A tradição literária russa, até então se construía de modo difuso e subterrâneo, através da oralidade popular. Será com o declínio do classicismo e sua filosofia iluminista que se abrirá um canal entre a tradição popular oral e a língua erudita internacionalizada. O romantismo permitirá a construção dessa filologia da língua russa moderna, o diálogo entre o gênero da poética letrada com a torrente de experiência registrada por séculos de oralidade popular.

Alexander Púchkin (1799-1837) não por acaso é considerado o pai da literatura russa e da língua russa moderna. Baixinho, moreno e de cabelos anelados, Púchkin fugia dos padrões russos. Alexander Púchkin era descendente de escravo pelo lado materno. Abram Petrovich Gannibal, bisavô de Púchkin, foi o primeiro intelectual negro da Europa. Nascido na Eritreia, Gannibal era filho do príncipe local, após a invasão turca e a destruição do principado, Gannibal foi cativo do Império Otomano e depois vendido para a Corte Francesa em um tempo em que era moda ter empregados negros servindo nas Cortes Europeias. Gannibal destacou-se por sua inteligência despertando a simpatia do Czar russo Pedro I, recebendo educação reservada à nobreza, foi incorporado à elite russa, destacando-se por sua cultura ilustrada chegando a ser general de Pedro, o Grande. Púchkin, aristocrata russo, é o ponto axial da confluência entre o erudito e o popular. O pai da literatura russa, lança as bases da filologia da língua nacional através de sua estética literária. A obra Eugene Onegin é o romance fundador da moderna literatura russa. Romance em verso, Eugene Onegin narra a história de um aristocrata ocioso, que dá nome ao livro, no meio social de São Petersburgo, a cidade mais ocidentalizada da Rússia. O tédio e ociosidade de Eugene Onegin é o retrato da frivolidade da aristocracia russa. Eugene Onegin é internacionalista como a aristocracia afrancesada de São Petersburgo. Pelo viés psicológico, o romance poético Eugene Onegin contém os gérmens da ideologia revolucionária, pois é uma história das desilusões. O dândi entediado, frio e indiferente Eugene Onegin seduz a pura e romântica Tatiana Larina mas em seguida a rejeita. Nesse ínterim, Onegin insinua-se para a noiva de seu amigo Vladmir Lensky e este, indignado, o desafia para um duelo. Eugene Onegin que a princípio reluta em se debater em duelo, por força da pressão de sua classe social, vê-se obrigado a aceitar o duelo, mata Vladmir Lensky e com a consciência pesada vende suas propriedades e abandona a cidade. Anos depois reencontra Tatiana, a moça que rejeitara, casada e se apaixona por ela, dessa vez é Eugene Onegin quem é rejeitado. O romance fundador da literatura russa, carrega a poética popular em suas entranhas, ao mesmo tempo que pinta um painel desiludido de sua elite. O amor desiludido, os duelos trágicos tingem a narrativa com traços de um realismo que servirá no futuro como matéria prima para a ideologia revolucionária, mas em Eugene Onegin o que há de verdadeiramente revolucionário é a filologia nacionalista do romantismo. Uma poética de confluência entre o erudito e o popular, onde começa a se esboçar o traço do filoeslavismo, nacionalismo russo potencializado pela existência criativa, efusiva e curta de Alexander Púchkin, que assim como Onegin, se bate em duelo, mas diferente desse, é Púchkin quem morre aos trinta e sete anos. A morte trágica de Púchkin é a poética tornada biografia, sua filologia literária filoeslavista, assim, lançaria com cores trágicas as bases da literatura russa moderna apontando o horizonte para os demais escritores.

A estética literária russa tem em Nikolai Vasilievich Gógol (1809-1852) seu autor matricial. Na literatura de Gógol estão presentes os caminhos e rotas a serem seguidos pelos escritores das gerações seguintes. O filoeslavismo típico do romantismo ganha cores vigorosas em Taras Bulba, o realismo literário começa a se esboçar no horizonte com um tom de denúncia em Almas Mortas e a sátira à burocracia estatal ganha expressividade no conto O Capote e na peça teatral O Inspetor Geral. O nacionalismo, a crítica realista e a ironia são as sementes literárias lançadas pelo sucessor de Púchkin, na literatura russa. Nikolai Gógol, homem de personalidade complexa, é de fato o primeiro escritor universal russo. Sua estética literária se inscreve na linha romântica nos estreitos limites do que prescrito por Mikhail Bakhtin, como iniciador de uma filologia da língua nacional. Essa leitura esclarece dois pontos básicos sobre Gógol: (1) Sua literatura é russa, embora Nicolai Gógol tenha nascido na Ucrânia, pois em sua época não existia o senso de nacionalidade ucraniana: Rússia e Ucrânia estavam unidas em um só bloco étnico, sendo pois descabida a disputa entre Ucrânia e Rússia pela filiação de Gógol, ocorrida no sec. XX; (2) Sua literatura é nacionalista, embora lançando as bases do realismo literário, o que lhe confere um caráter romântico. O romantismo de Gógol é mais filológico do que conteudístico, não serão portanto os temas que delinearão seus traços românticos, mas o caráter de filologia da língua nacional em Gógol. Assim, afirmar que Gógol é ucraniano é como afirmar que Kafka é tcheco, apenas levando em consideração a geografia do nascimento e ignorando que a identidade se constrói no interior de outra topografia, a da língua e de suas circunstâncias políticas. Não por acaso, Nicolai Gógol escreve em russo e aos 20 anos ruma para a grande cidade de São Petersburgo, a cidade dos Czares e da Rússia moderna idealizada por Pedro, o Grande.

As origens rurais, o misticismo, a oralidade linguística e o tema nacional são as matérias-primas de composição do épico do povo cossaco: Taras Bulba. Taras Bulba é o protagonista do romance gogoliano que leva o seu nome no título, um herói do povo cossaco que encarna seu senso de justiça, bravura e disposição guerreira. A trama narra a vida e morte de Taras Bulba na defesa de sua terra e seu povo contra um inimigo histórico, os católicos príncipes poloneses. O romance gogoliano Taras Bulba tem a sinfonia de um hino épico, cujas paisagens retratam e reportam à origem familiar de Nicolai Gógol nascido e criado no interior da Rússia profunda, rural, em um limiar onde o russo e o ucraniano se confundem. O povo cossaco retratado pela estética literária de Gógol encarna a honra e a pureza em um mundo cercado pela corrupção que ele retratará em suas outras obras, sobretudo Almas Mortas. Taras Bulba encerra assim, o ideal romântico da busca da origem como um resgate da pureza dos valores, como os românticos brasileiros do sec. XIX procuraram no índio esse elemento de pureza e de fundação da identidade nacional, como retratado em José de Alencar. Nicolai Gógol não por acaso pode ser definido como o autor matricial de literatura russa, pois nele estão os elementos nacionais, épicos, a mística religiosa, mas também a desilusão realista que retrata a corrupção da burocracia estatal e o estado de miserabilidade em que vivia o povo. Antes mesmo de Dostoiévski, Gógol é o primeiro retratista de São Petersburgo na literatura russa. A São Petersburgo de Nicolai Gógol é a cidade das sombras entre os luxuosos monumentos de mármore inspirados na arquitetura francesa. A cidade de São Petersburgo de Gógol é a cidade dos funcionários públicos medíocres e corruptos, é a cidade da aristocracia luxuriosa que promove a corrupção dos costumes. Gógol tinha a pretensão de escrever uma literatura séria e moralista, daí os temas da corrupção, burocracia e escravidão em sua literatura, mas em Gógol se sobressai o elemento irônico e humorístico, uma espécie de Machado de Assis eslavo da era czarista.

