E no início era o verbo: Prometeu rouba o fogo dos Deuses
“Todos os homens por natureza desejam conhecer”, é a premissa enunciada por Aristóteles em sua Metafísica. A mitologia, que é a pedra fundamental da civilização, desvela, pelo poder da imaginação criativa e da poesia, a cosmologia. Prometeu, o titã, junto com seu irmão Epimeteu foram incumbidos de criar os animais e os homens. Epimeteu usou sua criatividade com esmero na criação das mais variadas espécies da fauna, conferindo os atributos da força, velocidade e coragem aos mais diversos animais, mas quando foi chegada a vez do homem, os atributos e adjetivos estavam esgotados. Epimeteu socorreu-se, então, de Prometeu que teve a ideia de roubar o fogo dos deuses e levá-lo aos homens. O fogo permitiu aos homens dominar o meio circundante, afugentar feras, cozer alimentos e fundir metais, cunhando armas e moedas. O fogo da mitologia de Prometeu é a metáfora da luminosidade da inteligência que permitiu ao homem romper os grilhões da natureza e moldar seu meio ambiente, o Umwelt humano é moldado pelo brilho luminoso da inteligência.
Os deuses mitológicos, entretanto, ficaram furiosos com o roubo do fogo luminoso da inteligência, perpetrado por Prometeu em favor dos homens. Então, os deuses resolveram se vingar de Prometeu e da humanidade.
Prometeu foi acorrentado a uma rocha e teve o seu fígado devorado diariamente por uma águia. A cada noite o fígado de Prometeu se regenerava para ser devorado pela águia no dia seguinte, o inferno de Prometeu se renovava a cada dia.
Antes de ser acorrentado a uma rocha, Prometeu, que tinha o poder de antever o futuro, alertou ao irmão, Epimeteu, que não aceitasse nenhum presente dos deuses. Prometeu sabia que seria punido e não seria o único, pelos deuses geniosos. Pandora foi a primeira mulher, recebera a beleza de Afrodite e a eloquência de Hermes. Pandora era bela e formosa, inteligente e curiosa. Zeus então resolveu presentear Epimeteu com Pandora e junto enviou uma caixa, Epimeteu caiu de encantos por Pandora e aceitou a prenda. A bela Pandora não resistiu à curiosidade e abriu aquela caixa incrivelmente convidativa. A humanidade que até então fora criada pura e imaculada por Prometeu, conheceu o pecado. A caixa de pandora continha a corrupção, pestes, inveja, fome e ignorância. Todo o amplo leque de infâmias e ignomínias que viriam a assolar a humanidade tinham escapado da caixa de Pandora. A humanidade fora, então, punida por sua ousadia em roubar o fogo dos deuses. No fundo da caixa só restou uma única coisa: a esperança.
Prometeu, que tinha o poder da previdência, aquele que antevê o futuro, foi libertado do seu ciclo interminável de torturas por Hércules, que rompeu as correntes que o agrilhoavam. O fogo de Prometeu trouxe luminosidade e ciência à humanidade, mas a curiosidade pueril de Pandora abriu a caixa das misérias e sofrimentos que maculam o rastro luminoso da humanidade.
Cosmos é a palavra grega para ordem, ela se contrapõe ao caos. Foram os jônios, povo da Ásia menor, os primeiros a procurar uma explicação alternativa à mitologia. Foram os comerciantes e navegadores gregos da jônia que inauguraram um viés explicativo naturalista. Os fenômenos da natureza deveriam buscar explicação na própria natureza. Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes foram um misto indiviso de filósofos e cientistas, não por acaso chamados de físicos que pouco têm com os físicos modernos e mais se aproximam de naturalistas, aqueles que buscavam explicações causais para os fenômenos naturais.
Carl Sagan (1934-1996), astrônomo, cientista e escritor, é constantemente aclamado como o maior divulgador científico da história. Sagan era um poeta da ciência que conseguia traduzir, em linguagem acessível, os complexos conceitos da ciência moderna. Cientista de sucesso, participou do treinamento dos astronautas do Projeto Apollo que levou o homem à lua, bem como de inúmeros projetos científicos da NASA (Agência Espacial Estadunidense) como o lançamento das naves Voyagers que exploraram o sistema solar. Carl Sagan viveu no século 20, o século da revolução da telecomunicação, no país mais poderoso do mundo e que tinha na ciência, tecnologia e telecomunicação o tripé de sua hegemonia global. Mas Sagan não era um artífice da hegemonia estadunidense, era um cientista e divulgador da ciência, uma chama bruxuleante na escuridão de guerras, catástrofes e epidemias que foi o século 20.
