Médica pela UFCG. Medicina Baseada em Evidência. Atendimento Humanizado. Defensora do SUS. Feminista. Instagram: @priscilawerton.
Médica pela UFCG. Medicina Baseada em Evidência. Atendimento Humanizado. Defensora do SUS. Feminista. Instagram: @priscilawerton.
ads
Ceia de Natal: o amor não está servido 
Compartilhe:
(Foto: Priscila Werton)

Não gosto de pensar o Natal como uma festa religiosa, prefiro pensar como uma confraternização da família, celebração do amor fraternal, do companheirismo… uma retrospectiva das relações servidas ao longo do ano, afinal os laços sanguíneos não são uma sentença de amor, o amor precisa ser preparado.  

Infelizmente, no Natal da família brasileira, temos personagens clássicos que transformam um momento que deveria ser só bom, em um acontecimento desagradável, traumático que muitas vezes preferimos nem participar e ou esquecer. 

E quem são os personagens do Natal? 

  • O que pergunta dos namoradinhos

Esse interesse nos relacionamentos amorosos dos outros é errado em vários níveis e essa pergunta não traz nada de bom ao ambiente natalino. Primeiro porque subentende-se que ter um relacionamento é essencial, vital, obrigatório e a gente já sabe que ninguém precisa de relacionamento para ser feliz. Segundo que muitas vezes essa pergunta deixa no ar um cheiro de homofobia e machismo, porque é feita predominantemente para as meninas, afinal um homem hétero solteiro é “normal”, pegador que está aproveitando a vida, enquanto a mulher precisa de um parceiro para ser completa. 

Além disso, impõe uma sexualidade que muitas vezes é uma grande questão para quem está sendo indagado, já que para meninas se pergunta sobre namoradOs e para meninos sobre namoradAs. Então o correto seria perguntar sobre os namoradEs? Não. O correto seria não perguntar, porque esse assunto é exclusivamente de interesse dos envolvidos, de mais ninguém. 

  • O que quer discutir política

A essa altura do campeonato não tem o que ser discutido, a conversa deve ser um homogêneo FORA BOLSONARO, se alguém quiser discutir isso, melhor nem convidar para a ceia, porque provavelmente não vacinou e vai causar problemas aos demais.  #LULA2022

  • O que faz comparações com a carreira do tipo: “seu primo está fazendo doutorado, e você?”

Eu não sei como alguém acha que algo de bom pode sair de uma frase dessa, se você é a pessoa que faz isso, entenda que isso não ajuda ninguém, mexe com a autoestima dos outros e com a saúde mental. Deixe que cada um tenha suas próprias conquistas ao seu tempo e não desmereça as vitórias dos outros, mesmo que você não considere vitória, você não tem o direito de falar nada a respeito. 

Dentro desse tema ainda temos o subtipo que dá pitaco na carreira dos outros sem ser chamado “acho que você deveria fazer isso ou aquilo no trabalho”. Vamos cada um cuidar de suas próprias vidas profissionais? A família agradece. 

  • O gordofóbico que fala mal das variações de peso dos outros: “Fulana tá gorda né? / Sicrana tá magra demais…”

Esse comentário muitas vezes vem disfarçado de preocupação com a saúde, mas não é. Quem comenta isso, na verdade não se importa com a saúde do outro. Geralmente são pessoas que não cultivam o amor-próprio e, por não se amarem, só possuem coisas desagradáveis a dizer, afinal a gente só dá o que tem. 

  • O fiscal de natalidade do IBGE: “você não vai ter filho?” 

Mais uma amostra grátis de machismo. Essa pergunta é feita exclusivamente às mulheres, imprimindo uma maternidade compulsória, como se a mulher precisasse ter filhos para cumprir alguma obrigação da natureza e só então ser feliz. Ter ou não ter filhos não diz respeito a mais ninguém, é uma decisão da mulher (ou do casal) e você não tem direito de perguntar as razões para isso, a pessoa diz se quiser, quando quiser.  

  • O que comenta da aparência: “Ficava mais bonita loira”

Então fique loiro você! Se você gosta de cabelo loiro, moreno, longo, curto, liso, cacheado, então use! A sua opinião sobre a aparência dos outros é absolutamente dispensável. Use seu cabelo como preferir e deixe que os outros façam o mesmo. Aqui também vale falar das clássicas frases que são ofensas disfarçadas de elogios do tipo “seu cabelo tá lindo curto, mas gostava mais dele comprido cobrindo suas orelhas” Esse é o típico comentário da pessoa infeliz, um coitado, mas que seja coitado calado e vá procurar ajuda. 

  • O que conta vantagens imaginárias: “Vou passar as férias na Europa”

Essas pessoas possuem um perfil bem claro: elas gostam de se sentir superiores e tentam a todo custo rebaixar os outros contando vantagens que são vantagens apenas na cabeça delas, ninguém se importa onde elas vão passar as férias.

Essas criaturas são adeptas ao “complexo de colonizado” e praticam auto xenofobia livremente sem entender nada da história do povo brasileiro, colocando europeu e americano em posição de superioridade. Noção? Não tem. 

  • O que gosta de colocar lenha na fogueira: “sua ex está com outro, tá sabendo?” 

Qual é a utilidade desse comentário? Essa pessoa tem problemas sérios de falta do que fazer, vamos combinar de deixar a louça da ceia para essa criatura lavar. 

  • O que faz piada de tiozão e deixa todo mundo sentindo vergonha alheia

Esse é o menos ofensivo, na verdade ele não está fazendo nada com a intenção de constranger ninguém, ele só está carente e cada piada é uma tentativa desesperada de se conectar e receber atenção. Esse não merece puxão de orelha, merece abraço. 