O Capote é o conto gogoliano que beira à perfeição da técnica narrativa curta, nele Gógol consegue capturar o espírito das relações burocráticas naquilo que elas têm de desumanizadoras, mecânicas, performáticas e sombrias. Akaky Akakievich é o protagonista de O Capote, um funcionário público padrão, de inteligência ordinária que tem que sobreviver com um ordenado curto. Na fria e burocratizada cidade de São Petersburgo, ter um capote, um sobretudo, é um gênero de primeira necessidade contra o rigoroso inverno, mas é também um signo exterior de distinção social. O capote de Akaky Akakievich está surrado, poído e não resiste sequer a um reparo. O seu alfaiate, alfaiate de bairro logo mais barato, lhe cobra uma boa quantia para fazer um novo. O empobrecido funcionário público se vê obrigado a economizar o que não tinha para pagar por um novo capote, uma necessidade de sobrevivência em uma cidade de inverno polar. O novo capote de Akaky o promove ante os seus colegas de trabalho que antes zombavam dele. O novo capote do modesto funcionário público vira mesmo uma sensação em sua repartição. Mas Akaky em uma noite de neve em São Petersburgo é roubado, os ladrões levam seu capote novo que lhe custou todo seu ordenado. Akaky Akakievich, funcionário modelo, recorre ao comissário de polícia, mas este lhe é indiferente, desesperado Akakievich recorre a um alto dignitário da administração burocrática, no que é prontamente humilhado ante a sua condição simplória de funcionário público de baixo escalão. A desilusão da humilhação do solitário Akakievich é tamanha que este adoece e morre, em sua repartição sua morte não é nem sentida e logo existe outra pessoa em seu lugar. Curiosamente após a morte do funcionário público começam a sumir capotes nas ruas de São Petersburgo, surgem rumores de que é o fantasma do funcionário morto em busca de seu capote roubado. O alto dignitário que humilhou Akaky Akakievich é um homem bem-sucedido, diferente do funcionário morto que destratara, ele tem uma bela família e mesmo com uma esposa fiel e amorosa, o alto funcionário tem uma amante em um bairro afastado de São Petersburgo- pois essa é a prática entre as pessoas de sua classe. Ao se dirigir para a casa da amante o alto funcionário é assaltado por uma mão que o para na rua, ao virar o alto funcionário se depara com um homem baixo, de rosto pálido como o de um defunto, de sua boca sai um hálito de sepultura que lhe diz: esse capote me pertence, pois você não me ajudou a recuperar o meu. O capote é a sátira da burocracia estatal e o retrato das sombras humanas que vagam pelas avenidas da ocidentalizada São Petersburgo. O tema da burocracia será retomado no Inspetor Geral, aí enfatizando a corrupção que acompanha a burocratização da vida, traduzida na fórmula: criar dificuldades para vender facilidades. Em Almas Mortas a burocracia e a corrupção se encontram com a sua face trágica: a miséria do povo russo. As almas mortas são os servos russos retratados em um esquema de corrupção onde todos os delinquentes saem ganhando e onde o povo termina na miséria. Almas Mortas é o romance da desilusão, do realismo social desencantado, a ironia presente na obra de Gógol se revela como um recurso de moralização instrumentalizado pela literatura.

Púchkin e Gógol eram amigos, a morte precoce e trágica de Púchkin lança seu amigo e protegido Gógol em uma crise emocional. Vários dos temas literários de Gógol lhe foram sugeridos por Púchkin. A literatura em língua russa tem em ambos, os seus pioneiros, pais fundadores. A estética literária em Púchkin e Gógol ganha um colorido que dá organicidade à tradição oral popular nas formas e figuras da literatura erudita. Púchkin e Gógol são românticos no sentido de sua insurgência filológica contra a palavra estrangeira, neles a língua russa ganha identidade nacional, nesse sentido eles podem ser categorizados como escritores românticos. A palavra, o signo ideológico por excelência, nas literaturas de Púchkin e Gógol transpõem os símbolos fundadores do imaginário nacional russo para o plano do discurso literário. A aristocracia internacionalista e desencantada russa é simbolizada por Eugene Onegin, a burocratização do Estado e a corrupção figuram em Almas Mortas, o Inspetor Geral e no conto O Capote. A estética do romantismo de Púchkin e Gógol capta a formação, o esboço, o desenho ideológico do filoeslavismo, um filoeslavismo ora exaltado, ora desiludido. Mas ali, em sua filologia da palavra nacional e nos símbolos que capturam e enfeixam os traços da cultura russa, permite-se a formulação de uma tese: o filoeslavismo como traço de identidade russa expressa no romantismo estético da nacionalização da palavra. A literatura de Púchkin e Gógol apenas registra, em sua superfície verbal, a torrente ideológica que começa a se formar. A ideologia revolucionária tem no romantismo seu nascedouro, a apropriação e nacionalização do verbo é seu primeiro ato de ruptura histórico. O sentido de uma identidade não europeia é a base etnográfica de uma agenda geopolítica que começa a se esboçar. Os signos verbais da estética do romantismo são como arquivos desse processo de formação de uma consciência filoeslavista. Não por acaso, Stalin, já no sec. XX, transformará Púchkin no herói literário nacional russo, ainda que Púchkin tenha sido um aristocrata, o que levará Máximo Gorki a defender a tese de que Púchkin era um escritor acima de classes sociais. Em sua base comunicativa, os signos verbais só se tornam expressivos quando põem em circulação as imagens (ícones) contextualizadas (índices). Os signos verbais da literatura de Púchkin e Gógol mobilizam uma torrente de imagens e contextos que formarão a base impressiva da ideologia revolucionária. Taras Bulba e suas guerras nacionalistas, os servos de Almas Mortas, o funcionário público de O Capote são as imagens que sedimentarão o primeiro impulso, a base da ideologia revolucionária.

3- Antítese: o realismo social como reação da Intelligentsia russa ocidentalista (Turguêniev, Dostoiévski, Tolstói)

O ano de 1861 na Rússia marca o início de um período de reformas empreendidas pelo Czar Alexandre II. A Reforma Emancipadora pôs termo final à servidão na Rússia, estima-se que cerca de vinte e três milhões de pessoas foram emancipadas, a abolição da escravidão no Brasil só aconteceria em 1888. O Czar Alexandre II queria modernizar as instituições russas, instituições carcomidas pela corrupção burocrática (O Capote, O Inspetor Geral) e pela servidão do povo (Almas Mortas). Aos poucos, na superfície verbal da estética literária, vai se desenhando o aburguesamento e a desilusão da sociedade russa, os motivos social e psicológico da estética realista.

A evolução dialética da ideologia se reflete na evolução semântica da linguagem, uma nova significação se descobre na antiga e através dela, com a finalidade de entrar em contradição com ela e de reconstruí-la.

Segundo sentencia Mikhail Bakhtin:

“A evolução semântica da língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo social e à evolução do horizonte apreciativo- no sentido da totalidade de tudo que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo- é inteiramente determinada pela expansão da infraestrutura econômica.” (Marxismo e Filosofia da Linguagem, pag. 131)

A necessidade de modernização da sociedade russa, a sua abertura para o aburguesamento, através das reformas liberais de Alexandre II, bem como a tensão contestadora entre gerações, notadamente a geração conservadora de 1840 e a progressista de 1860, são magistralmente captadas pela estética literária no romance mais impactante de toda a literatura russa: Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev (1818-1883). Turguêniev é o primeiro escritor russo de projeção internacional. Inicia na literatura com um livro de contos “Memórias de um caçador”, onde emerge o caráter paisagista de sua estética verbal, retratando a Rússia profunda. A peça teatral “Um mês no campo” segue o mesmo filão do retrato da paisagem e costumes da Rússia interiorana. Mas Turguêniev entrou para a história da literatura como o modernizador da literatura russa, na medida em que a ocidentaliza. O próprio Turguêniev foi educado nas universidades alemãs, país que adorava por não ter servidão. Posteriormente passou a viver na França, sobretudo quando foi acusado de ser o responsável pelas revoltas populares na Rússia, após a publicação de Pais e Filhos (1862), no que coincide com as reformas liberalizantes do Czar Alexandre II. Pais e Filhos foi o romance mais impactante da história da literatura russa por problematizar as questões que estavam na ordem do dia na sociedade russa: o conflito de gerações, notadamente a de 40 e 60, o choque entre conservadores e progressistas; o problema social da servidão; e o nascimento do niilismo como forma de protesto político.

O contexto de uma total falta de liberdade de imprensa na Rússia Czarista explica toda a relevância social que a literatura tinha entre os russos nessa época. Impedidos de ter uma imprensa livre, restritos os foros convencionais do debate político, as demandas e debates da sociedade russa migraram para o universo ficcional da estética literária. Talvez essa seja a razão sociológica da emergência de tantos titãs literários na literatura russa do sec. XIX, dos quais Turguêniev é o modernizador ao aproximá-la da estética verbal europeia. Se Púchkin e Gógol nacionalizaram a filologia da língua russa com o romantismo estético literário, Turguêniev- depois sucedido por Dostoiévski e Tolstói- é responsável pela ocidentalização da estética verbal russa, com a introdução de temas burgueses: como a liberdade civil expressa através da negação da servidão, instituição histórica russa; e a introdução da desilusão existencial através do niilismo.

O niilismo é um conceito que, embora não sendo criado, foi popularizado por Ivan Turguêniev, em Pais e Filhos. Originário da palavra latina nihil, nada, refere-se ao anarquismo materialista nascente na sociedade russa e europeia em geral, o efeito psicológico da desilusão de uma sociedade que muito esperou dos poderes da ilustração e da ciência. Essa desilusão chegou à sociedade russa na esteira da sua modernização ocidentalizante. O realismo que emerge na estética do verbo de Turguêniev, é a percepção artística do fenômeno sociológico em curso. O personagem Bazárov é o protótipo do niilista revolucionário que servirá de base para a juventude revolucionária da virada do século. Toda a literatura de Dostoiévski constituir-se-á como uma negação do niilismo moderno ocidental, através do refluxo da eslavofilia e do cristianismo que dão base axiológica à sua obra literária. Raskólnikov de Crime e Castigo e Ivan Karamazov de Os irmãos Karamázovi, serão a reelaboração do niilista prototípico de Ivan Turguêniev, Bazárov de Pais e Filhos.

O romance Pais e Filhos de Turguêniev narra o choque de valores entre gerações, inicia-se com a volta para a casa dos pais dos estudantes Arkádi e Bazárov. Vindos da Universidade, em São Petersburgo, para a propriedade dos pais no interior rural. Bazárov choca o meio rural local com seu estilo materialista e cético, não aceitando qualquer autoridade prévia, Bazárov só aceita crenças que tenham sido submetidas ao teste da experiência empírica. Os diálogos calorosos entre Bazárov e Pável, tio de Arkádi, retratam o choque de visões de mundo entre o aristocrata conservador, Pável, e o contestador anárquico, Bazárov. A narrativa se desenvolve em torno da figura libertária de Bazárov, autossuficiente e consciencioso de seus valores. Bazárov é um médico de inspiração materialista que de forma anárquica desconstrói toda a autoridade das instituições ao seu redor, o que desperta a curiosidade e desconfiança da pequena comunidade rural descrita no romance de Turguêniev- que é um microcosmo da Rússia czarista de 1860. Arkádi, amigo de Bazárov, é também um espírito contestador, mas não tão radical quanto seu amigo e por ter um espírito mais “moderado” termina por ceder aos encantos do amor. Já Bazárov vê no amor uma perda de tempo, uma armadilha biológica. As teses cientificistas, o espírito empírico e anárquico de Bazárov não resistem à imprevisibilidade do destino. Bazárov se apaixona por Ana Serguêievna, uma mulher independente, e tem a bússola autossuficiente de seus valores desnorteada pelos encantos de uma mulher. O materialista anárquico, Bazárov, que contesta toda forma de autoridade e tem uma explicação científica para tudo não consegue lidar com os mistérios dos seus sentimentos, termina de modo acidental se contaminando em uma necrópsia realizada no cadáver de um mujique. A fatalidade se abate sobre o homem de gênio indomável e a conspiração do biológico se volta contra Bazárov, ceifando precocemente a sua existência.

