Rodrigo Caldas é advogado, mestre em Direitos Humanos e escritor. E-mail: autognomes[a]gmail.com
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A república em crise
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“Um pilar de ferro”, obra de Taylor Caldwell publicada em 1965 (Imagem: Reprodução)
O romance histórico de Taylor Caldwell

Taylor Caldwell (1900-1985) foi uma escritora britânica radicada, desde a infância, nos Estados Unidos. Notabilizou-se por uma prolífica produção literária, centrada em romances históricos e sagas familiares. Caldwell foi uma das maiores narradoras do sec. XX, cujo estilo de narrativas épicas lembra a escritora, também de língua inglesa, Pearl S. Buck (1892-1973), Nobel de Literatura em 1938.

A obra Um Pilar de Ferro (A Pillar of Iron) foi publicada em 1965, obra de maturidade da autora. A categoria romance histórico constitui-se no curso da história da literatura ocidental como uma aproximação, uma interseção, entre a imaginação ficcional e o fato histórico. Se a historiografia pode ser definida como a hermenêutica do passado para marcar uma posição política no presente, o romance histórico constitui-se como categoria literária que interpreta o passado para ampliar e enriquecer a percepção da atualidade. O fato histórico é também um recorte epistemológico, a imaginação ficcional apenas potencializa isso em uma dimensão estética, não científica. Para os leitores e o grande público em geral, o romance histórico torna a História mais palatável, humanizando-a.

Em “Um Pilar de Ferro”, Caldwell fez uma verdadeira arqueologia humanista do declínio da República Romana, centrada na figura histórica de Marco Túlio Cícero (106 a. C- 43 a. C), o pilar de ferro daquela república. O talento narrativo de Caldwell reconstrói o cenário da Roma Antiga da época de Cícero com cores vivas de uma civilização dourada do mediterrâneo. Civilização portentosa que falava uma língua poética, o latim, que levou Caldwell à biblioteca do vaticano em Roma, para uma pesquisa em documentos que a ajudaram a reconstruir aquele mundo. Em várias passagens do romance há transcrições das correspondências entre Cícero e Ático, seu editor. Entre o mundo de Cícero e o de Taylor Caldwell há um intervalo de 2 (dois) mil anos, a única ponte capaz de ultrapassar e unir esses dois mundos, separados no tempo, é a palavra. Cícero viveu cerca de 100 (cem) anos antes de Cristo. O período que marca o fim da República Romana (509 a. C – 27 a. C) e o início do Império Romano (27 a. C- 395 d. C), é caracterizado por turbulentas convulsões sociais e a emergência de personalidades ciclópicas e expressivas como: Júlio César (100 a. C- 44 a. C), o patrício romano que se notabilizou como estrategista militar nas campanhas da Gália. Ambicioso, teatral e hedonista, a personificação do inconsciente coletivo romano; Pompeu (106 a. C- 48 a. C), o militar de disciplina estoica que falava ao espírito militarista e belicoso das legiões romanas; Crasso (114 a. C- 53 a. C), político e patrício romano, o homem mais rico da história de Roma que, segundo Plutarco, construiu sua imensa riqueza através da especulação imobiliária e do tráfico de escravos; Otaviano (63 a. C- 14 d. C) o jovem, patrício romano, adotado por César, que viria a ser o imperador Augusto, o gênio maquiavélico da política em Roma, o pai da Pax Romana. Mas, em meio a todos esses homens notáveis, Caldwell elegeu Marco Túlio Cícero, o único que se distinguiu pela palavra.

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A oratória romana encontrou em Cícero sua expressão mais eloquente, o Direito e a Retórica na República Romana constituíam-se em verdadeiros espetáculos públicos. O debate forense era também uma arena e Cícero foi um dos gladiadores da palavra mais notáveis. A política, em uma república, tem na palavra e no espaço público sua arena, o espaço não só da exibição, mas da vitalidade política. Um Pilar de Ferro de Taylor Caldwell é o romance histórico que resgata a força retórica da palavra em uma república, o que a palavra tem de energética, expressiva e persuasiva nas engrenagens das instituições políticas. A hermenêutica do passado, no romance histórico de Caldwell, transforma a palavra da retórica antiga em poética da modernidade, identificando as similaridades entre a república de Cícero e a república estadunidense do sec. XX.