“A ciência é muito mais que um corpo de conhecimentos. É uma maneira de pensar” dizia Carl Sagan. As centelhas do conhecimento científico nasceram na Jônia, o embate entre o cosmos, a ordem da razão, e o caos, a desordem dos desejos, marca a separação entre ciência e religião. Como diz Sagan em sua última entrevista, pouco antes de falecer em 1996, ciência e religião se ocupam de coisas distintas. Religião tem a ver com história, literatura e moral, em tratar misericordiosamente os menos afortunados entre nós. Não se nega a sabedoria e valor prático da religião. Mas a religião não se sai bem quando se mete a falar de ciência. A ciência que aparece na Bíblia foi adquirida pelos hebreus no cativeiro da Babilônia, os babilônicos, naquela época, estavam na ponta em matéria de ciência, mas de lá para cá se passaram mais de dois mil anos. A ciência adquiriu muito mais experiência e aprimorou suas técnicas, linguagem e metodologia.
Os mitos, as religiões e as explicações sobrenaturais para fenômenos naturais não são coisas apenas do nosso tempo, sempre acompanharam a humanidade, mas o que preocupa nos dias correntes é que em uma civilização científica que depende totalmente da ciência e da tecnologia tenha tanta gente desinteressada em saber como a ciência funciona, dizia Sagan. A ignorância científica em uma civilização que depende da ciência e da tecnologia é uma mistura perigosa entre ignorância e poder.
Como dizia Sagan, “ciência é um modo de pensar”, modo baseado no ceticismo e no amor pelo experimentalismo. A ciência é um modo de pensar fundamentado no falibilismo, os enunciados científicos podem ser refutados pela experiência. As verdades da ciência não podem ser absolutas, como as dos mitos ou das religiões, pois sujeitas à contraprova. O modo de pensar científico reconhece a falibilidade do ser humano em pensar, o pensamento carrega a possibilidade do erro, por isso que as teses científicas humildemente sujeitam-se à revisão, à refutabilidade diante de novas evidências. O conhecimento científico é falível e precário (revisável) como o ser humano o é. Assim, a ciência não é obra de homens arrogantes que ousam questionar as verdades divinas expressas na religião, a ciência é obra da humildade daqueles que reconhecem que a capacidade de conhecer do homem é falha, que ela, por isso mesmo, deve estar sujeita a revisões, mas é também o único meio de sobrevivência de que dispomos, a capacidade cognitiva humana.
A ciência é um empreendimento intergeracional. Os homens de ciência de uma geração aportam conquistas e realizações que serão aproveitadas e aperfeiçoadas pela seguinte, muitas vezes até demolidas e substituídas por novos empreendimentos científicos. Dos astrônomos babilônicos e assírios até a ciência dos nossos dias, a aventura do conhecimento humano teve inúmeros capítulos, a história da ciência é um registro da riqueza do engenho humano, de seus triunfos e tragédias. Da Escola de Atenas, com a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, passando pela Biblioteca de Alexandria, a Casa da Sabedoria de Bagdá, no Califado Abássida, até o renascimento cultural europeu, a ciência revelou-se o empreendimento humano mais eficaz e profícuo.
O método científico moderno formulado por Francis Bacon, René Descartes, Galileu, Kepler e Copérnico, abriu o caminho para as revoluções tecnológicas que levaram à emergência da primeira civilização científica que passou a controlar a energia termonuclear, a colocar a maior parte da população em núcleos urbanos e a criar um banco de dados em sistema computacionais capaz de armazenar e processar informações muito além da capacidade humana.
Nas palavras do divulgador científico que foi Carl Sagan, no final de Os Dragões do Eden, obra publicada em 1978: “Somos uma civilização científica – como disse Jacob Bronowski. Isso significa uma civilização na qual o saber e sua integridade são fatores cruciais. Ciência não é mais que uma palavra latina que significa conhecimento… Nosso destino é o conhecimento.”