O niilismo eclode como ideologia de uma civilização cética, a estética literária registra a sua emergência juntamente com o sentimento de pessimismo e desilusão, expressa pelo realismo-naturalismo. O niilismo poético ganhara as cores da morte dos valores em “As flores do mal” de Charles Baudelaire, poesia do materialismo desiludido. O niilismo como estética das impressões já encontrara seus esboços em Shakespeare, na peça Macbeth. É a estética da desilusão existencial que originariamente foi captada pela intuição poética de um Shakespeare, o bardo inglês já no sec. XVII, mas será no sec. XIX que emergirá com a força radical do som e da fúria em Baudelaire. O niilismo é uma filosofia negativa que nada propõe, mas tudo contesta e destrói. O niilismo ocidental se alimenta da angústia existencial de uma civilização cansada pelo excesso de racionalidade, assim o niilismo exibe seu traço romântico de anti-intelectualismo. O niilismo estará na base do terrorismo da juventude russa que promoverá ataques contra o czar. O mesmo niilismo que servirá de elemento psicológico para forjar o caráter da ideologia revolucionária do século seguinte, já vinha sendo captada pela intuição poética e literária de Turguêniev e Dostoiévski. Esse estado psicológico não passou despercebido pela elaboração conceitual e filosófica, o niilismo ganhou traços ora ateu em Nietzsche, ora cristão em Kierkegaard. O niilismo, assim, alimentou-se do ateísmo de Nietzsche, de suas reflexões através das figuras de linguagens expressas em obras como O Anticristo, A Genealogia da Moral e Assim falou Zaratustra. Filosofia negativista do “devir” (Dasein) que teve como propósito negar todo o edifício conceitual e intelectual da filosofia ocidental centrada no logos de Platão e Aristóteles. Entre o poético e o filosófico, Nietzsche tentou negar e destruir todos os valores de uma civilização inteira, terminou louco em Weimar em 1900. O niilismo contaminou também o espírito crédulo do cristão Kierkegaard, um cristianismo cansado da civilização positivista do sec. XIX.

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) constrói uma literatura filosófica na interseção entre dois mundos, no hiato civilizatório entre ocidente e oriente. Se a Europa do sec. XIX se descristianizara pela força do positivismo científico, seu humanismo permanecia vivo através de suas instituições políticas, de sua produção cultural. A Rússia czarista nunca se humanizara em verdade, valores republicanos e a noção de direitos subjetivos nunca fizeram parte de sua cultura, mas a Rússia dos czares permaneceu cristã, um cristianismo ortodoxo que oscilava entre o espiritualismo e a exaltação revolucionária. Entre o ocidente descristianizado mas humanizado e o oriente russo que nunca conheceu o humanismo mas que permanecia cristão, Dostoiévski criou uma literatura ideológica desnorteante e lançou, ainda no sec. XIX, as questões centrais que pavimentariam as discussões filosóficas do sec. XX. Notadamente as questões existencialistas que encontrariam repercussão na obra de Sartre ou na estética verbal de Albert Camus. Em Dostoiévski o elemento estético é secundário, o que ganha evidência é o elemento ideológico. Seu primeiro romance é Gente Pobre (1846), romance epistolar que retrata o cotidiano de miséria da periferia de São Petersburgo, o irônico é que o romance epistolar de modelo francês tradicionalmente retratava a vida da aristocracia- o romance de Choderlos de Laclos, Ligações Perigosas, é exemplar nesse sentido. Em Gente Pobre, Dostoiévski utiliza a forma aristocrática do romance epistolar para retratar os marginalizados, sendo celebrado pelo crítico Vissarion Belínski como o primeiro romance social da literatura russa. A estética realista na linha do romance fisiológico foi apenas uma figuração diante do que estava por vir. Dostoiévski fundaria o romance ideológico, um romance onde o que conta é a força das ideias, onde o fundo filosófico ganha protagonismo em personagens complexos e densos. Complexa e densa foi a vida do escritor russo. Dostoiévski viveu várias vidas em uma. Foi revolucionário e chegou a ser condenado à pena de morte, comutada em trabalhos forçados no último momento, quando já estava perfilado diante do pelotão de fuzilamento. Na Sibéria cumpriu sua pena de trabalhos forçados, apresentando as primeiras manifestações da epilepsia que o acompanharia por toda sua vida. Engenheiro e militar de formação acadêmica, Dostoiévski se tornou literato, homem de letras, talvez porque só sob o abrigo delas sua vida de pressões densas se fizesse suportável. Através da biografia de Dostoiévski passam as contradições de seu tempo e de seu país. Se sua literatura é realista isso não coloca Dostoiévski na categoria dos ocidentalistas, o escritor de Crime e Castigo era um eslavófilo apaixonado, no romance em que Raskólnikov é o protagonista, é a redenção cristã que salvará a alma em conflito do herói de Crime e Castigo. Fiódor Dostoiévski pode ser considerado o pai de um novo gênero, o romance policial filosófico, Crime e Castigo tem a dinâmica de um thriller policial com uma forte base filosófica. O tema do super-homem (Übermensch) de Nietzsche é antecipado por Dostoiévski. Raskólnikov tem uma tese moral aristocrática, a humanidade se dividiria entre homens geniais, como ele e Napoleão Bonaparte, e entre os homens ordinários. O que justificaria a existência de duas éticas, na linha da ética do senhor e do escravo que seria formulada por Nietzsche. Partindo dessa premissa ética, Raskólnikov, estudante pobre de São Petersburgo, resolve matar e roubar uma velha usurária. Planeja o latrocínio, mas surpreendido pela irmã da usurária comete um duplo latrocínio que irá subverter e remoer sua saúde emocional. Raskólnikov é o super-homem doistoievskiano que é traído por sua alma e sentimentos humanos. Um herói que se autoincrimina. Um herói que mergulha no crime para se despir de suas vestes de uma moralidade superior e se descobrir pecador. O elemento religioso assalta a narrativa de Dostoiévski. Aliocha, de Os irmãos Karamazov, é a encarnação do espírito religioso russo, um jovem tomado por aspirações teológicas e virtudes éticas em uma família de celerados morais. Raskólnikov é o Julien Sorel (personagem central de O Vermelho e o Negro do escritor francês Stendhal) russo, um Julien Sorel que não quer a ascensão social como o personagem francês, mas a ascensão existencial na versão russa de Dostoiévski. O elemento existencial e teológico transita entre as duas narrativas de Crime e Castigo e de Os irmãos Karamazov, Aliocha e Raskólnikov são faces prototípicas da cultura russa. Na comparação com o pai do romance psicológico francês, Stendhal, Aliocha é o inverso de Fabricio del Dongo, protagonista de A Cartuxa de Parma, pois se Fabricio começa mundano e depois se converte à ordem religiosa, Aliocha faz o caminho inverso, começa devoto de uma ordem religiosa e depois se mundaniza.

