Todos nós somos violentos. Reconhecer e modificar as nossas atitudes violentas é o ponto de partida. Com frequência, não reconhecemos nossa violência porque nossa visão de violência é: brigar, matar, espancar e guerrear, coisas que, normalmente, não fazemos. Essa seria a violência física, mas a Comunicação Não Violenta (CNV) vem nos alertar para a violência passiva, aquela em que o sofrimento tem natureza emocional, essa violência que alimenta a fornalha da violência física. Como poderíamos apagar um incêndio se antes não cortamos o suprimento de combustível que alimenta as chamas?
A não violência não é uma estratégia pontual, nem existe para nos tornar pessoas dóceis ou facilmente influenciáveis. Trata-se de inculcar atitudes positivas no lugar de atitudes negativas que nos dominam. Infelizmente estamos sempre esperando que os outros mudem primeiro, mas a CNV precisa partir de nós.
O mundo em que vivemos é o que nós fazemos dele, se mudarmos a nós mesmos poderemos mudar o mundo e essa mudança começa pela nossa linguagem e pelos nossos métodos de comunicação. A CNV se baseia em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a capacidade de continuarmos humanos, mesmo em condições adversas e permanecer sintonizados com nossa natureza compassiva até nas piores circunstâncias. O texto a seguir relaciona técnicas da CNV tiradas do livro “Comunicação Não Violenta” de Marshall B. Rosenberg com situações médicas cotidianas do Pronto Atendimento (PA).
Em João Pessoa, temos uma endemia de pacientes usuários crônicos de opioides (analgésicos de alta potência) em PAs, vários serviços passam por essa situação. O vício em opioide demonstra falha nos serviços ambulatoriais que não fizeram o diagnóstico inicial e o acompanhamento da doença de base do paciente, que é apenas uma vítima das falhas do sistema. O ambiente ideal para o tratamento de quadros álgicos crônicos não é o PA, mas não vai ser se recusando a atender o paciente ou o deixando com dor que você vai ajudar. Essa é uma questão bem polêmica, cada médico tem sua abordagem, essa é a minha.
O paciente viciado em opioide está em sofrimento porque sua doença de base não está com tratamento adequado e porque ele é um viciado, que por si só é uma patologia clínica independente, e não cabe ao médico do PA o acompanhamento desses pacientes, é preciso acompanhamento ambulatorial por equipe multidisciplinar de especialistas para que a qualidade de vida desse paciente melhore.
Cada entrada desse paciente no PA deve ser individualizada, considerada a redução do uso de opioides e a redução de danos sempre que possível. O paciente adicto em opioides geralmente estressa a equipe do PA por demorar a receber alta e permanecer no PA por tempo prolongado, mas é preciso lembrar que ele está em sofrimento e, além de sua doença de base, é adicto o que precisa ser tratado como doença, porque é, e não como uma situação intencional ou falta de força de vontade para se recuperar.
Médico sem CNV: pensa que não aguenta mais ver o paciente no PA.
Médico com CNV: reconhece e assume suas próprias necessidades, e entende que a interpretação do outro é uma manifestação da sua própria necessidade, logo pensa que deve estar cansado e/ou sobrecarregado com trabalho ou acontecimentos domésticos ao ficar irritado com o paciente adicto e repensa a forma de tratá-lo.
Na medicina existe uma condição chamada de Síndrome de Munchausen ou Transtorno Factício que é uma desordem psiquiátrica em que o paciente tem necessidade de assumir uma posição de doente em busca de atenção médica. Habitualmente, não possui nenhum objetivo lógico ou ganho financeiro, sendo considerado compulsivo, diferente de uma simples simulação ou de hipocondria, em que o paciente de fato acredita ter patologias.
No Transtorno Factício, o paciente é ciente de seus atos, porém não consegue evitá-los, podendo de fato estar com uma doença orgânica a qual ele toma atitudes para piorar ou provocar uma doença orgânica colocando-se em risco. Essa é uma situação muito delicada, é um paciente que precisa de cuidados especiais, manejo difícil. Uma vez que diagnosticou o problema, o médico pode se proteger registrando tudo que está vendo em prontuário, e para que os outros colegas tomem ciência também, solicitar acompanhamento psiquiátrico em conjunto e não culpar ou sentir raiva do paciente, ele está doente.
Muitos pacientes, no sistema público e privado, acham que as coisas podem ser resolvidas com gritaria e confusão. Mas não os culpe, ninguém chega atacando os outros sem motivo, por mais que nada justifique o desacato, você não sabe o que levou o paciente a chegar a esse ponto. Será que ele vem sendo negligenciado por vários outros serviços e profissionais de saúde? Será que o desespero e medo o levaram a gritar? Será que sua dor é grande demais e ele não foi acolhido e respeitado? Muitas coisas podem levar a uma situação de confusão nos PAs.
