Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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A judicialização do SUS em contraposição à equidade, universalidade e integralidade
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(Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

As próximas linhas, muito superficialmente, tratarão sobre a judicialização na saúde pública brasileira como um fenômeno que surge ao longo dos anos 1990 e se propaga feito fogo a favor do vento até os dias de hoje, exigindo dos gestores públicos, nas três esferas de governo, a montagem de assessorias robustas e especializadas em direito sanitário e constitucional para atender às demandas judiciais em volumes extraordinários, além de fazer com que essas assessorias também se especializem em política pública, especialmente no Sistema Único de Saúde – SUS. Fazendo o registro de que os municípios de pequeno e médio porte não possuem essa estrutura de assessoria jurídico sanitária.

Inicialmente, podemos afirmar que esse fenômeno surge a partir de um conceito de saúde como direito fundamental expresso em nossa Constituição Federal, alargado por um entendimento de garantia presente em uma cesta de princípios. Essa cesta se sustenta no entrelaçamento dos princípios da universalidade, integralidade e equidade. E abrange ainda as bases do conjunto das diretrizes organizativas e da participação da comunidade do Sistema Único de Saúde – SUS. Isso tudo se materializa numa estrutura que oferta ações e serviços de saúde em redes de atenção tecidas regionalmente, não podendo ser vista sob um ângulo reto sinalizador de verdades e certezas absolutas. Em outras palavras, o direito à saúde no Brasil pressupõe a compreensão do sistema no qual a saúde está metida. O SUS é um sistema organizativo complexo que requer uma visão sistêmica para compreendê-lo, geri-lo e julgá-lo, entendendo-o a partir de um território que evidencia sua vivacidade nas pessoas que se relacionam entre si e com o espaço que as envolvem em seu cotidiano comunal revelador de suas necessidades sanitárias enturmadas na realidade social, econômica, cultural e ambiental, contrariando vontades individuais, grupais ou corporativas.

Em verdade, essa judicialização não é da saúde pública como gênero, muito menos como sistema, haja vista que a maior parte das ações judiciais tratam de pedidos individuais de insumos e medicamentos de alto custo incorporados ou não pela política nacional de assistência farmacêutica do SUS. Por isso mesmo, talvez fosse mais apropriado em chamar essa judicialização de medicamentos, insumos e procedimentos de alto custo. Especialmente se considerarmos que os pedidos judiciais desses itens são deferidos de forma liminar, muitas vezes, sem a oitiva prévia do ente público indicado como parte da ação, sem a mínima observância pelos operadores do direito do seu princípio ativo, de seu devido e normativo registro nos órgãos de controle sanitário, de sua pertinência prescritiva no tratamento do paciente, da sua ausência ou não dos programas de assistência à saúde do SUS, sem a análise se tais itens surgem como tratamento complementar de planos de saúde privado e sem o cuidado de verificação com os aspectos regulatórios e sanitários.

Muito menos os princípios e diretrizes organizativos do SUS são levados em consideração para uma análise mais conjunta e complexa desse direito, reduzindo a fundamentação da decisão judicial em um único princípio, o da universalidade. Isso faz uma desconexão dos demais princípios que dão sustentação à saúde como direito de todos e dever do Estado, simplificando o significado do SUS e gerando efeitos de desvaloração do sistema, porque fulmina seus conceitos e princípios basilares.

Ressalte-se ainda que os efeitos desse fenômeno não atingem somente os princípios do SUS, mas podem colocar em risco a segurança do paciente; provocam a desorganização dos instrumentos de gestão e planejamento dos gestores de saúde, deslegitimando os planos municipais, estaduais e nacional de saúde que são aprovados pelos respectivos conselhos de saúde; e ainda distorcem o mercado dos itens judicializados, especialmente o mercado de medicamentos. Apenas para efeitos de demonstração, faço menção que em 2011, a Consultoria Jurídica (CONJUR) do Ministério da Saúde defendeu a União em 12.811 ações judiciais que pediam algum tipo de equipamentos, insumos e medicamentos para o benefício de 12.811 pessoas ao custo de R$243.954.000,00 (duzentos e quarenta e três milhões, novecentos e cinquenta e quatro mil reais), enquanto o Programa Farmácia Popular do Brasil do Ministério da Saúde, nesse mesmo ano (2011), beneficiou mais de nove milhões e meio de pessoas ao custo de R$774.605.000,00 (setecentos e setenta e quatro milhões e seiscentos e cinco mil reais). O Programa da Farmácia Popular do SUS, portanto, beneficia mais gente, amplia acesso, dialoga com sujeitos privados referenciados por interesses públicos, diminui o custo relativo dos produtos, dinamiza o mercado de insumos, equipamentos e medicamentos e demonstra que o ramo de saúde, para além de sua tradição sanitária, é também um vetor de inclusão social e de desenvolvimento econômico e incorporação de novos serviços.

Ainda nessa corrente, verificamos o quanto a judicialização compromete o planejamento orçamentário do SUS, pois em 2019 e 2020, a Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa destinou aproximadamente 40 milhões de reais para a aquisição de medicamentos e insumos. Em 2019, a judicialização do sistema correspondeu a 12 % (doze por cento) desse orçamento , e em 2020, aumentou para 20% (vinte por cento) desse orçamento, decorrentes do cumprimento de decisões judiciais de força executória liminar. Essa realidade está presente em todos os entes de nossa federação.

Percebe-se que a judicialização da saúde pública brasileira espelha o apego dos cidadãos brasileiros ao aparelho do Estado, especialmente o Judiciário, pois no primeiro sinal de conflito buscam a arbitragem estatal, desconsiderando os espaços de participação social como os conselhos municipais de saúde, pouco importando a relevância pública e democrática do plano de saúde ali aprovado. E privilegiando o seu pretenso direito individual pela força imperiosa do Judiciário, expondo os conflitos da sociedade à mediação do aparato estatal, como se fôssemos incapazes do exercício de uma cidadania propulsora de soluções dos conflitos bem presentes e comuns ao mundo das democracias.

Todavia, como efeito positivo dessa judicialização, tem-se permitido a ampliação de espaços de discussão em torno do tema envolvendo as três esferas de governo, os magistrados, os membros do Ministério Público, os defensores públicos, representantes da indústria farmacêutica e representantes da sociedade civil. Tais ambientes podem ser o resgate da participação da comunidade na tomada de decisão para a elaboração das listas de medicamentos do SUS, gerando novas possibilidades de garantia de direitos amplos e comuns, numa clara possibilidade de respeito aos princípios norteadores do SUS como uma política pública de saúde generosa, inclusiva e estimuladora de desenvolvimento econômico e tecnológico.

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