Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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Beija-flor silvestre, bem-te-vi urbano
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(Foto: Joao Vicente/Flickr)

Era um sábado sem feira. Então, logo cedo, sol frio, Goda pegava seu bornal, apoiava-o no ombro esquerdo para atravessá-lo pelo peito até o quadril, deixando sua canhota livre para sacar dali seus apetrechos: uma baleadeira caseira, uma caneca de alumínio, um frasco de visgo, algumas bolachas e uma pequena faca. Carregava ainda um pequeno alçapão. Vestido de camiseta, bermuda e sandálias japonesas, ele sentava na calçada de sua casa de taipa, botava as mãos na cabeça e apoiava seus cotovelos nas pontas das coxas, perto de cada joelho. As canelas finas, quase despida de pelos, descansava do pouco peso de seu corpo. E num suspiro sintético de suas contingências, olhava pra frente perdidamente e tangia as certezas. Foi assim que ele se levantou e enfrentou o vão da vida com seu franzimento, se embrenhando em um dos sítios das redondezas, indo atrás do mundo alcançado pelo limite de sua vista.

De sua casa, na rua principal do Arruado, em direção ao cemitério, tinha o Sítio de Seu Manoelzinho, olhos claros, abusado, costumava dar tiros de sal em supostos passantes de sua suposta Quinta; descendo a ladeira, para o lado oposto, tinha o Sítio de Árvore Alta, de acesso espinhoso, meio ralo, íngreme, que já fora esconderijo de negros rebeldes; pela rua de trás, passando pelo campo de futebol e pelo cabaré de Marilinda, tinha um sítio de mangueiras, jaqueiras e laranjeiras; algumas pés de fruta-pão; poucas pitombeiras; um pé de massaranduba imponente; coqueiros e cajueiros raros; mangabeiras à vontade; muito pé de jurema, mais branca que preta, sagradas; e ainda muita mata pela frente! Se chamava Sítio Tapuio. Do outro lado, em direção à frente de sua casa, no caminho do rio, tinha o Sítio Taperubus de seu Afonso que andava todo engomado, se achava rico, costumava arengar por qualquer pedaço de terra.

Nesse sábado, Goda, caçando a si mesmo, estava mais para fazer armadilhas! Não queria estinligar. Aí, se deixou engolir pelas bocas das matas do Sítio Tapuio, terra meio sem dono de tão grande que era. Antes de procurar uma árvore para colocar seu alçapão, ele se lembrou que não matava um beija-flor fazia tempo. Diziam que matar um beija-flor de baleadeira e depois comer seu fígado daria visão privilegiada, pontaria certeira, respiração controlada e capacidade de aproximação das caças sem fazer barulho, espantando do corpo os impulsos da ansiedade. Ele tentava repetir esse ritual a cada primavera. E tinha ainda a proeza de ser o único menino das redondezas que conseguira tal feito: matar beija-flores!

O fígado do beija-flor lhe daria também a temperança para somente caçar o necessário. Diante disso, Goda não pestanejava: acertou em cheio no primeiro beija-flor que ousou ficar inerte, em pleno ar, se amostrando em sucção nas flores de uma laranjeira. Igualmente, não pensou duas vezes em relação ao que fazer com a caça abatida: pegou o bicho, depenou-o, fez uma incisão em seu peito, arrancou seu fígado e o comeu. Cru. Puro. Depois, se limpou, banhando as mãos e a boca nas águas do riacho que lavava as ramas de batata-doce cadentes por suas ribanceiras. Não esqueceu de limpar sua faca, passando-a na grama e mirando sua lâmina em direção ao sol como quem encara o olhar de Marilinda. Em seguida, fez um novo corte no cabo da baleadeira, um pouco maior, simbolizando o abate de mais um beija-flor como se fosse a conta de um rosário!

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Saciado, Goda começou a se concentrar nos movimentos das árvores, na zoada das folhas e galhos, no cheiro das frutas e no canto dos passarinhos. Entregou seu corpo àquele ambiente e começou a identificar galos de campina, sabiás, rouxinóis, andorinhas, pintassilgos, cabocolinhos, sanhaçu, anu, azulões e muitos canários. Assim, ele botou seu alçapão numa das árvores e esperou o resto do dia, almoçou bolachas com manga espada, deu um cochilo que fez a tarde se parecer morta, escurecendo como a cavidade das matas. E percebeu que nenhum passarinho caiu em sua armadilha, desarmou-a, suspendeu a tocaia e bateu o caminho de volta, tendo o sol como sua bússola.

Goda era um menino tranquilo. O mais velho da turma. Um rapazote. Ele rezava o Pai Nosso como quem anda de bicicleta. Se apressava pouco. Talvez tenha aprendido a ser cauteloso devido às relações que tinha com o mato. Ele não gostava da escola: matérias, disciplinas, horários de entrada e saída, tudo isso lhe deixava aborrecido. A chamada por números, sem nomes, parecia uma marcha. Os apelidos de seus colegas não eram vocalizados por Dona Dora: Tinho, Macaíba, Zezé, Beto, Joca de Biu, Cone, Curió, Raminho, Passomago, Galocego, Vermelho, Manga-rosa, Galega, Mazé, Rato Branco, Zé Preto, Banana… Todos eram estranhos à sala de aula. Ele dizia que a sala de aula parecia um aquário, nunca disse a razão. Ficava invocado com os dias de prova. Não filava. Foi reprovado algumas vezes. Da escola gostava de subir no muro como um malabarista. Ou de pular para o quintal da igreja vizinha com intuito de pegar mangas, mesmo vigiado por um pastor alemão. Goda esperava o pastor ficar numa distância segura, pulava o muro para o quintal da igreja, pegava as mangas caídas, jogava-as para o lado da escola e dava outro pulo de volta numa ligeireza chamada destreza que ao cão lhe restava os latidos.

Cara envelhecida, enrugada, murcha, parecia mais velho que sua idade. Alguns queriam impingir-lhe o apelido de Cara Véia, mas não pegou! Goda sempre foi Goda para todos e Godô para os próximos. Tanto Goda quanto Godô eram pacientes para esperar o momento de soltar da mão esquerda a pedra da baleadeira em direção ao passarinho. Goda quando cresceu foi morar na cidade grande, virou motorista de pessoas idosas. Nunca reclamou do tempo para o semáforo abrir ou fechar. E como quem espera o beija-flor suspenso no ar, ele cuidava de seus pacientes até seu último bater de asas.

Um dia desses, Goda meio cansado, parou numa praça, amolou seus olhos para cima de uma árvore e ouviu um canto. Sentiu dificuldades para identificar o passarinho, mas percebeu que era um bem-te-vi marrudo que emitia sons dissonantes. Era um bem-te-vi urbano e Goda se viu assim também.

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