Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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Casar botões
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(Foto: Julie Jablonski/Flickr)

Desço do ônibus. Fico com raiva porque mais uma vez erro o ponto de parada. Hoje, desci um ponto mais distante do meu novo abrigo. Aqui, as noites demoram mais a chegar, têm restos de sol lembrando o dia que ainda resiste à sua queda.

Me dirijo ao meu canto. Supero dois lances de escada, deixo a mochila num pequeno sofá. E uma mistura de cansaço e desânimo me dominam. Meu corpo só pensa em tirar a roupa e se deixar envolver pelas águas de um chuveiro. O chuveiro pergunta como estou! Estaciono-me sob suas águas que cuidam do meu amornamento. Nada respondo nem falo. E lá fico por um tempo molhado. Meio quente, meio frio. Morno.

Me enxugo. Procuro uma camisa de mangas curtas, de tecido fino e leve. Acho-a. E ao vesti-la, começo a casar os seus botões de baixo para cima. É como se aparecesse, na minha frente, Tia Carminha, cuidando da gente, dizendo que se nós colocássemos os botões em suas casas, direitinho, por duas semanas seguidas, jamais esqueceríamos de abotoar uma camisa. Ela ficaria bem casada. Dizia ela: os botões da camisa precisam ser bem acasalados.

Numa viagem de décadas, comecei a rir sozinho, os músculos do rosto se contraíram numa leve alegria; e lágrimas caíram dos olhos e correram pelas bochechas ainda parecidas com as da infância; hoje, caídas. Meu irmão caçula queria também aprender os traquejos para casar os botões da camisa. E assim passamos a nos encamisar sozinhos.

Vestido. Agora abrigado. Procuro alimento. Abro a pequena geladeira. E vejo suco de acerola, geleia, presunto e queijo. Pego um pouco de cada um e boto no pão que estava na mesa. Ao lado, cinco laranjas e um mamão. Essa espécie de sanduíche é mastigado com gosto, umidificado pelo suco.

Passo contínuo, como um protocolo burocrático, tomo um copo d’água devagar. Vou até a minúscula sacada e aprecio um passarinho dando seus últimos pios do dia, buscando recolhimento noturno. Volto. Deixo o copo em cima da mesa. Apago as luzes. Jogo meu corpo na cama. E morro por uma noite.

Volto à vida logo cedo. Me espicho. Me levanto. Puxo as cortinas. O blecaute resiste ao meu puxão, mas se abre ao sol. Olho para fora em direção ao céu e uma árvore se atravessa no meio. Vejo o passarinho cantando como se tivesse inovando, mas apenas repete um canto de poucas notas, novamente, como se fosse ontem.

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