Cícero segundo Plutarco

Um dos relatos mais célebres e fiáveis sobre a vida de Cícero, foi realizado por Plutarco (46 d. C-120 d. C) em sua obra Vidas Paralelas. Segundo Plutarco, Cícero era de origem nobre mas não era descendente dos patrícios originários da cidade de Roma, na linhagem paterna. Cícero era nome de família, patronímico, que significa, em latim, grão-de-bico. Seu pai, também Marco Cícero, era cavaleiro da ordem equestre, tinha a saúde combalida e dedicou seu tempo livre ao estudo. A mãe, Élvia, era, como de praxe na aristocracia romana, a administradora da economia doméstica. É por meio da linhagem materna que Cícero se inscreve na aristocracia nascida originariamente na cidade de Roma. Seu irmão, Quinto, foi um militar que participou em muitas guerras de conquista e expansão romana.

Marco Túlio Cícero foi educado em latim e em grego pelo poeta, de origem grega, Árquias (121 a. C- 61 a. C). No tempo em que Cícero viveu, não obstante as conquistas políticas e militares romanas, a hegemonia cultural ainda era grega. Assim, era comum que os filhos da aristocracia romana fossem educados por filósofos e poetas gregos. Árquias ampliou o horizonte intelectual do jovem Cícero apresentando-lhe a poesia, a retórica e a filosofia. Segundo Plutarco, foi essa educação humanista e clássica que sedimentou o caminho para o sucesso intelectual e político do Cícero adulto. Segundo o mesmo Plutarco, Cícero afirmava de Aristóteles: “é um rio de ouro a correr”; dos diálogos de Platão: “se Zeus tivesse uma linguagem natural, falaria assim.” Sobre Teofrasto, sucessor de Aristóteles no Liceu: “seu deleite especial.” Quando lhe perguntavam qual dos discursos de Demóstenes, célebre orador grego, achava mais belo, respondia que o mais longo.

A educação de filósofo e poeta levou Cícero a valorizar a linguagem e as leis como expressão da razão. Daí foi um passo a ser aceito como aprendiz pelo maior advogado de Roma em sua época, Quinto Múcio Cévola Áugure (117 a. C- 88 a. C) que lhe ensinou as minúcias do processo e a psicologia dos julgamentos. Cícero foi a combinação da poesia e filosofia gregas que aprendeu com Árquias e do pragmatismo jurídico romano que aprendeu com Cévola. Plutarco narra o seguinte comentário de Apolônio em Rodes, com quem Cícero estudou retórica em uma de suas viagens à Grécia: “Sim, Cícero, eu te louvo e admiro, mas penaliza-me a sorte da Grécia ao ver que a cultura e a eloquência, únicas glórias que nos restam, vão embora, por teu intermédio, pertencer aos romanos.”

Em 63 a. C. Cícero foi eleito Cônsul de Roma, cargo máximo da República Romana. Esse foi o momento apoteótico de sua trajetória política. Foi em seu consulado que enfrentou e debelou a conspiração golpista urdida por Lúcio Sérgio Catilina (108 a. C- 62. a. C). Catilina era da aristocracia originária de Roma, tendo uma longa trajetória pessoal de desencontros e rivalidade com Cícero. Se Marco Túlio notabilizara-se pela cultura e oratória invulgar, sendo um homo novus (homem novo), o primeiro da linhagem familiar a servir ao senado ou a ser eleito cônsul; Catilina descendia de antiga linhagem de senadores e cônsules romanos, notabilizando-se pelo hedonismo, violência e volubilidade de humor. Catilina conspirou contra a República Romana, espalhou mentiras sobre Cícero e o senado, convenceu a caterva romana a dar um golpe em nome da liberdade e da pátria, em defesa dos valores tradicionais. Catilina tinha um histórico pessoal de acusações de estupro da própria filha e de assassinatos. Cícero, como líder máximo da República Romana a defendeu contra Catilina e seus asseclas. As Catiliárias, série de discursos proferidos por Cícero no Senado Romano, são uma obra modelar de retórica até hoje referenciadas. Catilina e os conspiradores foram condenados, vários desses conspiradores eram da aristocracia romana, o que rendeu impopularidade a Cícero, em meio à elite de Roma. Apesar de ser saudado pelo povo, Cícero foi, posteriormente, perseguido pelos parentes dos aristocratas condenados e sofreu uma represália pelo senado por ter conduzido o julgamento dos conspiradores sem cumprir o equivalente na época ao que chamaríamos hoje de “devido processo legal”. A tese era de que não caberia ao senado julgar os conspiradores mas sim a um órgão judicial. Cícero, segundo seus detratores, violou a lei e executou de forma ilegal os réus. Cícero perdeu seus bens e foi condenado ao exílio.