O romance de Dostoiévski não é psicológico, segundo Mikhail Bakhtin. Em Dostoiévski tem-se o romance realista em seu estado puro. Se a realidade da comunicação verbal é o diálogo, o dialogismo, em Dostoiévski a natureza fundamental dialógica da comunicação verbal é mantida em sua integralidade complexa. Assim, os monólogos dos personagens nos romances de Dostoiévski são, em verdade, diálogos disfarçados de monólogos, o que confere o tom de irredutível ambiguidade aos personagens dostoievskianos. O dialogismo permanente e complexo da narrativa de Dostoiévski produz um efeito inovador na estética verbal, os personagens dostoievskianos estão todos em pé de igualdade e o narrador não exerce uma função onisciente na narrativa. A polifonia, segundo Bakhtin, é o traço marcante do romance ideológico de Dostoiévski. Uma narrativa aberta e de valores variados, o que não se permite uma interpretação única e fechada. A ambiguidade semântica é o efeito linguístico da profusão ideológica do romance dostoievskiano. O Idiota, centrado na figura do príncipe Míchkin, é o ponto exemplar dessa confluência entre dois mundos. Míchkin, o Don Quixote dostoievskiano, é a encarnação do ingênuo que com uma sinceridade desconcertante abre as entranhas da complexa cena das relações sociais em São Petersburgo. Míchkin é quixotesco em sua aparência e pureza, mas é um cristo moral que termina sendo crucificado em sua aventura. A crucificação do príncipe Míchkin é a regressão ao seu estado de letargia epilética no embate com a força da moral que rege as relações aristocráticas. Em O Idiota, a descristianização dos valores ocidentais entra em choque com o cristianismo ortodoxo, a desumanização dos valores aristocráticos crucifica o quixote da aristocracia russa. Dostoiévski sacraliza o romance sem deuses da era niilista, sua rebeldia residiu em ser conservador e cristão em uma época onde Deus, segundo vaticínio de Ivan Karamazov, estaria morto- antecipando as especulações nietzschianas.

Em Dostoiévski, as contradições civilizatórias ficam evidentes, o realismo estético não é uma antítese pura ao romantismo eslavófilo. Antes, o realismo em Dostoiévski se apropria do seu antípoda sem negá-lo. A tensão dialética tese-antítese é uma constante na obra dostoievskiana. O filoeslavismo de Dostoiévski convive com seu realismo estético, ganhando uma coloração revolucionária. Seu realismo tem um sentido muito específico como descortinado pela leitura arguta de Mikhail Bakhtin, seu realismo é dialógico, sua estética se expressa pela ambiguidade semântica, sua ideologia é revolucionária em seu nacionalismo antiocidental. O traço da ideologia revolucionária na obra de Dostoiévski ganha contornos complexos, esboça os traços, o desenho de uma dialética contraditória, uma dialética de tensão permanente onde a tese eslavófila e a antítese ocidentalista vivem uma integração conflitiva, em sua superfície formal o realismo sugere o conflito psicológico, em sua profundidade filosófica, a dialética conflituosa da obra de Dostoiévski resgata a tradição popular russa, seu traço de romantismo filosófico tomado por um impulso de revolução espiritualista.

Se Dostoiévski teve o tom do metafísico, Leon Tolstói (1828-1910) construiu uma literatura de fundo pedagógico e moralista, um moralismo de base cristã e rebelde aos dogmas. Se Dostoiévski construiu metafísicas e antecipou questões existencialistas, Tolstói dissecou almas e lançou as bases de um anarquismo pacifista. A ideologia revolucionária que vem se desenhando, esboçando na superfície da estética verbal russa, ganha um diálogo com o cristianismo mais naturalista, em Tolstói. A face niilista e destrutiva da ideologia revolucionária, retratada pela literatura em Turguêniev e Dostoiévski, ganha um traço de busca de transcendência moral em Tolstói, sem perder o caráter pessimista com as convenções e instituições russas (A morte de Ivan Ilitch e Sonata a Kreutzer). A expressão política da estética de Tolstói se dá na forma de um anarquismo que clama pela volta ao naturalismo, uma espécie de socialismo primitivo de base cristã. Leon Tolstói é normalmente conhecido por Guerra e Paz, romance que assinala o nascimento de um novo gênero literário, em alguns aspectos antecipando o modernismo do sec. XX, ou por Anna Karenina, que muitos veem a temática do feminismo ou o reflexo de Gustav Flaubert, autor de Madame Bovary. Os grandes painéis literários de Tolstói retratam os conflitos do sec. XIX, o épico Guerra e Paz narra a campanha napoleônica da Rússia de 1812, um romance histórico. Em Guerra a Paz a dicotomia e os pares de opostos dão a tônica da narrativa. Uma narrativa híbrida que mescla a literatura ficcional e o ensaio. O tom realista em que Tolstói retrata os protagonistas históricos como Napoleão Bonaparte e Mikhail Kutuzov, desconstrói qualquer tentativa de idealização histórica. A aristocracia russa desfila pelo amplo painel literário de Guerra e Paz, uma narrativa transbordante de personagens e temas que engloba as questões-chave do sec. XIX: a servidão, a guerra, as sociedades secretas. Guerra e Paz é a dicotomia que dinamiza a história em pares de opostos, uma história complexa e transbordante.

Anna Karenina é a versão russa de Madame Bovary, o realismo psicológico de Flaubert reverbera em Tolstói e ganha a potência de um anatomista das relações sociais e da alma humana. A anatomia das relações sociais reside na descrição minimalista das convenções e do complexo código social que normaliza as relações humanas entre a aristocracia czarista, a qual Anna Karenina pertence. Anna Karenina é aparentemente feliz e bem-sucedida, aristocrata e bela, Anna Karenina vive um casamento convencional sem preocupações e ostentando signos exteriores de poder, casada com um alto burocrata. A anatomia das relações sociais se prenuncia desde o primeiro período da longa narrativa: todas as famílias felizes são felizes do mesmo modo, cada família infeliz, é infeliz de um modo particular, eis a ideia que Tolstói lança já como premissa inicial de Anna Karenina. A infelicidade conjugal de Anna Karenina é a infelicidade da previsibilidade de um relacionamento de ritos marcados e antecipados. Anna Karenina, assim como Madame Bovary, anseia pelo novo, pela surpresa, o amor romântico surge como um desafio anárquico diante das convenções sociais. O individualismo moderno, a subjetividade das escolhas em tensão com a objetividade social das convenções são os valores em conflito ao longo da narrativa mais popular de Leon Tolstói. O conde Vronsky encarna os valores da ousadia e virilidade que arrebatam o coração ansioso e entediado de Anna Karenina, amor anárquico que desafia as convenções. Os conflitos desses valores tensionados chegam ao paroxismo e Anna Karenina encontra não o amor idealizado das escolhas subjetivas, mas a loucura e o suicídio como sequela das convenções imperiosas. Entre o amor e a loucura, Anna Karenina dissecou a alma humana em seu jogo de duplos e antinomias, onde a força da convenção, ainda que revestida de hipocrisia, triunfa sobre a nobreza dos sentimentos subjetivos. Anna Karenina, incapaz de viver o amor que escolhera, prefere se atirar à morte diante dos trilhos de uma locomotiva, símbolo das transformações do sec. XIX.