Além desses personagens comuns, ainda temos outros também muito populares: a prima falsa, a tia invejosa, o bêbado que enche o saco de todo mundo, o que compra presente ruim no amigo secreto, o que não contribui em nada na ceia e só chega para comer e vai embora sem ajudar a arrumar nada, os metidos que não gostam dos de se misturar, o que está sempre ocupado e usa tudo como desculpa para se atrasar, achando que sua vida é mais importante que a das outras pessoas e todas têm que esperá-lo; a sem noção que fala coisas inapropriadas, a sarcástica que alfineta as pessoas no amigo secreto, a gratiluz metida a coach até no Natal…

Clique aqui para ler todos os textos de Priscila Werton

Ainda temos uma população flutuante de agregados que mudam todo ano (ou não) e a melhor companhia na ceia de Natal acaba sendo o álcool (agora também na versão em gel kkk). No final das contas está todo mundo rezando para acabar logo e ir embora, ou bebendo para ficar dormente. Cadê o amor? O amor não está servido, precisa ser preparado, você preparou o amor? 

A verdade do Natal brasileiro é que as pessoas estão mais preocupadas em imitar uma tradição americana do que com o valor da celebração familiar. Ofensa gratuita é uva passa: espalhada em todos os pratos, ninguém gosta, mas acaba engolindo. É preciso ter paciência, afinal tudo na vida passa, até uva passa. 

O Natal é o encontro anual das pessoas que nasceram na mesma família, mas se julgam e se ofendem o tempo todo e, além disso, é uma festa machista. Na grande maioria das famílias, mães e mulheres passam o dia todo na cozinha preparando a ceia e os maridos participam só bebendo e comendo, não colaboram em nada. Ótima oportunidade para mudar mais um arranjo disfuncional da família tradicional brasileira. 

Quem é você no Natal? Mais um que contribui para estragar a noite dos outros e a sua própria ou o que leva luz e faz dessa noite agradável a todos? Que os personagens nesse Natal se reinventem, que a empatia seja a verdadeira religião e o espírito natalino e que o respeito seja a roupa nova do Natal 2021.

“Então na ceia de Natal não podemos conversar sobre nada?” Antes de falar algo, se pergunte “como eu me sentiria se falassem isso pra mim” se você sentir qualquer desconforto com a pergunta, melhor ficar calado mesmo. 

No sentido oposto, quando alguém falar algo que te fere, ficar calado não é respeito, é uma agressão contra você mesmo. Aguentar as frases tóxicas de pessoas desagradáveis não é respeitar o outro ou os mais velhos, é desrespeitar você. Não é porque é um irmão, um primo, uma tia, um tio que você é obrigado a amar. Não é e nem deve, o amor tem que ser preparado, tem que escolher os ingredientes e adicionar as quantidades certas, tem que deixar a massa crescer, tem que experimentar, colocar um pouquinho mais de açúcar, servir com caldas e acompanhamentos… para aí sim termos amor na mesa. Mas se não foi preparado e não está servido, não tem nada de errado em não amar pessoas que não contribuíram com a receita do amor, mesmo que sejam sangue do seu sangue. 

Não permita que pessoas se sintam confortáveis desrespeitando você. É preciso que as coisas sejam ditas, não precisa ser com ofensas, pode ser só uma conscientização, uma conversa, uma tentativa de resgatar o carinho. Mas nem sempre funciona, e aí é o momento de entender que algumas coisas são sobre o outro, não sobre você e você não pode mudá-lo. Sinta muito, mas aceite e se afaste para se preservar, sua saúde mental não vale a companhia de familiares tóxicos. Feliz natal não é natal feliz. Natal feliz às vezes é ligar o foda-se. 

Sugestões de diálogos para a noite de Natal: 

  • “Já leu o livro x? Li e me fez bem, talvez você goste.”
  • Indicação de filmes, séries, documentários, exposições culturais, shows… muita ideia legal pode ser trocada sem ofender ninguém. 
  • “Está tudo bem com você? Precisa de ajuda? É normal não estar bem. Quer conversar? Estou aqui para quando você estiver pronto para falar. Conte comigo.”
  • Abraços são bem-vindos, se ambos quiserem, claro. 
  • Karaokê também é ótimo porque ocupa a boca de todo mundo e não sobra espaço para agredir ninguém.

Não comente sobre relacionamentos e conquistas profissionais, a não ser que seja para parabenizar e elogiar, sem desmerecer os outros. Não julgue. Não opine. Ouça. Muita gente está carente da atenção que não teve ao longo do ano. Seja uma ajuda, e não um babaca que só empurra as pessoas mais um pouco para o fundo do poço.

O Natal de 2021 é especial porque é o Natal da pandemia em que começamos a ver uma luz no fim do túnel, mas os nossos sentimentos ainda estão destroçados pelas perdas, sofrimentos e dor. Seja ajuda para quem precisa, e quando eu falo isso não estou falando para você ir distribuir comida aos moradores de rua ou levar brinquedos para crianças carentes, essas atitudes também são importantes, mas exercer a empatia começando dentro da própria casa, oferecendo amor e compreensão aos seus próprios familiares é um desafio ainda maior. 

 “Ah, mas o Natal sempre foi assim, é assim mesmo”, então repense, mude e evolua. Não é porque você cometeu um erro que vai continuar insistindo nele. Sempre é tempo! 

Mande esse texto como uma (in)direta para alguém que você acha que precisa melhorar e ressignificar o sentido do Natal e tenha um Natal verdadeiramente feliz em 2021! 

E me sigam no Insta @priscilawerton.

Beijos

Compartilhe: