Mãe, mulher, jornalista e repórter da TV Câmara de João Pessoa. Escritora de crônicas nunca publicadas.
Mãe, mulher, jornalista e repórter da TV Câmara de João Pessoa. Escritora de crônicas nunca publicadas.
A vida é boa
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Eu acordo às cinco da manhã. Quer dizer, primeiro eu acordo às quatro, tomo um analgésico pra dor de cabeça e durmo de novo. Às vezes eu demoro a achar o analgésico, às vezes eu demoro porque eu não quero achar, e quando isso acontece tudo atrasa porque eu acabo indo fazer xixi, e me angustio com as Piauís que separei pra ler no banheiro quando tivesse tempo.

Então eu fico na dúvida se quatro da manhã é tempo ou insônia, e penso que dúvida é uma coisa que eu tenho mais do que camisetas de listras. Decido voltar pra cama, penso em cancelar a assinatura da Piauí e não comprar mais camisetas de listras.

Eu não me cubro e quase sempre acordo resfriada. Antes eu achava que era o ar-condicionado, mas eu lembrei que não tenho mais ar-condicionado. Acordar meio resfriada é bom porque dá pra ler sem parar numa quarta e sentir culpa. Eu sempre leio com culpa, mas ler com culpa é melhor que não ler. É como ter retirado o pão, mas manter a Coca normal. Agora eu como ovos fritos com cartola e acho bonita a combinação no prato de louça branca que eu mesma comprei. Faço meu café, faço muito barulho — tenho a sensação de que preciso acordar alguém pra não me sentir tão só. Abro as revistas que ainda não cancelei e abro o Instagram. Ligo a TV pra ouvir os noticiários — gosto de assistir ao jornal da manhã, porque assim eu fico bem deprimida e acho que a minha situação tá ótima.

Vejo que vai ter panelaço às oito da noite, na hora do pronunciamento, e vejo que o Freixo tá convocando pra alguma coisa. Faço parte, aqui no meu ativismo de sofá — claro que por motivos óbvios. Guga aparece falando do cabelo despenteado — eu to cada vez mais apaixonada por esse cara.

Preciso ir pro trabalho, penso. Tomo banho. Lembro que não preciso depilar — sou uma mulher de 37 anos que decidiu fazer laser, nesse quesito eu não dou a mínima pras feministas, tampouco pro patriarcado, to velha demais pra ter pelos nas pernas —, e preciso fazer a unha. Decido que vou estar sempre de unha pintada de vermelho, mas hoje não vai dar tempo. Coloco uma camisa banca meio amassada e respondo um e-mail. Lis me avisa que máquina de lavar roupa quebrou. “Agora a gente se deu muito mal”, ela diz.

Olho o Instagram, 96 pessoas curtiram a minha postagem de ontem à noite. Eu tenho 1.600 seguidores. Decido falar menos sobre mim, mas eu não consigo escrever de outra maneira. Acho que quando você se expõe muito, você acaba não se expondo tanto porque é um tipo de exposição que tem um recorte, tem uma escolha minha.

Saio de casa atrasada. São oito da manhã. Olho pra o motorista do Uber, ele usa máscara. Ok, vamos lá! Ele puxa um assunto, não gosto de conversar muito antes disso. Normalmente, saio de jeans, ou qualquer coisa misturada com linho — eu adoro um linho cru cinco doze avos — se bem que agora tô numa fase de não me importar mais com o que visto. Na verdade nunca me importei, e isso quer dizer que eu fui pro nível dois. Ainda não sei quem eu quero ser, mas, com certeza, é alguém que não usa roupa de ginástica e tá sempre com lingerie boa para uma eventual pegação, ou para o caso de um atropelamento — não sei porque eu insisto em pensar nisso.

No uber, viro minha bolsa no banco — desde que o isolamento começou e decidiu voltar antes de acabar, sair de casa se tornou uma atitude de guerrilha, e a minha trincheira é o que eu levo na bolsa. Hidratante corporal Lili pra uma retocada no meio do dia, três máscaras — todas na cor branca — carregador do iPhone, óculos, rímel, protetor labial pra evitar ressecamento, base com filtro solar, álcool em gel, remédios antiangústia, antienjoo, (que as vezes é angústia disfarçada) e o analgésico, pra dor de cabeça que quase sempre é dor de cabeça mesmo. Três porções de castanhas de caju, tâmaras, bananinhas e um chocolate cheio de lactose — aquele que tem na embalagem uma simpática vaquinha amarela segurando quatro flores coloridas com a boca, sabe?.

Durmo sozinha. Passo o dia todo tendo ideias, e também penso muito em me ocupar com coisas que ainda não fiz. Marco ginecologista. Desmarco ginecologista. Mas se você me pergunta “quer fazer uma colposcopia ou transar?”, digo que quero uma colposcopia. Não tenho a menor chance de transar nesses dias. Parei de ferir meu sinal, mas ele ainda está ferido. Passo o protetor labial, mordo muito o lábio inferior. Como as castanhas. E depois bananinha. Aos poucos. E depois, muita folha e proteína pra compensar o chocolate da vaquinha, que vem depois.

Sempre tive medo de tudo, e cresci alternando no peito a história de como minha mãe pode viver tanto tempo com o meu pai — a vida não era tão boa —, e a de que minha irmã caçula foi embora de casa aos 17 anos — a vida é má. Não tem garantia, mas Milena me apresentou uma musica dos Beatles que eu sei cantar.

Lembro de quando tentei aprender as letras de algumas musicas nas aulas de inglês. Eu não sei cantar em inglês. Eu desisti do inglês. Quero aprender francês e também o russo.

Penso que tudo vai fazer sentido: a máquina de lavar roupa, a camisa branca, o ginecologista, o antiangustia, o medo, o linho, a lingerie preta, a minha neurose de sempre usar a primeira pessoa nesses textos, e a música dos Beatles.

Tudo vai fazer sentido porque um dia eu vou viajar pra algum lugar que eu não sei bem onde fica e vou ler meus autores favoritos pra Lis e todos as revistas Piauís atrasadas, vou estar de unhas feitas e depilada, e vamos dividir o chocolate da simpática vaquinha segurando as quatro flores amarelas.

A vida é boa.

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