O exílio de Cícero e o confisco de seus bens foram uma construção política de Públio Clódio Pulcro (93 a. C- 52 a. C). Clódio era um tribuno da plebe, político populista que introduzira no direito romano as Leges Clodiae que penalizava com o exílio qualquer um que tenha condenado um cidadão romano sem o devido processo legal. Essa lei tinha um destinatário certo: Cícero, o desafeto político de Clódio. Segundo Plutarco: “Após a expulsão de Cícero, Clódio queimou-lhe as chácaras, queimou-lhe a casa e construiu no seu lugar um templo à Liberdade”. Clódio passara a atacar Pompeu e a agir com excesso de poder, o que causou receio entre os senadores. Instado por Pompeu, o Senado Romano extinguiu o exílio de Cícero e restituiu-lhe os bens. O retorno de Cícero a Roma, após o seu exílio, dá a dimensão da sua popularidade, segundo Plutarco: “Cícero voltou no décimo sexto mês do exílio; tal foi a alegria das cidades e o afã dos habitantes em ir ao seu encontro, que ficou aquém da verdade a sua declaração ulterior; disse, com efeito, que a Itália o reconduzira levando-o aos ombros até Roma.”

Nos estertores da República Romana, César e Pompeu se digladiavam. Seguiu-se um período de instabilidade política e guerra civil. Cícero tomou partido de Pompeu, por acreditar que este seria mais fiel à tradição republicana. Entretanto, César sai vencedor. A monarquia sob o comando de César sucede à república. O pilar de ferro da república estava partido, Cícero imerge no limbo político, segundo Plutarco: “Depois disso, transformada a república em monarquia, Cícero abandonou a vida pública e dedicou seu tempo aos moços desejosos de estudar filosofia; a bem dizer, por sua familiaridade com esses moços, das mais nobres famílias e do maior prestígio, é que ele voltou a exercer grande influência na cidade.” O assassinato de César foi tramado pelo senado, em uma tentativa desesperada de restaurar a república. Nos dias que se seguiram à morte de César, Cícero emergiu como a voz eloquente da república. Marco Antônio (83 a. C-30 a. C) passou a articular a vingança pela morte de César, buscando ser o seu sucessor e curador de seu legado político. Cícero, assim como nos seus áureos tempos das Catilinárias, investiu contra Marco Antônio, essa série de peças retóricas ficaram conhecidas como Filípicas, onde Cícero, assim como Demóstenes, acusa Antônio de ser um ditador inimigo da liberdade, como Filipe II da Macedônia o foi da Grécia no tempo do célebre orador grego.

Cícero foi perseguido e assassinado por ordem de Marco Antônio, na narração atemporal de Plutarco: “Nisso chegaram os matadores, o centurião Herênio e o tribuno militar Popílio, a quem um dia Cícero defendera numa acusação de parricídio; traziam ajudantes. Encontraram as portas fechadas e arrombaram-nas; Cícero não apareceu e os de dentro diziam que não sabiam. Contudo, conta-se, um rapazelho educado por Cícero com instrução de homem livre, um liberto de seu irmão Quinto, de nome Filólogo, revelou ao tribuno que a liteira estava sendo conduzida para o mar através das alamedas ensombradas. (…) Segurando o queixo com a mão esquerda, como costumava, olhou fixamente os matadores, esquálido e descabelado, a fisionomia descomposta pela ansiedade, tanto que a maioria cobriu o rosto enquanto Herênio o golpeava. Morreu com o pescoço estendido para fora da liteira. Contava, então, sessenta e quatro anos incompletos. Herênio decepou-lhe a cabeça e, conforme ordens de Antônio, também as mãos com que compusera as Filípicas.”

Cícero e a República

Na era moderna, o italiano Maquiavel (1469-1527) inicia o seu célebre O Príncipe com a distinção das formas de governo: república e monarquia. O autor dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio era um estudioso da História de Roma e de suas Instituições. A República Romana é a forma de governo centrada na indisponibilidade do interesse público, a res publica, a coisa pública não se confunde com a coisa privada.

(Obra: Cicerón denuncia a Catilina, de Cesare Maccari)

Foi no período da República (509 a. C- 27 a. C) que Roma consolidou seu domínio sobre o Mediterrâneo. O período republicano antagonizou as duas potências do mediterrâneo: Roma e Cartago. As Guerras Púnicas entre Roma e Cartago marcaram a hegemonia romana no mediterrâneo. Foi durante esse período de quinhentos anos que Roma também derrotou a Macedônia, passando a ter o controle político e econômico do mundo grego. Sendo, entretanto, influenciada culturalmente pelos helênicos. Foi no período republicano que Roma conquistou a Gália através das campanhas militares de Júlio César, bem como o Egito com Otávio. Em torno do sec. III a. C., Roma tinha consolidado seu domínio sobre toda a península itálica.

As cidades italianas sob o domínio de Roma tinham diferentes status, algumas conservavam sua autonomia e viviam conforme suas constituições. Essas comunidades eram chamadas pelos romanos de municipias. Os municipia sine suffragio eram comunidades em que os cidadãos tinham todas as obrigações de um cidadão romano mas não tinham direito ao voto, conservando, entretanto, os direitos privados do cidadão romano. Os municipia cum suffragio eram, por sua vez, comunidades onde os cidadãos tinham os mesmos direitos privados e públicos de um cidadão de Roma, inclusive o direito ao voto nas assembleias. No século primeiro antes de Cristo, todas as comunidades da Itália eram municipia cum suffragio. O sistema municipal incorporava as cidades da península italiana às instituições de Roma sem que elas perdessem sua autonomia, conservando seus costumes, tradições e cultura.

Província significava o território ou distrito localizado fora da Itália que os romanos conquistavam pela guerra. As províncias eram governadas por um cônsul ou pretor, escolhido um ou outro pelo Senado de Roma. As províncias romanas, assim, eram: provinciae consulares e provinciae preatoriae. As províncias consulares normalmente eram aquelas que ainda não tinham sido totalmente pacificadas.

No final do sec. III a. C., a antiga aristocracia patrícia romana foi realocada em um novo tipo de nobreza, aquela constituída por um pequeno número de famílias de patrícios ricos e plebeus populares que passaram a ocupar postos de comando na burocracia estatal romana. O senado composto por essa nova nobreza constituiu nova classe: ordo senatorius. A posição que cada senador ocupava no senado tinha relação direta com a posição na burocracia do Estado ocupada pela sua família. No sec. II a. C., emergiu uma nova classe social em Roma que ficou conhecida como classe equestre (ordo equester), equites significava a categoria de pessoas que tinha enriquecido o suficiente para integrar a centúria dos cavaleiros que correspondia à cavalaria do exército romano. A família de Marco Túlio Cícero era originária dessa classe social, ordo equester.

Uma parte ativa e bastante visível da classe equestre adquiriu riqueza através de contratos com o Estado que incluía a construção de prédios públicos e estradas, operações de minas públicas, venda de provisões para o exército e o serviço de coleta de impostos. Sendo também responsáveis pelo transporte de produtos agrícolas das províncias. A lex claudia foi responsável por facilitar a formação da classe equestre que, entretanto, só se consolidou com a lex Sempronia iudiciaria. A classe equestre se espalhava pelas cidades da península itálica e das províncias (fora da península) que sustentavam economicamente Romae assimilava seu estilo de vida. A classe média baixa era composta por artesãos, pequenos comerciantes e agricultores. O proletariado urbano e rural vivia da relação de clientelismo com as famílias ricas, especificamente o proletariado urbano era manipulado por políticas populistas e a violência o que tornava as relações políticas instáveis com sucessivas explosões de revoltas populares.

De longe, a classe social mais vulnerável da república romana era a dos escravos (servus). Nos primeiros anos da República Romana, o número de escravos era relativamente pequeno. Boa parte do trabalho agrícola e urbano era realizado por homens livres. Foi somente no século terceiro antes de Cristo que o número de escravos cresceu significativamente. Sobretudo após as Guerras Púnicas, as guerras contra Cartago. Assim, a força de trabalho se tornou predominantemente escrava em torno do sec. III a. C. Além da guerra, a fonte de trabalho escravo era o comércio de escravos, feito no Egeu, sendo Delos um importante centro de comércio escravagista. No final da república, estima-se que 1/3 (um terço) da população da península itálica era constituída por escravos. As condições de vida de um escravo variavam consideravelmente a depender do seu grau de educação e lugar de trabalho. Os escravos urbanos viviam melhor que os do campo e daqueles que trabalhavam em minas. Em geral, os escravos viviam na miséria e sofriam abusos dos seus senhores, o que ocasionou sucessivas ondas de revoltas sociais no final da república. Os escravos não gozavam de direitos subjetivos, sendo à luz do direito apenas coisas (servus est res), eram objeto e não sujeitos de relações jurídicas. Então, se o escravo era assassinado ou sofria alguma agressão não era seu direito que era violado, mas sim o direito de propriedade de seu senhor. O escravo que causava dano a outro escravo obrigava o seu senhor a indenizar o proprietário do escravo lesado. Dependendo da gravidade do dano, o senhor poderia ser obrigado a entregar o escravo ao Estado para ser punido. Em geral, o escravo poderia deixar de ser escravo em três situações: (1) por vontade do seu senhor, que o declarava formalmente em público perante um pretor (vindicta); (2) após a inscrição do escravo no censo como cidadão romano por requerimento do seu senhor (censu); (3) ou por disposição do patrimônio do senhor para depois da morte por meio de testamento. O escravo liberto era chamado de libertinus e teoricamente tinha os mesmos direitos e obrigações de um cidadão romano. Na prática, era discriminado pelos cidadãos romanos que não tinham um escravo em sua ancestralidade, estando legados às funções subalternas, restando excluídos dos cargos relevantes do Estado. A maior parte do proletariado romano era formada por escravos libertos (libertinus), esses homens livres trabalhavam no comércio, serviços e artes. Uma pequena parte se tornou rica e poderosa, sobretudo no final da era republicana e início do império.