Se Anna Karenina é o drama feminino da mulher aristocrata, Ressurreição é a face marginal da opressão feminina que termina por descortinar outros dramas: o do sistema penal czarista. Em Ressurreição, Dmitri, o aristocrata, envolve-se sexualmente com uma criada, Maslova, para depois rejeitá-la dado o abismo social entre ambos. A criada é despedida e, tempos depois, ele a encontra no banco dos réus, sendo julgada pela vida de crimes na qual ele a atirou. Maslova pura e ingênua que buscava o amor nos braços do aristocrata Dmitri, converteu-se em uma criminosa desiludida, condenada pela sua condição social. Em Ressurreição a consciência pesada e remoída de Dmitri descortina a brutalidade do sistema penal czarista onde a pobreza era criminalizada, onde vidas eram destruídas em contraste com o mundo perfumado e reluzente da aristocracia em que Dmitri vivia. Não é só o sistema penal que é despido, mas as instituições religiosas, amigas do poder e dos poderosos. O romance Ressurreição de Tolstói carrega a nítida expressão da consciência social em uma sociedade desigual, brutal e violenta. Leon Tolstói, seguindo sua filosofia de vida, havia renegado seus direitos autorais, mas revê sua decisão anterior e conclui o romance Ressurreição, negociando os direitos autorais para destiná-los integralmente à causa dos Doucobores, russos pacifistas perseguidos pelo governo czarista e que pretendiam migrar para o Canadá. A doação de Tolstói foi decisiva para financiar a migração e salvação de milhares deles.

Em A morte de Ivan Ilitch, Tolstói disseca a alma humana ao contrastá-la com a superficialidade e fragilidade das convenções sociais. Em uma narrativa curta- comparada com as grandes narrativas de Guerra e Paz, Anna Karenina e Ressureição- A morte de Ivan Ilitch é uma narrativa densa, nauseante, sufocante e trágica em que o juiz Ivan Ilitch tem sua vida descrita com a força desnorteante de um homem moribundo que vê a vida lhe escapar aos poucos, despindo toda a artificialidade da realidade em que ele julgava viver. Tolstói parte da imagem de um juiz morto, velado em seu féretro por sua mulher e filhos. É como se Tolstói indagasse ao leitor: quem foi aquele respeitável homem que jaz ali?! Retrospectivamente o escritor russo narra a realidade de um burocrata russo. As vaidades e rivalidades por altos postos na burocracia czarista. A origem aristocrática e as qualidades intelectuais de Ivan Ilitch lhe destinam a uma boa posição social. Uma situação financeira confortável, uma mulher bela e com dotes e filhos bem encaminhados. A descrição de uma vida de vaidades e futilidades que cercam a burocratização do poder. A doença súbita de Ivan Ilitch, sua decadência física em poucos meses, a dependência de cuidados de criados e da família mostram a irrealidade em que Ivan Ilitch vivia e a qual devotara suas melhores forças. O talentoso e inteligente Ivan Ilitch, juiz de direito e alto burocrata, via-se em sua realidade impotente diante de uma morte que, aos poucos, iria lhe envolver, sufocar, maltratar até o limite da loucura. Seu alto cargo, amigos, a mulher e os filhos se revelavam agora sem máscaras, despidos dos códigos e jogos de convenções e interesses. Ivan descobriria na doença a sua real falta de relevância naquela realidade em que ele se julgava importante e central. A morte de Ivan Ilitch pode ser lida também como uma profunda meditação sobre a vida e a morte, uma reflexão sobre a irrelevância das convenções e o jogo de máscaras que regem as instituições humanas.

Em Sonata a Kreutzer, Leon Tolstói reconstrói através do diálogo em um vagão de trem a narrativa de um uxoricídio. A sonata a Kreutzer é uma ampla reflexão sobre as dificuldades da vida conjugal. O embate de egos e as paixões positivas e negativas que permeiam qualquer relacionamento entre homem e mulher. Em Sonata a Kreutzer, Tolstói, na forma de um diálogo platônico, defende suas teses sobre o matrimônio segundo uma vertente cristã. A sonata a Kreutzer tem um claro tom moralista e doutrinador. Tolstói demonstra seu talento de grande narrador, o romance descreve com preciosismo e minimalismo a transformação de ciúme em impulso homicida. Pózdnichev é o narrador protagonista que descreve como sua mulher o levou a matá-la. A narrativa de Tolstói disseca por dentro as paixões que servem de base ao consórcio conjugal. A narrativa na perspectiva do marido que mata sua esposa por acreditar que era traído e depois é absolvido pela sociedade é anacrônica no sec. XXI, mas Tolstói pensava as relações de seu tempo, um homem nobre e proprietário de terras na Rússia da virada do sec. XIX para o XX. O título do romance remete a uma obra musical de Beethoven, obra que traduz o estado de espírito do seu narrador. É uma narrativa cujo mérito persiste pela forma com que o escritor russo conta a história e menos pela sua temática e conteúdo. O tom moralista e cristão se revela com a defesa do celibato e da virgindade como valores que devem reger a vida do homem e da mulher. A sonata a Kreutzer, antes, revela os conflitos conjugais experienciados pelo próprio Tolstói que sempre viveu um relacionamento conturbado com sua mulher. A ambiência conturbada e passional da sonata de Beethoven parece acompanhar o velho escritor russo que no capítulo final de sua biografia foge de casa após uma das inúmeras brigas conjugais e dias depois é encontrado morto em uma estação de trem. A morte de Tolstói é a metáfora viva, em certa medida, da morte da grande literatura russa de escritores universais.

Com Turguêniev, Dostoiévski e Tolstói, a estética literária russa agrega a antítese do realismo, um realismo que emerge das turbulências da sociedade czarista que já demonstrava cansaço e desilusão, sobretudo com a abertura e maior contato com os centros da Europa ocidental. O aburguesamento de uma sociedade até então basicamente rural semeia questões e conflitos tipicamente urbanos. O realismo é só a face estética da ideologia ocidental que introduz no imaginário russo a noção de liberdade individual até então sufocada por suas pesadas instituições burocráticas. Esse realismo não é somente subjetivo e individual, é sobretudo social o que faz crescer a noção de necessidade de uma maior igualdade política em uma sociedade acidentada pelas desigualdades brutais entre sua nobreza de base agrária e a massa de mujiques escravizados pela mesma terra que enriquece uma minoria. Nesse aspecto, o realismo estético literário russo, que em alguns momentos chega ao naturalismo, descreve em sua coloração estética um outro traço, um outro carácter que entra em uma tensão dialética com o nacionalismo filoeslavista já presente em Púchkin e Gógol, é a aspiração da modernização das vetustas instituições burocráticas czaristas. O outro traço da ideologia revolucionária que se desenha na literatura russa é a conscientização da necessidade de igualdade e modernização política. A literatura russa é, então, animada por essa dialética tensa entre o filoeslavismo romântico que nacionaliza a palavra e dá uma sonoridade popular e eslava à literatura russa e, por outro lado, o realismo-naturalismo que ganha colorações variadas mas é concorde no sentido de reivindicar a modernização das instituições políticas e reflete em seu discurso literário impressivo os traços de desilusão psicológica e social com o passado aristocrático, excludente e opressor do czarismo então reinante. No interior dessa dialética e através dela, a literatura russa se fez universal porque impulsionada pela incompletude e contradições de uma sociedade que carregava em suas entranhas a violência e a injustiça que exigia, em alguma medida, a conciliação estabilizadora do signo verbal como forma de tornar essa mesma realidade política e histórica suportável.