A valorização do conhecimento científico foi um dos pilares da hegemonia estadunidense no século 20, é bem conhecida a inclinação filosófica dos pais fundadores (founding fathers) dos Estados Unidos, dentre eles Thomas Jefferson (1743-1826) e Benjamin Franklin (1706-1790), mas poucos conhecem os pais fundadores da ciência norte-americana no século 19 que tiveram uma contribuição decisiva para a formação do DNA cultural americano.
Benjamin Peirce (1809-1880) foi o primeiro cientista estadunidense a ter suas pesquisas reconhecidas fora dos Estados Unidos, considerado o maior matemático norte-americano de seu tempo, foi professor em Harvard por 49 (quarenta e nove) anos, sendo um dos fundadores da Academia de Ciência daquele país. Em um tempo em que os americanos estavam atrás dos europeus em matéria de ciência e filosofia, o naturalista franco-suíço Louis Agassiz (1807-1873) aportou valor ao meio acadêmico estadunidense. Benjamin Peirce dirigiu o Instituto Geodésico norte-americano e ajudou a criar o observatório astronômico de Harvard; Agassiz, que trabalhara com o naturalista bávaro Martius na pesquisa sobre a flora brasileira, fora um homem de ciência respeitado de seu tempo. Esses dois medalhões da ciência do século 19 ajudaram a construir o caminho luminoso que viria a colocar a universidade de Harvard entre as mais importantes do século 19.
A biografia dos pais fundadores da ciência nos Estados Unidos diz muito dos traços culturais daquele país, pois se Benjamin Peirce e Louis Agassiz eram respeitados homens de ciência, ambos eram também adeptos do racismo científico. O racismo estadunidense teve um DNA científico, sendo avalizado pelo meio acadêmico. Para Benjamin Peirce e Agassiz, a supremacia branca tinha explicação científica.
O século 19 foi marcado pela emergência do espírito científico, acreditava-se, naquele momento, que a ciência seria capaz de eliminar todas as mazelas humanas. O século que viu nascer o positivismo na filosofia e o evolucionismo nas ciências naturais, teve no Pragmatismo a genuína filosofia norte-americana.
O pai do Pragmatismo, segundo documentos históricos e a afirmação de William James (1842-1910), foi Charles Sanders Peirce (1839-1914), filho de Benjamin Peirce, considerado por Bertrand Russell (1872-1970) o maior filósofo que já surgiu na América. Os feitos intelectuais de Charles S. Peirce são impressionantes para uma só pessoa em qualquer época, hoje Charles Peirce é conhecido por ser o pai da semiótica, capaz de influenciar filosoficamente intelectuais como Umberto Eco, Habermas e Karl-Otto Apel. Mas, em seu tempo, Peirce foi um cientista e lógico. O Pragmatismo de Peirce emergiu como um projeto de lógica da ciência, de influência kantiana e depois se aperfeiçoou como uma autêntica filosofia científica que, para além da lógica expandida como semiótica, abrangia a fenomenologia científica e a metafísica evolucionária, quando ele passou a chamá-la de Pragmaticismo. Charles S. Peirce, segundo John Deely (1942-2017), foi o último dos filósofos modernos e o primeiro dos Pós-modernos, um filósofo de características raras pois era um cientista de laboratório, profissional, de rica formação e ao mesmo tempo um matemático e filósofo de impressionante erudição que conhecia os filósofos escolásticos menos afamados.
A negligência dos norte-americanos em relação à obra de Peirce, em seu tempo, é matéria digna de registro, Charles Peirce foi um filósofo pouco valorizado entre seus contemporâneos, vindo a ser, de fato, descoberto somente no século 20 quando da emergência da semiologia europeia. Se a semiologia europeia teve base linguística, a semiótica de Peirce, surgida quase cem anos antes, teve base filosófica e científica. O Pragmaticismo de Peirce é um dos projetos intelectuais mais ambiciosos e complexos que conjugou filosofia e ciência. Quando Carl Sagan dizia que ciência não era um corpo de conhecimentos mas um modo de pensar, é inevitável lembrar que Charles Peirce dizia a mesma coisa quando afirmava que o Pragmaticismo não era uma filosofia mas um método, um modo de pensar cientificamente. O Pragmaticismo de Peirce sofreu forte influência do empirismo inglês e do evolucionismo de Charles Darwin. O Pragmaticismo é um empirismo qualificado pelo evolucionismo.