A expansão de Roma trouxe não apenas problemas administrativos, mudanças econômicas mas também culturais. O contato com a cultura grega alterou a romana. Primeiro de forma indireta, através dos etruscos e dos gregos do sul da Itália, sobretudo da Sicília. Depois, diretamente com o contato com as cidades gregas e a imigração de gregos para Roma, o que elevou a demanda de educação dos romanos por meio do idioma grego e seus impactos na arte, filosofia, religião e ciência romanas. O homem civilizado romano sabia grego e conhecia poesia, retórica e filosofia helênicas. Marco Túlio Cícero notabilizou-se por traduzir para o idioma latino esse universo cultural helênico. Cícero era a personificação romana do patrimônio cultural grego. Até mesmo o Direito Romano é devido à influência da Filosofia Grega, os tópicos aristotélicos que versam sobre o silogismo dialético forneceram aos juristas romanos as categorias lógicas que permitiram a construção da jurisprudência, a ciência jurídica que nasceu entre os romanos.

A influência cultural da Filosofia Grega na sociedade e elite romana foi vista primeiramente com desconfiança, devido ao espírito prático dos romanos e o impacto no seu sistema de valores morais, sendo inclusive os filósofos banidos de Roma, por um período. Entretanto o epicurismo e o estoicismo adquiriram ampla adesão na sociedade romana, sobretudo o estoicismo por ter uma ética cosmopolita e pragmática, como era a sociedade romana.

Cícero e o Direito Romano

A História do Direito Romano, convencionalmente, é dividida em período pré-clássico, clássico e pós-clássico. O período pré-clássico corresponde ao período arcaico até a crise da república no século primeiro antes de Cristo. O Direito Romano, do período arcaico, foi edificado em torno de um sistema de normas relativamente simples de uma comunidade de agricultores. Durante a república tardia, a expansão de Roma através do mediterrâneo e as mudanças sociais e econômicas daí advindas, causaram profundo impacto no desenvolvimento do Direito Romano. Assim, parte do Direito Romano original foi revogado para se adaptar a uma sociedade cada vez mais sofisticada e complexa.

Durante o período arcaico, o conhecimento do direito e das normas era conferido ao colégio de pontífices que era composto exclusivamente pela classe dos patrícios. Após a introdução no Direito Romano da Lei das Doze Tábuas (450 a. C) e o estabelecimento do sistema da legis actiones, a autoridade interpretativa do direito estatuído e da condução das ações continuou sob o controle dos pontífices que orientavam os magistrados e litigantes na aplicação do direito. De acordo com a tradição do Direito Romano, o monopólio do conhecimento do direito pelos pontífices teve fim com o surgimento do ius civile flavianum, no sec. III a. C. Sextus Aelius Paetus Catus, cônsul, em 198 a. C., publicou a sua “tripertita”, obra em três partes, contendo a Lei das Doze Tábuas, um comentário a ela e uma lista de formas legais a ser usada no sistema da legis actiones. O ius Aelianum e o ius Flavianum jogaram um papel importante no processo de secularização do Direito Romano e consequente desenvolvimento da ciência do direito. No século primeiro antes de Cristo, os juristas seculares, os jurisprudentes (aqueles que possuíam o conhecimento do direito) ou iurisconsulti (aqueles que eram consultados sobre matérias relativas ao direito) tinham suplantado os pontífices, os originários intérpretes do direito. Os juristas eram pertencentes à elite econômica de Roma e estavam envolvidos na vida política romana, não recebendo remuneração por seu trabalho que viam como função social. Entretanto, no final da República e início do Império, os juristas foram paulatinamente se afastando da política, perdendo influência, voltando-se exclusivamente para o direito, passando a profissionalizar-se. É nesse período que o direito civil teve grande desenvolvimento, passando o direito público a ser objeto de atenção secundária.

A educação jurídica em Roma tinha uma larga orientação prática. O ensino do direito em Roma não era teórico e acadêmico. A educação era prática e o aprendiz do direito seguia um jurista em seu dia a dia, vendo a resolução dos casos, participando das discussões e elaboração de documentos. Como Cícero que passou a acompanhar o jurista Cévola, uma vez que não existiam faculdades de direito. Assim, o jurista se formava na práxis forense, no escritório de um advogado. Com o passar do tempo, os juristas passaram a combinar o ensino do direito (docere) com a escrita (scribere) de comentário de leis ou tratado sobre diferentes temas jurídicos. Paulatinamente, esses comentários foram coletados em livros e foi surgindo uma larga literatura jurídica em Roma. O surgimento da literatura jurídica em Roma foi o resultado da influência da cultura e ciência gregas sobre a classe elevada de Roma, da qual fazia parte o grande número de juristas. Como estavam familiarizados com o pensamento filosófico grego e os métodos científicos criados por eles, os romanos passaram a desenvolver uma abordagem sistemática do direito. Os juristas romanos, influenciados pelos filósofos gregos, passaram a usar a dialética filosófica e a retórica para aprimorar o estudo do Direito Romano. A jurisprudência, ciência do direito romano, decorre do uso das categorias e lógica dos filósofos gregos aplicadas à experiência da práxis jurídica romana. Assim, a jurisprudência romana é o produto do casuísmo prático dos romanos com a dedução silogística e análise sistemática grega.

Provavelmente o jurista mais proeminente da era republicana foi Quintus Mucius Scaevola, cônsul em 95 a. C., Scaevola foi o primeiro jurista a conceber institutos jurídicos de forma sistemática, enquanto os demais resolviam problemas jurídicos casuisticamente, de modo tópico. Scaevola foi o primeiro a usar o método dialético para categorizar institutos e identificar classes de relações jurídicas, relacionando-as com as categorias de institutos, o que dava maior abstração e coerência lógica à solução dos problemas jurídicos. Dentre os principais trabalhos de Scaevola inclui-se um comentário ao Direito Civil (ius civile) em 18 (dezoito) volumes.

O período clássico corresponde ao fim da República e início do Império, nesse período os juristas adquiriram maior importância, com Augusto, os juristas passaram a ter direito de falar com autoridade imperial, tendo, pela primeira vez, um locus constitucional. Com o imperador Adriano, os juristas passaram a fazer parte da burocracia administrativa do Estado. No período clássico as fontes do direito eram: os costumes, as leis, os éditos dos magistrados, a constituição imperial, as resoluções do senado. A diversidade de fontes do direito e o grande número de advogados do final da República geraram uma confusão jurídica de modo que surgiu no início do império o ius publice respondendi onde os juristas passaram a falar com autoridade imperial, falando pelo imperador na solução de litígios. No início, só os juristas da classe senatorial tinham essa outorga, depois ela foi estendida aos juristas da classe equestre. O ius publice respondendi tinha a finalidade de uniformizar e racionalizar o caos de fontes do direito em Roma, na prática, converteu-se em um instrumento de elitização do poder de dizer o direito concentrado pela elite política e econômica.

Durante o período clássico, o Direito Romano foi dominado por duas escolas rivais: proculianos e sabinianos. Essas escolas não eram instituições regulares de ensino mas grupos de discussões entre juristas. Os sabinianos eram estoicistas, os proculianos aristotélicos. Os sabinianos eram conservadores e atinham-se à letra da lei; os proculianos eram progressistas e buscavam o espírito da lei. Massurius Sabinus e Proculus foram os juristas que deram nome às duas escolas do pensamento jurídico do período clássico romano, foram juristas notáveis desse período: Publius Iuventius Celsus, líder da escola proculiana, segundo o qual o direito era a arte do bem e do equitativo; Gaius, da escola sabiniana, viveu na época dos governos de Adriano, Antonius Pius e Marco Aurélio. Os Institutos de Gaius serviram de base para os Institutos de Justiniano do período pós-clássico; Papinianus, considerado o maior jurista do período clássico, viveu nos governos de Marco Aurélio, Comodus e Septimius Severus, sendo assassinado por ordem de Caracalla, após se recusar a justificar o assassinato do irmão de Caracalla e corregente Geta. Sua obra é uma referência na literatura jurídica; Ulpiano, de origem fenícia, viveu no governo de Caracalla, gozando de grande influência e sendo autor de prolífica obra que serviu de referência para os Institutos de Justiniano no período pós-clássico, Ulpiano foi assassinado pela guarda pretoriana. O período clássico notabilizou-se por um direito técnico, onde os juristas estavam mais voltados para questões jurídicas que políticas. Houve um grande desenvolvimento do direito civil (ius civile) e o surgimento de uma literatura jurídica substantiva.