4- Síntese: superação do romantismo-realismo pela estética totalitária soviética (Gorki, Maiakovski, Isaac Babel, Boris Pasternak )

Por ter uma natureza semiótica, a ideologia não nasce na consciência individual. A ideologia é laborada coletivamente, no tecido comum dos signos. O signo verbal, como sustentado por Bakhtin, tem uma função protagonista nesse processo. A consciência, antes de se individualizar, interage e organiza-se no contato com a linguagem que lhe precede e é portadora da experiência pregressa compartilhada da interação social. Cada consciência que brota do processo histórico contém, em si, a estrutura e caracteres do conjunto das consciências anteriores que lhe é transmitida pela linguagem. A palavra é portadora de memórias e sua semântica carrega a experiência de inúmeras relações sociais efetivamente vividas e abstraídas no mundo ideológico dos signos.

Essa historicidade ideológica é marcada pelo dialogismo, o diálogo é sua matéria viva. A realidade da língua reside no diálogo, a dialética é seu motor histórico. A ideologia revolucionária, portanto, alimentou-se de inúmeros caracteres em seu processo de esboço e formação conceitual. Antes de surgir como discurso político estruturado, com termos e categorias bem definidos, a ideologia revolucionária se alimentou das impressões e sensações que lhe serviram de base para um salto abstrativo. A estética e a política estão, assim, articuladas em uma relação em que o discurso impressivo (estética) precede e delimita as fronteiras do discurso político (política). Os símbolos políticos são signos por demais abstratos para surgirem como primeira manifestação intelectiva. Antes da estruturação simbólica do discurso político revolucionário bolchevique, existiu uma profusão inorgânica de signos impressivos, de ícones e índices que animaram a base estética e perceptual da ideologia revolucionária. A construção da ideologia revolucionária foi em maior ou menor medida capturada pela palheta literária dos escritores russos do sec. XIX.

Esse processo histórico e dialógico de depuração ideológica que se dá em uma dimensão semiótica, no tecido linguístico, carrega o traço conflituoso do choque da realidade com a consciência. É no hiato entre consciência e realidade que emergem os signos ideológicos. A dialética contraditória das impressões é o motor que animou a constituição e emergência da ideologia e da consciência revolucionária que precedeu a Revolução Bolchevique de 1917. Esse dialogismo se dá na contradição aberta entre uma realidade que precede a formação da consciência e a constituição dos signos ideológicos que servirão de base para a formação de consciências individuais que se organizarão em torno de tipos e formas discursivas. O hiato entre realidade e consciência que possibilita a emergência dos signos ideológicos é marcado pela precedência do real sobre a consciência onde o signo ideológico emerge como forma mediadora de um conflito aberto. É esse diálogo aberto entre impressões contraditórias que foi captado pela tese romântica da estética literária de Púchkin e Gógol, na medida em que nacionalizam a palavra e criam uma filologia nacional do imaginário russo. Um romantismo que ideologicamente se expressa em torno do nacionalismo conservador que visa preservar, em alguma medida, a tradição da sua literatura oral e de temas constitutivos da identidade nacional russa. Essa tese romântica e filoeslavista identificável em Púchkin e Gógol já contém, em si, os caracteres de sua negação pela geração seguinte. Gógol, por exemplo, contém uma carga de realismo e pessimismo que será típico da antítese realista. O filoeslavismo estará presente na literatura de Dostoiévski, um traço romântico, mas nem por isso o realismo-naturalismo como antítese do romantismo perderá seu traço dominante na obra do autor de Crime e Castigo. A antítese realista-naturalista é a estética que contém o caractere ideológico do pessimismo e desilusão de uma sociedade que se sabe injusta e atrasada. A antítese do realismo-naturalismo russo se alimenta de um traço complementar ao processo de nacionalização da estética verbal e dos temas e imagens literários, nasce da necessidade política de modernização da sociedade russa. Esses estilos e traços ideológicos estavam em uma contradição dialética na sociedade russa do sec. XIX, a tese romântica dominante em Púchkin e Gógol dialogava com a antítese realista e naturalista de Turguêniev, Dostoiévski e Tolstói. Esse diálogo era aberto porque nenhum desses autores se encaixava em um estado puro nessas categorias, Gógol era realista em sua crítica à servidão e corrupção burocrática, Dostoiévski era filoeslavista e cristão ortodoxo em suas obras. Se o regime político czarista era fechado e cerceava a liberdade de imprensa, a literatura russa era aberta e colocava em tensão dialógica as impressões e teses que norteavam a vida cultural e política da Rússia do sec. XIX.

O diálogo aberto entre nacionalistas e ocidentalistas foi o motor cultural da Rússia do sec. XIX, registrado em sua literatura por um amplo e rico painel estético verbal. A emergência da consciência revolucionária se alimenta de caracteres ideológicos constante tanto entre nacionalistas e ocidentalistas. A ideologia revolucionária tem o traço do nacionalismo romântico, ao mesmo tempo que carrega a desilusão realista com as instituições estatais. A ideologia revolucionária, assim, busca através de uma síntese integradora superar as ideologias filoeslativas conservadoras e ocidentalistas progressistas sintetizando-as em um só discurso. A ideologia revolucionária que servirá de base à Revolução Bolchevique terá o propósito da síntese integradora das contradições que lhe antecederam e serviram de base, uma contradição até então aberta e dialógica. Para tanto a síntese integrativa da ideologia revolucionária ataca o hiato onde os signos ideológicos se alojam, a divisão e choque entre a realidade e a consciência.