Louis Menand, conta-nos, em The Metaphysical Club: a story of Ideas in America, a influência cultural nos Estados Unidos exercida pelo Clube Metafísico que existiu em Boston em 1873, que reuniu Charles Peirce, William James e Oliver Wendell Holmes Jr. dentre outros. Em um tempo em que as universidades na América do Norte não tinham tanta força orgânica e política, as tertúlias filosóficas exerciam a função de profusão das ideias. O Pragmatismo de Peirce desdobrou-se em vários outros pragmatismos, como o psicológico de William James, o jurídico (realismo jurídico) de Wendell Holmes Jr. (1841-1935) e o pedagógico-democrático de John Dewey (1859-1952). Ideias que influenciaram o meio intelectual estadunidense e repercutiram, em versão popular, na cultura de massa dos Estados Unidos do século 20. Os pais fundadores da filosofia na América, os filósofos do Pragmatismo Clássico do século 19, estão na origem da Filosofia Analítica do século 20.
Em uma das passagens mais belas da história da filosofia ocidental, Evolutionary Love de 1893, Peirce inicia: “Tão logo a filosofia desfez-se do seu casulo dourado de crisálida, a mitologia, elegeu o amor como seu agente evolucionário.” No texto, Evolutionary Love, Peirce advoga em favor do amor ágape (amor universal do criador pela criatura) como o agente da evolução da inteligência. Justapondo à evolução das espécies de Darwin, a evolução cognitiva da inteligência. Em The Fixation of Belief (A fixação da crença) de 1877, Peirce defende que a ciência é um método de fixação de crença que diferente dos demais (Método da Tenacidade, Autoridade e A Priori), baseia- se no falibilismo, na possibilidade de ser contraditado por fatos novos, pois a capacidade cognitiva humana está sujeita ao erro. A ciência, em Peirce e no seu Pragmaticismo, ganha uma fundamentação filosófica profunda e elegante, com terminologia original de uma das mentes mais criativas da história das ideias, digna de um Aristóteles da era moderna.
Na séria da TV Britânica BBC de 1973, The ascent of man (a ascensão do homem) Jacob Bronowski (1908-1974) faz uma abordagem humanista da ciência, onde enfatiza o atributo mais marcante da mente humana: ser capaz de fazer, ao mesmo tempo, ciência e arte. A ascensão do homem é a apoteose do humanismo científico, capaz de fazer ciência e edificar monumentos artísticos, razão sensível e criativa.
Jacob Bronowski era de origem polonesa, na infância viveu na Alemanha e migrou para a Inglaterra fugindo do nazismo, vários de seus parentes não tiveram a mesma sorte e faleceram no campo de concentração de Auschwitz. Em um dos momentos mais emblemáticos da série que lhe deu notoriedade, ele volta a Auschwitz e inicia sua fala tecendo uma crítica à ciência mecanicista que tenta reduzir o ser humano a números, “a ciência tenta desumanizar o ser humano reduzindo-o a números, isso é falso, tragicamente falso”. Quando se tenta mecanizar a ciência, desumanizando-a, o que se tem é o campo de extermínio como expressão de racionalidade instrumental. “Quando o ser humano acredita que ele tem o conhecimento absoluto, um conhecimento que não é testado pela realidade, o que acontece são coisas como Auschwitz”. Em outros termos, doutrinas fechadas e que aspiram ao saber absoluto, um saber próprio dos deuses, geram regimes assassinos e letais como foi a Alemanha nazista (1933-1945), uma sociedade tecnológica mas desumanizada, uma cultura da racionalidade instrumental fundamentada no racismo científico, como os propugnados pelos pais da ciência estadunidense. Como diz Jacob Bronowski, ao homenagear seus parentes mortos no campo de extermínio nazista, “a ciência é um tributo ao que o ser humano pode conhecer não obstante sua falibilidade”.
A lição de Jacob Bronowski é de que quando o ser humano aspira ao saber de Deus e ao poder absoluto ele produz atrocidades como Auschwitz; quando busca o saber humanamente acessível, por meio da ciência humanista, ele reconhece sua falibilidade, aceita que o erro é o pecado cognitivo que permite a correção do percurso, o acesso à verdade humanamente possível.