O período pós-clássico do Direito Romano é o período do Estado Absolutista em Roma, a constante centralização do poder fez com que a separação entre ius civile e ius honorarium desaparecesse, o Direito Romano ganhou caráter acentuadamente administrativo, a expansão do império fez desaparecer a distinção entre ius civile  e ius gentium, em tese, o Direito Romano aplicava-se a todo homem livre que vivia no Império Romano. O fato mais importante desse período foi a influência do cristianismo no Direito Romano pós-clássico que abrandou certos institutos jurídicos, protegendo os mais fracos, aboliu as penas cruéis como a crucificação, entretanto passou a ser intolerante com práticas religiosas pagãs. A área do direito que sofreu maior impacto foi o direito de família, o casamento converteu-se em sacramento, a separação era prevista para hipóteses restritas, sendo punida a separação não justificada.

O vasto acúmulo de leis, éditos e pareceres de jurisconsultos ao longo da era imperial levou ao caos jurídico. A codificação de Justiniano constituída pelo Código, Novela, Institutos e Digesto buscava por em ordem e racionalizar o Direito Romano, direito construído ao longo de doze séculos. O Corpus Iuris Civilis é a grande contribuição romana para a vida jurídica e institucional do ocidente. A jurisprudência é ciência humana que modelou as relações sociais em Roma, identificando padrões e tipos que serviram de referência para a organização política de outras sociedades em épocas vindouras. O nome Corpus Iuris Civilis, a codificação de Justiniano, foi uma criação de Dionysius Godofredus (1549-1622), escolástico que criou tal expressão para distingui-la do Corpus Iuris Canonicis que norteou a organização jurídica da Igreja Católica.

O Corpus Iuris Civilis de Justiniano influenciou largamente o direito europeu continental, a família do civil law (direito romano-germânico), quando de sua redescoberta pela Escola dos Glosadores de Bolonha no sec. XII. Quando os Estados Nacionais Modernos passaram a se organizar em torno da figura do rei e do poder de soberania, após a Paz de Westfália em 1648, os engenheiros jurídicos dessa nova arquitetura política foram os juristas do estado que beberam da fonte do Corpus Iuris Civilis. Os jurisconsultos romanos foram os mentores intelectuais do direito e instituições jurídicas modernas, como os filósofos gregos antigos influenciaram o renascimento filosófico e científico da era moderna ocidental.   

Brasil e EUA: as repúblicas da era moderna

Como todo bom romance histórico, Um Pilar de Ferro dialoga com a época em que foi escrito. A República Romana de Cícero tinha muito em comum com a República Estadunidense de Taylor Caldwell. O simbolismo revela as tensões do inconsciente individual e também coletivo. A águia romana, não por acaso, é o símbolo da república americana, aparecendo em sua bandeira e signos republicanos. A arquitetura clássica dos romanos, sustentada por colunas gregas, é reproduzida pela arquitetura estadunidense, seja no Capitólio em Washington ou nos inúmeros prédios estatais americanos.

São os Estados Unidos que ressuscitam a forma de governo republicano, em uma época, sec. XVIII, onde a monarquia era a forma dominante na Europa. Se a monarquia é hereditária, a república é eletiva; se a monarquia é vitalícia, a república é temporária, restringindo-se ao período do mandato; se a monarquia se confunde com a pessoa física do monarca, a república é formalmente impessoal. Caldwell captou, em Um Pilar de Ferro, o quanto de romano há nos fundamentos da República Estadunidense.

Assim como Roma, a República Estadunidense teve seus fundamentos abalados pelo seu impressionante crescimento nos sec. XIX e XX. Os ideais republicanos foram obliterados pela emergência titânica do Império Estadunidense. Assim como Roma, a expansão territorial dos Estados Unidos e a imigração em massa de europeus no sec. XIX fizeram da América um estado multiétnico. Assim como as guerras contra cartagineses, gauleses, macedônicos e povos germânicos deram a Roma uma dimensão imperialista, os Estados Unidos do sec. XX, das guerras mundiais, guerra fria e conflitos regionais contra vietnamitas, coreanos e as guerras do Iraque e Afeganistão no sec. XXI, transformaram os EUA em um Império Global intervencionista.

