Em 2013, as manifestações pelo passe livre foram sequestradas por uma cáfila de autointitulados apolíticos, revoltados com “tudo isso que está aí”, calouros do protesto coletivo. Naquele momento, o novo grupo de perdidos no espaço público, na busca de uma identidade, lançou mão do imaginário mais próximo de uma manifestação em massa que tinha para adentrar no debate nacional: a torcida de futebol. Não era qualquer torcida, no entanto, era especificamente sua encarnação canarinho, apoiadora da seleção brasileira.
Nos intervalos entre as copas do mundo, ele assistia, do conforto do seu lar, ao campeonato europeu, amalgamando-se ao objeto decorativo que o representa, a almofadinha. Os times nacionais não têm a mesma qualidade, ele diz, e os estádios só têm um povaréu mal cheiroso e temerário, que não convém se misturar. Entretanto, a cada quatro anos é o momento de colocar a bermuda, o sapatênis e a camisa verde e amarela para soltar aquele grito preso na garganta, aproveitando que a necessidade de uma viagem internacional e o preço do ingresso transformam o estádio numa verdadeira área VIP, pena que sem cerveja artesanal.
Nos seus passeios turísticos, ele veste orgulhoso a camisa com as cores da sua bandeira, dirige-se a um gringo e exalta os estereótipos nacionais: o futebol, o samba e as “mulatas”, palavras que profere com um sotaque meio Dr. Rey, não se sabe por quê. Como é bonito ser brasileiro no exterior, como é lindo ser Brazil! Na experiência no campo e nas ruas estrangeiras, o potencial novo ativista constrói sua experiência de patriotismo e suas referências de gritos de guerra e performances coletivas.
Chega então 2013. Eu queria poder descrever o que foi esse momento para a política do Brasil e o que ele representa para explicar o que vivemos hoje, mas não quero começar fazendo polêmica nem tentando entender algo que até quem estuda sobre o tema não conseguiu desvendar. Sabe-se que, em meio a diversas manifestações, o nosso herói decidiu se inserir no debate público e, dentre as pautas mais difusas, justas e injustas, levantadas naquele momento, ele achou por bem escolher o que havia de mais bolorento nos valores nacionais: o resgate da ditadura militar e toda a sorte de demandas antipovo, em especial, contra os pobres, as mulheres, as pessoas negras e LGBTQ+.
Ora, ora, ora, que não se esperava que os canarinhos assépticos seriam, sete anos depois, confrontados por outros amantes da bola, que emergem das torcidas organizadas locais, aqueles homens em geral pobres e negros que durante a semana acordam quatro horas da manhã; aqueles a quem se vê por trás das janelas do transporte público ou montados em suas motos para enfrentar um dia cheio de afazeres. Uma hora ou outra eles se cruzam com os primeiros torcedores, para consertar o sinal da Internet, para entregar o garrafão de água mineral ou alguma encomenda. Nos fins de semana, esses trabalhadores congregam com seus vizinhos, num churrasco, num pagode e, em especial, no estádio de futebol, com seus parceiros de torcida. Lá eles se sentem integrados a algo maior: gritam, se emocionam, extravasam com violência. Para a surpresa geral (ou não) era nesse espaço que alguns desses torcedores conheciam a si mesmos, de onde vinham e onde queriam chegar.
Depois dos inacreditáveis ataques aos direitos e garantias conquistados, à ciência, à democracia e ao povo brasileiro, as narrativas fascistas que nasceram atreladas ao futebol passaram recentemente a ser enfrentadas sobre o mesmo terreno.
Em meio ao corredor vazio da Avenida Paulista, os últimos domingos viam sendo ocupados por algumas dúzias de correligionários dos torcedores canarinhos, esbravejando uma porção de absurdos, inspirados pelo seu representante maior.
Aproveitando-se do respeito que pelo menos metade da população confere ao isolamento social para conter a pandemia, eles pintaram e bordaram por dois meses, vivendo a fantasia de que eram os donos da rua e da voz no debate político.
No último domingo, então, representando a fadiga e a revolta de milhares de pessoas que assistiam a tudo isso de mãos atadas, torcedores de times paulistas, liderados pela Gaviões da Fiel, estouram nas ruas, num protesto massivo, imponente e emocionante, mostrando o que a maioria deste país quer e clama: democracia e respeito ao povo brasileiro. Os canarinhos agora não estão mais sozinhos no jogo de definir os rumos nacionais. Foi iniciada a partida.