O dia amanheceu frio e chuvoso em Campina Grande. A névoa que cobria o céu dava um tom onírico à cidade que parecia despertar preguiçosa. O Açude Velho permanecia impávido e frio, como suas águas ligeiramente onduladas no centro da cidade. O velho açude era a memória da cidade, uma memória orgânica, vívida e líquida: memória que ondulava como a dinâmica do tempo.
Nas margens do Açude Velho estavam registradas as marchas dos tropeiros que alimentaram e desbravaram o comércio local no século XIX; a memória remota e milenar dos indígenas Ariús, do povo Tapuia. Os fardos de Algodão que ocupavam as ruas de Campina no começo do sec. XX, o Ouro Branco que fez da Borborema uma potência exportadora e econômica em ascensão. A memória dos trilhos que rasgavam o chão e da marcha da locomotiva que escoava a riqueza do algodão para o Porto de Recife e daí para o mundo. As memórias ondulantes do Açude Velho registravam a Revolta do Quebra Quilos, ocorrida no sec. XIX, quando os comerciantes locais insurgiram-se contra a confusão do novo sistema de métrica, atirando as balanças e medidas no fundo do velho açude. Memória corporificada no monumento, à margem do Açude: “Os Pioneiros da Borborema”. Memórias também festivas que faziam a superfície do Açude Velho dançar ao som do Forró do Maior São João do Mundo, música e arte imortalizadas nas estátuas de bronze de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Memórias emergidas, naquele domingo de carnaval, do fundo do Açude Velho, onde o Bloco Spazzio puxado pela banda Chiclete com Banana arrastava uma multidão ao redor do velho açude. Garrafas, latas de bebidas, bêbados e até um jacaré mitológico habitavam as memórias ondulantes do açude encravado no centro de Campina Grande.
A névoa que se esparramava naquela manhã fria, também cobria os prédios em edifício que agora cercavam o Açude Velho, como uma muralha de concreto e vidro, obras e maravilhas da arquitetura e engenharia civil saídas das universidades que se espalhavam pela cidade.
A nuvem densa e fria resvalava na superfície líquida e ondulante do Açude Velho em Campina Grande, era um Domingo de Carnaval. Mas um Carnaval diferente, a cidade de Campina Grande, o país e o mundo foram cobertos por uma nuvem densa e escura, nuvem mortal, uma nuvem de pandemia que se alastrava e deixava em seu rastro doentes e cadáveres. Naquele ano não teve Carnaval, Thiago, Marcos, José, André e outros amigos se dirigiam para Coremas, no Sertão paraibano, não como em tempos passados, para pular e brincar o Carnaval de Coremas, mas agora seguiam o féretro de um amigo que morreu, seguiam para um enterro.
Ao avistar as águas impávidas e imemoriais do Açude Velho, Thiago como que contemplava um velho sábio que de tudo sabia, pois já vira e vivera de tudo. O cortejo se despediu de Campina Grande e seguia em comboio pelo sertão, aquele mesmo que há poucos anos fora o portal do paraíso quando, também em comboio, os amigos seguiam em uma farra feliz e regada por bebidas. Em cada cidade paravam, farravam e bebiam, na chegada à cidade de Coremas, o clima já era de festa ilimitada. Aquelas recordações de alegria, esperança e festa tomaram sua memória, uma memória que, como a superfície das águas do Açude Velho, agora ondulava entre o passado de glórias e festas e o presente de tristezas, perdas e mortes. Na medida em que se distanciava de Campina Grande, Thiago via a vegetação verde e viva empalidecer, emagrecer. As árvores, robustas e expressivas, iam aos poucos se encolhendo, desnutridas, na forma de arbustos secos e quebradiços. O verde vivaz e vibrante cedia espaço ao amarelo pálido e esquálido. As rodas do comboio giravam rumo à cidade de Coremas.
O cortejo seguia lento, as cidades do interior paraibano agora pareciam menores e tristes. Os amigos que antes cortavam o interior do sertão em alta velocidade, em uma ânsia feliz para encontrar o paraíso das águas do Açude de Coremas, suas festas carnavalescas e a beleza das mulheres, agora sentiam a lentidão da letargia, o desânimo que sobre suas almas se abatia. A memória do passado de festas contrastava com o corpo inerte e sem vida de Pica-Pau, o amigo que fora vitimado, ainda jovem, pela praga da pandemia que a todos assustava. A alegria e a esperança cediam espaço à tristeza e ao medo. Pica-Pau era jovem e forte, esbanjava vida e alegria, algo totalmente diverso da morte. O som da música dos carros em comboio que outrora iam para o carnaval de Coremas, agora era abafado pelo silêncio sepulcral. A vivacidade vibrante de Pica-Pau estava sepultada naquele corpo frio e inerte. Nas curvas e retas da estrada ficavam sepultadas um pouco daquela memória de vida vivida, de vida feliz, festeira e dionisíaca. O sertão paraibano, aos poucos, se abria como a boca de um velho que, lentamente, mastigava aquelas vidas jovens, devolvendo-lhes um hálito de tristeza e desilusão, uma boca de lábios rachados, torta e com poucos dentes irregularmente distribuídos, uma boca arenosa e quebradiça como o solo do semiárido.