Assim como a elite romana, na fase imperial, passou a ser imitada pelas elites regionais de outras nações; o modo de vida americano passou a ser copiado pelos demais povos, sobretudo por meio dos veículos de comunicação no sec. XX. Assim como o latim se impôs ao tempo romano, o idioma inglês se impõe aos nossos dias, não falar ou ler em inglês é estar condenado a não participar da pujante vida cultural estadunidense. A era da internet e da cibercultura só potencializou a hegemonia do idioma inglês. Assim como Roma, os Estados Unidos atraem levas de imigrantes para suas fronteiras, os imigrantes indocumentados são parte significativa da riqueza produzida na América. Assim como os escravos em Roma, e como aqueles, são excluídos da cidadania. Ter cidadania americana, assim, é como gozar do jus Quiritium, o direito civil próprio do romano e que excluía os estrangeiros.

A República Brasileira (1889) foi modelada à imagem e semelhança da estadunidense, por aquela figura pública brasileira que mais se aproxima de Cícero: Ruy Barbosa (1849-1923). Assim como Roma, o Brasil teve uma longa história de escravidão; assim como Roma, o Brasil fala um latim redivivo: a língua portuguesa. O Brasil dos sec. XIX e XX recebeu substanciais levas de imigrantes de todo o mundo, o que o transformou em um estado multiétnico. Como dizia Darcy Ribeiro, o Brasil é uma nova Roma, pois herdeiro de um idioma latino, com instituições do Direito Romano, lavado por sangue negro e indígena.

Talvez no Brasil tenha surgido uma nova Roma, não portentosa e influente como os EUA, mas verdadeiramente latina no idioma, nas instituições e com colorido tropical, capaz de criar uma humanidade nova, uma latinidade tropical capaz, talvez, de incluir os excluídos. Não por acaso, Ruy Barbosa é o pilar dessa república, orador brilhante, jurista de expressividade e cultor da língua portuguesa, o símbolo que imanta as instituições republicanas que sempre são postas à prova pelos oportunistas e carreiristas do momento. A Crise é o verdadeiro pilar da República.

Conclusão

A República em Crise, narrada com brilhantismo por Taylor Caldwell em Um Pilar de Ferro, “a história maravilhosa de Cícero e da República que ele tentou salvar”, é também a história dos dias correntes. Os personagens se repetem nas repúblicas modernas em perpétua crise. A força das narrativas reside nos símbolos e seu poder de mobilizar a imaginação criativa.

Cícero, em Roma; Lincoln, nos EUA; Ruy Barbosa, no Brasil. A política e seus símbolos mais dizem dos valores e instituições que dos indivíduos. Os símbolos alimentam a vida institucional e o inconsciente coletivo, como deixa escapar Caldwell no final de Um Pilar de Ferro: “Dizem que Fúlvia, viúva de Clódio, maldosamente espetou a língua de Cícero com um alfinete, aquela língua heróica que defendera Roma tão valentemente e sempre procurara falar de justiça, da lei, da misericórdia, de Deus e da pátria. Seu rosto morto e espectral fitou a cidade que ele tanto amara e os olhos não piscaram. Contemplaram tudo o que estava perdido, até que a carne caiu dos ossos, e ficou só o crânio. Por fim, um soldado derrubou o crânio do poste e chutou para o lado os ossos fragmentados.”

O simbolismo de Marco Túlio Cícero morto e decapitado, é a representação da morte da República Romana. O pilar de ferro partido. A República, enquanto instituição jurídica, só existe enquanto existirem os símbolos. Quando um símbolo se esvazia, em seu lugar surge o sintoma, o sinal do patológico.

Fontes bibliográficas:

CALDWELL, Taylor. Um pilar de ferro. Trad. Luzia Machado Costa. 5 ed. – Rio de Janeiro: Record, 2006.

MOUSOURAKIS, George. The historical and institucional context of Roman law. 1 ed.- Farmham, England: Ashgate Publishing, 2005.

PLUTARCO. Vidas. Trad. direta do Grego por Jaime Bruna. 1 ed.- São Paulo: Editora Cultrix, 1963.

Fontes de Mídia Eletrônica:

Cicerón: el filósofo que amaba la política:

Cicerón: triunfo y frustración de un advenedizo:

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