Experiências como as narradas por Jacob Bronowski, do campo de extermínio como o paroxismo político da negação da dignidade humana e da titularidade de direitos, marcarão toda a arquitetura política e jurídica que emergirá no plano das relações internacionais no curso do pós-segunda guerra. O nazismo e sua doutrina eugenista de supremacia racial deita raiz no racismo científico do século 19, atingindo no século 20 sua apoteose dantesca ao negar a humanidade de tudo o que não se encaixa no modelo teórico eugênico da raça pura.
A história do direito no século 20 é a história da construção de uma rede internacional de proteção da dignidade humana, sem conceitos restritivos como o pertencimento a uma etnia, nação, língua ou credo religioso. A emergência política do Direito Internacional dos Direitos Humanos marca a qualificação do humanismo como categoria do Direito Internacional Público. Se a história do Direito Internacional Público é marcada pela busca da organização das relações entre os povos com base na racionalidade em lugar da guerra, o Direito Internacional dos Direitos Humanos busca a qualificação humanista do exercício dessa racionalidade jurídica.
Não por acaso, a hoje criticável ONU (Organização das Nações Unidas), que substituiu a antiga Liga das Nações, em 1945, adota os Direitos Humanos como o norte fundacional de sua Carta de 1945 e em 1948 publica sua Declaração Universal dos Direitos Humanos, tantas vezes criticada por seu conteúdo retórico e de duvidosa eficácia, entretanto, é um símbolo jurídico que visa semear o caminho sempre íngreme de um paradigma político e jurídico norteado pelo humanismo internacional. É verdade que a Declaração de 1948, por ser Declaração, não tem força vinculante como os Tratados e Convenções, mas tem uma peculiaridade determinante, é a base do jus cogens internacional, o núcleo irradiador de princípios e regras de Direito Internacional Público. Assim, a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 não é um catálogo retórico de intenções dos Estados que saíram vencedores da guerra, é o filtro axiológico e hermenêutico que deve balizar as relações entre os povos.
Na história da Filosofia do Direito, a emergência da civilização científica (expressão de Carl Sagan) é acompanhada pela positivação do direito. A era da civilização científica é a era do positivismo jurídico, onde o pluralismo das fontes do direito, como se assistiu até a idade média europeia, foi substituído pelo monopólio da fonte formal do direito pelo Estado que passou a ser a forma de organização política hegemônica. O fenômeno da positivação do direito pelo Estado, é o fenômeno da substituição da mutabilidade dos costumes jurídicos pela previsibilidade da norma criada e imposta pela força coercitiva do Estado. O capitalismo, como modo de produção de bens econômicos e valores culturais, não funciona bem com o caos da pluralidade das fontes do direito e a mutabilidade imprevisível do critério de justiça. A eficiência econômica clama pela positivação do direito.
Auschwitz e o modelo político do campo de extermínio como paradigma fascista de negação da universalidade da dignidade humana, levou a uma ruptura também na Filosofia do Direito. A era do positivismo jurídico entrou em crise, o direito divorciado da moral e reduzido apenas à positividade da norma (formalismo jurídico), se fora útil para a economia capitalista e tecnocrática, revelou-se catastrófico no plano cultural e humano. O direito quando se divorcia do mínimo de moralidade, cai no pântano da legitimação das atrocidades, não por acaso a tese de defesa de Eichmann, nos criticáveis tribunais de exceção que se seguiram à segunda guerra, foi: “eu só cumpri a lei”. Quando acusado do extermínio de judeus em campos nazistas que ele, como burocrata do governo alemão, administrava. O pós-positivismo jurídico marcou a retomada do diálogo entre direito e filosofia, a superação da jurisprudência positivista dos conceitos pela jurisprudência axiológica dos valores. O humanismo foi, novamente, qualificado como categoria da Filosofia do Direito. O paroxismo anti-humanista do nazismo, eugênico e restritivo da dignidade humana, teve como reação a volta daquilo que a era do positivismo jurídico havia negado: o Direito Natural. No século 20, no pós-segunda guerra, o conteúdo axiológico e filosófico esquecido do Direito Natural voltou como Direitos Humanos, o núcleo axiológico e hermenêutico do Direito Internacional Público.
