Jornalista, internacionalista e empreendedora.
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Califórnia: um reduto da liberdade reprodutiva
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Protesto pelo direito de aborto em Palm Springs, Califórnia (Foto: Don Barrett/Flickr)

No fim do último mês, um tema que gera debates acalorados em quase todas as partes do mundo voltou a ocupar as páginas dos principais veículos de imprensa. É que a Câmara dos Deputados do Chile aprovou, em 28 de fevereiro, a descriminalização do aborto, quando realizado nas primeiras 14 semanas de vida.

O acontecimento histórico no país latino coincidiu com o período da minha chegada aos Estados Unidos para acompanhar o fim da gestação da minha irmã e o nascimento da minha sobrinha. Ao contrário de muitas, essa foi um gestação desejada, cercada de amor e expectativas. Além da assistência médica regular, minha irmã também foi assistida por uma ONG chamada Care Net. Ela recebeu aulas sobre os cuidados consigo e com o bebê, fez atividades e recebeu orientações especializadas, orações e o acolhimento que toda mãe deseja e precisa.

Tive a oportunidade de acompanhá-la em uma das atividades e fiquei impressionada com a estrutura e o profissionalismo da organização, que também realiza, para minha surpresa, um trabalho de orientação e aconselhamento às mulheres que desejam realizar aborto.

Inclusive, foi aí que me dei conta de que a Califórnia, onde minha irmã mora, é um estado que se destaca nos Estados Unidos por suas políticas públicas para garantir o aborto gratuito e seguro. O instituto Guttmacher, que trata das políticas de aborto no país, estima que cerca de 15% das interrupções de gravidez realizadas da terra do tio Sam são feitas na Califórnia. Isso porque muitas pessoas saem dos seus estados para serem atendidas aqui, uma vez que as leis californianas buscam reduzir as barreiras administrativas e institucionais, na contramão do que vem acontecendo em outros estados, como o Texas, por exemplo.

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Bastou uma rápida pesquisa sobre o assunto para que eu pudesse perceber quão abissal é a diferença de tratamento dado ao assunto aqui em comparação com o Brasil e toda a América Latina, eu diria. Há, aliás, um conselho, formado por 40 organizações a favor da liberdade de escolha, responsável por planejar uma série de ações para melhorar a coleta de dados e pesquisas e, em seguida, priorizar as intervenções. O trabalho prevê o “bloqueio da desinformação e a garantia da educação precisa, culturalmente apropriada e abrangente sobre o aborto e o acesso ao tratamento”.

O breve contato que estou tendo com essa realidade pôs luz em um assunto que costumo evitar, em especial, com os meus pares cristãos. De maneira geral, há um entendimento de que a postura cristã em relação ao aborto é “pró-vida”, mas me pergunto: “pró-vida de quem?”. Longe de discutir o assunto sob os preceitos religiosos, mas, ainda assim, certa de que a minha percepção sobre o assunto mais me aproxima de Jesus do que o contrário, não posso evitar a frustação de saber que estamos longe de salvar milhares de mulheres que morrem em clínicas clandestinas de aborto no Brasil, forjados por um discurso religioso e/ou moralista, que é, em sua essência, misógino.

As subnotificações nos registros públicos dificultam o acesso ao número preciso de vítimas, mas fato é que a ilegalidade nunca impediu as mulheres de interromperem uma gravidez indesejada. A diferença é que aquelas que têm condições financeiras o fazem em contextos mais seguros do que aquelas em situação de vulnerabilidade social.

Não e à toa que estudo publicado na revista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontou que as maiores vítimas de aborto no Brasil – ou seja, as que mais morrem devido a complicações em procedimentos clandestinos –, são as mulheres negras, as menores de 14 anos e as moradoras da periferia.

Por isso, é fácil deduzir que o que mata não é o aborto, e sim a clandestinidade. Assim como quem incita o aborto não é a sua legalização. Essa é, na verdade, a grande responsável pela proteção à mulher e aliada da informação. Quanto mais o tempo passa e menos nós discutimos, de maneira engajada, lúcida e objetiva, a quem interessa roubar-nos a autoridade sobre os nossos corpos e a quem pouco interessa a morte de corpos femininos nos contextos de vulnerabilidade social, mais mulheres morrerão, mais vozes serão caladas, mais retrógrada a sociedade fica. Até quando a gente precisa desenhar o óbvio? Até quando farsas moralistas prevalecerão? Informem-se! Libertem-se! Respeitem a existência das mulheres. De todas elas.

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