Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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Anjinhos
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(Imagem: Grok)

A morte nos acompanha desde a primeira inspiração. Ela nos espia presentemente. No meu caso, somente tive contato com a morte mais ou menos aos nove anos de idade. Morávamos na rua principal de uma cidade do interior. Quase tudo por ali passava. E eu gostava de apreciar o seu movimento: o caminhão carregado de coco seco; a Rural de seu Severino; a nova Veraneio de Tonho Sanfoneiro; ao longo, os cavalos amarrados nas argolas da calçada do mercado; o grito do galego do caranguejo; o ônibus das sete da manhã como se um relógio fosse; as meninas e os meninos fardados em direção ao grupo escolar; católicos e protestantes disputando Deus com os juremeiros; e, a busca das soluções de cura na farmácia de seu Elias. Em dia de feira, o movimento era bem maior, mais animado. Se via muito do alto de uma das quatro janelas da frente de nossa casa.

Dessa rua se ia para todo canto: para o rio; para o campo de futebol; para os sítios; para o pavilhão dos bailes; para as igrejas; para a delegacia; para o cabaré; para o cemitério… E os enterros por ali passavam também. Em uma cidade pequena, o defunto é identificado independentemente de tudo. Todos sabem seu nome, referência, idade, doença, trauma, apelido. Todo mundo conhece todo mundo, vivo ou morto. Não precisava de identificação médico legal. Todos os mortos tinham a razão de sua morte e ninguém deixava de ser enterrado. Os choros, os lamentos, os elogios com suas adversativas, os comentários sussurrantes e os rostos com olhos baixos enchiam os velórios noite adentro. Todos bebiam o defunto, pelo menos, com café e bolacha. E as conversas que pendulavam de uma pessoa santa a uma pecadora eram paralisadas na voz de um terceiro que resumia tudo: “não foi nada disso! é porque chegou a hora dele mesmo”. E invocava o dito popular: “todo mundo sabe que um dia araruta vira mingau”. E mudava-se de assunto para algo mais contemporâneo. Afinal, esse já morreu. É passado!

Contudo isso não acontecia quando o morto era um recém-nascido. O bebê invólucro naquele caixãozinho azul com algumas flores brancas, provavelmente jasmim ou véu de noiva, não tinha nome. Não chamava a atenção de ninguém. Seus cortejos eram diminutos: quase sempre não passavam de meia dúzia de gente. Velório nunca se viu. Não se tinha assunto sobre o pequenino defunto. Aos domingos eu nunca vi um desses enterros, parecia não querer concorrer com a alegria da feira. Às vezes, o caixãozinho azul era carregado por uma pessoa só. Não tinha choro. Era uma espécie de morte oca. Sem sentido. Ela foi tão ligeira que não houve tempo para o pensamento. Ali, se percebia que a morte não era uma oposição à vida. Vida e morte andando juntas como se fossem apaixonadas. Parecia mesmo que era morte e vida. E talvez por isso nada de lamento. A morte numa supremacia, à altura da vida. A mudez do cortejo se expressava em um quadro sem comentários, num silêncio andante. Deixando um vácuo de tirar o fôlego, nos afogando numa enchente de perguntas! Como se vida e morte fossem um rio cheio, esborrando dúvidas. Como se ambas fossem uma coisa só!

Mas, atravessando a sala, chegando perto de mim, na janela, pegando em minha mão, Dona Norma postando sua voz como uma certidão, respondia aquele silêncio: meu filho! Esses bebês são anjinhos. Eles vão direto para o céu, não passam sequer pelo purgatório. Eles não viveram o suficiente para o pecado.

Dona Norma morreu aos 97 anos. Aparentemente, lúcida de suas certezas!

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crônica