Em esquemática e simplória síntese, válida apenas para exposição didática, os Direitos Humanos evoluíram em três grandes dimensões ao longo da história moderna. A primeira dimensão está associada ao liberalismo político, com o seu individualismo e valorização da liberdade, são direitos vinculados à prática da cidadania e que exigem que o Estado os garanta não intervindo (obrigação de não fazer). A segunda dimensão é vinculada ao socialismo e seu ideal de igualdade material entre os seres humanos. É a outra face da moeda que pensa em termos de materialização dos direitos sociais, econômicos e culturais. Os direitos de segunda dimensão têm no Estado um promotor desses direitos, tendo a obrigação de fazer. A terceira dimensão dos Direitos Humanos transcende o indivíduo, são transindividuais porque abarcam a humanidade, uma entidade coletiva de número indeterminado. São os Direitos Humanos de Solidariedade que recaem sobre grupos difusos e coletivos e pertencem primeiramente e esses entes e indiretamente ao indivíduo.
A ciência é um empreendimento coletivo, assim afirmavam Carl Sagan e Charles Peirce, é uma edificação intergeracional que aproxima, através do método e linguagem científica, pessoas de lugares e épocas distintas. A comunidade dos pesquisadores, como chamava Peirce, é a responsável pela revisão crítica dos resultados das pesquisas que são norteadas pelo critério da publicidade. A ciência, assim, é um bem juridicamente qualificado, pois pertence à humanidade, sendo fundamental para o seu aprimoramento. Não apenas seu corpo de conhecimento constituído, mas suas técnicas e métodos compõem um bem juridicamente qualificado. O modo de pensar científico não pode ser monopólio de grupos ou nações para subjugar e negar a dignidade humana dos demais. Nesse norte, a ciência como bem jurídico, como Direitos Humanos de Solidariedade, iguala-se ao direito à paz, à autodeterminação dos povos, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à comunicação como Direitos Humanos de Solidariedade.
Experiências como a do nazifascismo levaram à humanização do Direito Internacional e, ao mesmo tempo, à constitucionalização dos Direitos Humanos. Um dos capítulos mais relevantes da história do direito no século 20 foi a aquisição de relevância política, técnica e científica do Direito Constitucional. Os Direitos Humanos quando se constitucionalizam, positivados em uma Constituição, chamam-se de direitos fundamentais. O que foi dito sobre as dimensões dos Direitos Humanos é válido para o catálogo dos direitos fundamentais. A Constituição de 1988, a mais democrática e humanista da história do constitucionalismo brasileiro, deu relevo à Ciência e Tecnologia em capítulo próprio (Capítulo IV, Título VIII), nos artigos 218 e 219. Tratando a ciência, através da jurisprudência da Corte Constitucional, como direito fundamental.
A história dos dias correntes, como no mito de Prometeu narrado no início desse texto, abriu a caixa de Pandora, assolando a humanidade com a epidemia de COVID-19, os anos de 2020 e 2021 foram terrivelmente difíceis, com milhões de mortes no mundo e milhares no Brasil. Apesar de todos nós conhecermos essa história, pois vivemos para contá-la, nem todos tiveram a mesma sorte. As perdas de vidas humanas são uma perda de capital cultural e existencial inestimável. Mas um fato eloquente evidencia-se soberano, foi em um momento tormentoso para a humanidade que a força luminosa da ciência quebrou os grilhões que poderiam levá-la a uma tragédia nebulosa ainda maior. O fogo luminoso da ciência não pode ser apagado ou menosprezado, a ciência é mais que o destino humano, como dizia Carl Sagan, é mesmo o sinônimo de sua liberdade, pois só com ciência, vidas podem ser salvas e a humanidade liberta de ciclos pandêmicos que de tempos em tempos espalham terror e morte. A ciência, de Prometeu aos nossos dias, é uma dádiva divina que eleva as virtudes humanas.
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: (a idade da fábula): histórias de deuses e heróis; tradução de David Jardim Junior-19 ed.- Rio de Janeiro, 2001.
MENAND, Louis. The Metaphysical Club– 1st ed. Farrar, Straus and Giroux- New York, 2001.
SAGAN, Carl. Los Dragones del Eden: especulaciones sobre la evolución de la inteligencia humana. Trad. Rafael Andreu. Primera Edición. Ediciones Grijalbo- Barcelona, 1979.
Fontes de Mídia Eletrônica:
A última entrevista de Carl Sagan: https://www.youtube.com/watch?v=WsaqkaXdVEg
Ascent of man, episode 11- Knowledge or Certainty: https://www.youtube.com/watch?v=ltjI3BXKBgY