Na entrada para Coremas, Thiago avistou um velho posto, agora desativado e coberto por folhas secas, era o mesmo no qual, anos antes, o comboio festivo havia parado para pegar as malas de Pica-Pau que já aguardava, a poucos quilômetros de Coremas. Thiago lembrou que naquela noite, era uma sexta-feira de Carnaval, o dilúvio se abatera por ali. Faltou luz e bateu uma ventania típica das chuvas do sertão do mês de fevereiro. O mesmo Pica-Pau que estava agora emoldurado, frio e inerte, era aquele que os esperava no posto e, entusiasmado, já se preparara para o baile do Vermelho e Branco.
A estrada vicinal que conduzia a Coremas exibia-se sinuosa e quebradiça, como eram as imagens que se espalhavam na mente de todos os amigos que ali estavam para velar o corpo de Pica-Pau em um cortejo fúnebre. Thiago recordava do primeiro carnaval que fora a Coremas, o cheiro do mormaço da chuva e de mato molhado, da estrada sinuosa e do som da música que vibrava, antevendo o Carnaval logo próximo. Na primeira vez que fora ao Carnaval de Coremas, Thiago se maravilhara ao entrar na cidade, uma cidade que parecia renascer de um dilúvio. A vida paulatinamente emergia, eram jovens que saiam de suas casas e, aos poucos, tomavam as ruas de Coremas. Motos barulhentas que subiam a rua, belas mulheres que vestidas de Vermelho e Branco se dirigiam ao baile de carnaval. Caía uma chuva rala e leve, depois daquele dilúvio sertanejo. Carlos e outros amigos já estavam na cidade, à espera, para entregar a chave da casa que alugaram.
O cortejo entrou lento e triste na cidade de Coremas. Os carros seguiam silenciosos, também era carnaval, mas naquele ano a pandemia que assolara o mundo, roubou também os festejos de carnaval da cidade paraibana de Coremas. As águas que, comumente, nessa época jorravam aos litros dos chuveiros públicos, estavam secas. O Açude de Coremas estava abaixo da média e também havia uma crise hídrica naquela que era conhecida como o Oásis do Sertão. Os carros que seguiam o féretro, agora circundavam a praça central da cidade. As cores da praça, onde era armado o palco principal, estavam desbotadas, bem diferente das cores vivas dos bailes de carnaval que varavam noites e animavam a população local e forasteira que vinham beber da água e da vida que jorravam das paredes do Açude de Coremas.
Enquanto o corpo de Pica-Pau era velado por amigos e parentes, Thiago saiu para dar uma volta pela cidade. Aquele domingo de carnaval, sem carnaval, em Coremas lhe dizia que o tempo, que não se pega e nem se pesa, sente-se e deixa suas sombras.
Thiago foi à sorveteria que fica defronte à praça principal de Coremas, lembrou de como aquilo ficava lotado de gente, de gente viva e feliz em outros carnavais. De como a praça, agora vazia, fervilhava ao som das bandas que se apresentavam. Lembrou da beleza das mulheres de Coremas e do sertão paraibano, uma beleza sedutora que convidava à felicidade. A sorveteria estava vazia, ele tomava um sorvete e solitariamente contemplava a praça silenciosa.
A praça central de Coremas, agora vazia e silenciosa, parecia não terminar. Thiago a atravessou a morosos passos. Viu dali a casa de velhos amigos locais onde, nos domingos de carnaval, sempre se fazia uma feijoada, um ponto de encontro para reabastecer as energias da maratona de festas. Seguiu, solitário, por um beco estreito, cercado por residências e comércios. Ao final, uma rua ladrilhada e ampla revelava a turbina do Açude Estevam Marinho, logo abaixo um bar que ficava à margem, onde as águas corriam frias, translúcidas e felizes. Thiago sentou nas escadas, sorriu pela primeira vez e lembrou de como aquelas águas ficavam tomadas de gente, com as mesas dentro das águas, como um bar aquático, regado por cerveja, rubacão e a poesia do carnaval das águas em Coremas.