A ideologia revolucionária bolchevique possuirá na estética do realismo socialista sua base impressiva. Essa estética do realismo socialista terá em Gorki um escritor conveniente ao regime. Sua obra A Mãe será tida como a obra exemplar da estética do realismo socialista. Nela, Pelágia é a metáfora da mãe Rússia, uma mulher simples do povo que se converte em uma militante revolucionária através da assimilação da consciência social das injustiças que sofria. Máximo Gorki é um caso único na literatura russa de um escritor vindo genuinamente do povo. A literatura memorialista de Gorki, sua melhor literatura, traz para o discurso literário russo um universo até então ignorado, o mundo dos andarilhos, vagabundos, prostitutas e de todos os excluídos da sociedade russa que foram retratados por dentro, por alguém igual a eles. Se Máximo Gorki é um caso comovente de um sobrevivente da violência e injustiça do regime czarista que se fez escritor universal, por sua vez sua literatura de viés panfletário serve de base conveniente à estética totalitária soviética. O totalitarismo estético soviético, mais do que o realismo socialista, consistiu na tentativa de colonizar e controlar o hiato entre realidade e consciência, onde os signos ideológicos emergem. O totalitarismo estético soviético ao tentar, em uma síntese integradora, superar a contradição aberta entre nacionalistas e ocidentalistas, entre românticos e realistas, engessou um diálogo até então aberto e fecundo. O efeito ideológico da síntese integradora da consciência revolucionária bolchevique consistiu em um erro epistemológico. Ao tentar superar as contradições abertas das ideologias que a precederam, a ideologia revolucionária inverteu a lógica onde a realidade antecede e dá as coordenadas para a formação da consciência com base em signos ideológicos abertos e dialógicos. A síntese integradora que caracteriza a ideologia revolucionário tem na estética totalitária soviética sua tentativa de superar essa contradição ao inverter essa lógica. Para a ideologia revolucionária é a consciência que precede a realidade, pois essa realidade se encontra viciada, corrompida e só a consciência revolucionária é capaz de transformá-la. A ideologia revolucionária, assim, parte de uma hipótese, a realidade é corrompida, e inverte a lógica em que a realidade antecede a formação da consciência. Na ideologia revolucionária é a consciência que constitui a realidade, a hipótese precede o fato e não o contrário. Essa inversão ontológica que se caracteriza na ideologia revolucionária tem o poder de negar tudo o que lhe precede (linguagem e história) e de inviabilizar qualquer forma de diálogo. A ideologia revolucionária parte de uma presunção e tenta impô-la como única verdade possível, a presunção é de que a realidade política, econômica e cultural é corrupta e de que só o socialismo é a verdade salvadora. Ao realizar essa síntese integradora, a ideologia revolucionária inevitavelmente cai em um erro totalitário, ela coloca uma hipótese como anterior e determinante da própria realidade. Se o socialismo é a única verdade, a realidade histórica das instituições políticas e da produção cultural que existiu até então é um vício que deve ser negado e destruído.

A estética verbal e a reconstrução histórica de seu desenvolvimento na literatura russa, revela que enquanto houve uma dialética aberta e a contradição foi tolerada, houve um rico diálogo e força criativa na literatura russa. A ideologia revolucionária que se alimentou desse diálogo aberto, ao pretender uma síntese integradora e totalitária produziu a estética do realismo socialista que emudeceu e empobreceu a perder de vista, até então, umas das mais ricas literaturas do mundo. A estética totalitária soviética não foi um mero fenômeno estilístico que serve de curiosidade para literatos e historiadores da literatura. É o registro no plano do discurso impressivo (literário) do que ocorreu no plano do discurso político e da organização do poder. A Revolução Bolchevique de 1917 a pretexto de superar as desigualdades e injustiças que maculavam a sociedade russa, produziu mais desigualdade e injustiças. Como superar a desigualdade econômica e a injustiça social senão tendo mais poder do que todos os ricos que dela se beneficiam e dos pobres que a sofrem?! Só com uma concentração de poder ainda maior seria possível alterar esse estado de coisas. E foi isso o que a Revolução Bolchevique efetivamente produziu: uma superconcentração de poder nas mãos de uma nova elite que sucedeu a anterior, a elite dirigente bolchevique. Superconcentração de poder que inevitavelmente produziu mais injustiças.

Conclusão

A estética totalitária soviética ao promover uma inversão ontológica, colocando uma hipótese de sociedade melhor e justa (o socialismo) como anterior e determinante da realidade histórica, concentrou poderes e pretendeu também controlar a economia dos signos ideológicos. Daí que a qualidade da produção literária na Rússia pós 1917 tenha sido infinitamente inferior à do sec. XIX. Máximo Gorki foi um escritor que ainda carregava o brilho da geração que o antecedeu, mas o que se salva de sua literatura são suas memórias e retratos do povo russo excluído, traduzidas nas obras Infância, Ganhando meu pão e Minhas Universidades. Maiakovski, o poeta da revolução, não abria mão da qualidade da forma estética em nome do conteúdo ideológico, seu suicídio é acompanhado da suspeita de que o regime stalinista via no poeta da revolução uma influência inconveniente. O gênio do conto soviético Isaac Babel ao retratar em um realismo seco e cruel a campanha russa na Polônia na década de vinte, A Cavalaria Vermelha, também foge do controle da economia dos signos ideológicos da estética soviética. A Cavalaria Vermelha tem o tom do choque da realidade, uma realidade inconveniente que desnuda a crueldade da ideologia revolucionária, Isaac Babel é calado pelo regime stalinista. O mesmo ocorre com Boris Pasternak, o romance de um poeta, Doutor Jivago, é a rebeldia da subjetividade em face da estética do realismo socialista que tenta sufocar qualquer possibilidade de uma dialética entre a consciência e a realidade, pois a realidade já deveria estar contida na consciência revolucionária traduzida no triunfo da única realidade possível: o triunfo do socialismo. A estética totalitária soviética tenta abranger e controlar a realidade por uma consciência prévia, a consciência revolucionária. Em seu propósito, a ideologia revolucionária inverteu a lógica em que a realidade histórica e linguística é que condiciona a formação da consciência. Os signos ideológicos desalojados de sua função mediadora caíram em um silêncio infecundo mas registraram a face totalitária em que a superconcentração de poder da ideologia revolucionária redundou no empobrecimento político e literário da era soviética da história russa.

Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Trad. Michel Lahud. Et. Al. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

______. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra; prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov- 4. ed.- São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CARPEAUX, Otto Maria. O realismo, o naturalismo e o parnasianismo por Carpeaux. História da Literatura Ocidental, vol. VII. São Paulo: Leya, 2012.

______. O romantismo por Carpeaux. História da Literatura Ocidental, vol. VI. São Paulo: Leya, 2012.

EMERSON, Caryl. Os cem primeiros anos de Mikhail Bakhtin. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003.

TALMUDGE, Irving D. W. Pushkin: Homage by Marxist Critics. Critics Group, New York, 1937.

TODOROV, Tzvetan. Poética da prosa. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Compartilhe:
Palavras-chave
revoluçãorússia