Enquanto o corpo sem vida de Pica-Pau era velado por seus parentes locais, Thiago seguia caminhando pelas ruas de Coremas, avistou a Igreja local, seguiu rumo ao Bar do Sol, logo acima, avistando as casas sertanejas que sempre lhe recordavam casas portuguesas antigas, como se o mundo ibérico tivesse se transportado para o sertão paraibano, com suas memórias medievais e mouras. Ao subir a ladeira que levava ao Bar do Sol, Thiago lembrou de uma noite de Carnaval, onde ele ficou com uma linda loira de Piancó, uma deusa em forma de mulher que do nada aparecera, aquela foi, para Thiago, a noite dos sonhos, pois a poesia das mulheres estava encarnada naquela loira que o encantara.
Ao avistar o Bar do Sol, Thiago contemplou a praia de areia que se estendia na sua frente. Nas bordas da areia se espraiava o oceano do Açude de Coremas que até os anos 60 fora o maior do interior do Nordeste, uma obra de engenharia de grande porte, para a época, iniciada nos anos 30. O Bar do Sol era o lugar onde, durante o dia, os amigos se reuniam para beber e festejar, sempre prestigiados por belas e sedutoras mulheres. A bebida jorrava como as águas do Açude de Coremas, este, um verdadeiro mar no sertão que abastece 112 municípios, sendo a maior reserva hídrica da Paraíba e a quinta do Brasil.
A água gelada, o lúpulo e a cevada daquela cerveja que Thiago bebia eram em homenagem ao seu amigo Pica-Pau que sempre era o primeiro a chegar ao Bar do Sol, radiante em vida e vibrante com o Carnaval das águas de Coremas. Thiago bebia lentamente e, ao longe, via os barcos dos pescadores que, aos poucos, diminuíam até sumirem no oceano de águas que tudo cobria. A cerveja acabou, Thiago tinha sede, mas resolveu descer a larga rua que conduzia à praça central e voltar ao velório. A descida é mais fácil, pensou Thiago, mas é também mais deprimente e melancólica, como aquele domingo de Carnaval, sem Carnaval. Cansado, Thiago contemplava a praça onde foram felizes, ele e seus amigos, lembrou enfim, que anos atrás, todos pulavam abraçados, irmanados, radiantes de alegria, inclusive Pica-Pau, naqueles gramados suspensos ao longo da praça.
O enterro de Pica-Pau foi rápido e sem cerimônias fúnebres, naquele ano milhares de pessoas morreram no Brasil de COVID-19, a pandemia global matou milhões no mundo inteiro e todos estavam assombrados com o vírus mortal, a peste do século XXI. O pequeno cemitério de Coremas era uma solidão só, Thiago acendeu uma vela já apagada sobre o túmulo de Pica-Pau, rezou um Pai Nosso e se retirou em silêncio.
Ao voltar à praça central de Coremas, reencontrou Marcos, José, André e os amigos locais. A reunião foi no Bar de Pedro: o Bigode. Um bar que ficava na esquina da praça central de Coremas. O bar onde sempre os amigos se reuniam para matar a fome e repor as energias, naqueles dias agitados de maratonas carnavalescas. O carro-chefe era sempre o delicioso cuscuz com bode, regado por uma Coca-Cola bem gelada. Assim, fora no passado, agora, em homenagem a Pica-Pau, todos comeram o mesmo prato clássico de outros carnavais: cuscuz com bode.
Naquela noite caiu um dilúvio na cidade de Coremas, as águas derramavam do céu do sertão como de um oceano. As ruas de Coremas ficaram alagadas, o coração dos sertanejos se inundou de vida. A população de Coremas e da região de Piancó, enfim, teve o seu carnaval das águas, água beatificada que jorrava aos litros de um céu benemérito e protetor.
O açude de Coremas encheu que transbordou, o espetáculo da sangria do açude foi uma festa, uma torrente irrefreável de água jorrava como vida em seu estado mais potente. Os olhos de Thiago e de seus amigos, antes tristes e marejados, agora tinham a cor e a vida restauradas. O açude de Coremas, novamente, estava potente e jorrando vida.
Na volta para Campina Grande, o comboio girava e os corações, aos poucos, enchiam-se de vida. O som da sangria do açude, com toda a sua força telúrica, tinha imantado seus corpos e almas. A uma certa distância da viagem, Thiago e seus amigos ficaram impressionados com um forte e mágico raio de luz que subia da terra para o céu, um fenômeno da natureza sem explicação, mas de uma beleza e poesia indescritíveis que deixou a todos irmanados.
Nota do autor: Conto em memória dos cerca de 700 mil brasileiros mortos na pandemia de COVID-19, prova de que a necropolítica que assola o nosso tempo não é mero academicismo mas um fato histórico. Aqui retratado literariamente.