Lembre-se sempre que você é o médico, você é o responsável por guiar a situação para que ela seja resolvida da melhor maneira possível. Acolha o paciente, chame membros da equipe para te darem apoio moral e servirem de testemunhas, garanta o atendimento desse paciente (ou acompanhante) que está em sofrimento e, conforme ele for entendendo que você e sua equipe estão dando o melhor para ajudá-lo, a situação tende a ser resolvida sozinha, não é preciso confrontar ou discutir.
Em seguida registre tudo no livro de ocorrências do serviço. Caso ocorra ameaça de morte, se proteja, o serviço deve te dar condições de trabalhar em segurança. A segurança sua e da equipe deve ser prioridade. E caso as coisas fujam do controle, procure um advogado especialista em direito médico, indico o Dr Igor Mascarenhas @igormascar .
Para todos os médicos e estudantes de medicina: tenham o contato de um bom advogado especialista em direito médico, ele pode te ajudar a sair de situações complicadas e melhorar a qualidade do seu atendimento. Sigam o Dr Igor no Instagram, ele compartilha muitas informações úteis por lá.
Não precisa dizer que o médico é você nem impor nada, o paciente sabe que o médico é você ou não teria te procurado. Talvez ele esteja impondo condutas porque nunca teve uma boa relação médico-paciente e carrega traumas de outros atendimentos em que não foi visto ou cuidado como gostaria. Que tal em vez de discutir conduta, dar um ótimo atendimento a esse paciente e mostrar a ele, sem discussão, que ele pode confiar em você e que a relação médico-paciente pode ser boa? Mostre que ele é importante e que você está verdadeiramente empenhado em ajudar. O melhor argumento é o exemplo.
Médico sem CNV: se irrita porque o paciente questiona sua conduta, usa palavras agressivas, eleva o tom da voz e cria um ambiente de desgaste.
Médico com CNV: identifica os sentimentos do paciente porque é capaz de identificar seus próprios sentimentos, logo é capaz de interromper uma situação de possível conflito com palavras positivas e específicas, sem generalizações, com segurança e sem autoritarismo.
Exemplo: “vou ajudar o senhor com o seu problema X da melhor forma que eu puder (e descreve em detalhes o plano de ação), mas fique à vontade para consultar outros colegas se não estiver confortável”.
Olhar só para não ser chato? Olhar com abuso para ir embora logo? Ou ser responsável e atencioso e não olhar, mas explicar que exames são complementares e que não existe diagnostico de exame. A forma responsável de ajudar a prima dele não é olhando um exame isolado e dando um diagnóstico “vazio”. Oriente o paciente que traga sua prima para a consulta e que você a avaliará pessoalmente (ou por teleconsulta), mas faça um atendimento e diagnostique o paciente, não o exame. Seja acolhedor e se mostre disponível a ajudar, com responsabilidade.
Médico sem CNV: olha o exame, faz um diagnóstico superficial e inadequado só para se ver livre do paciente.
Médico com CNV: acolhe, não diagnostica exame e se mostra disponível e aberto a atender e ajudar da forma mais responsável possível.
Existem pacientes portadores de doenças crônicas, como a fibromialgia, que realmente sentem dores que não passam com nada, você deve explicar que no PA o tratamento para dores crônicas é limitado, mais vale o paciente investir em tratamentos ambulatoriais com acompanhamento contínuo do que viver no PA, nesses casos.
Oriente, encaminhe, seja atencioso, essa pessoa vive com dor, a vida dela é difícil, não à toa que muitas vezes está de mau humor e só deseja desabafar. Sua função não é irritar mais esse paciente, é tentar amenizar a dor, mesmo que seja só com uma conversa.
O PA é por si só um ambiente estressante, cheio de gente, barulhento, muitas luzes, fila, espera… esses fatores estressam o paciente antes mesmo dele chegar na sua sala. Ainda têm aqueles com síndrome do jaleco branco que têm medo e se sentem intimidados por profissionais de saúde.
Termos como “paciente poliqueixoso” ou “Maria das dores” são preconceituosos e inapropriados, reduzem o paciente a um problema e implicam em uma visão hostil do seu caso. O paciente não é complicado, talvez sua condição médica seja, mas ele é mais que um diagnóstico.
Médico sem CNV: não consegue demonstrar empatia pela situação do paciente por não ter conhecimento do seu próprio repertório emocional. Acha que o paciente só faz chorar e se lamentar.
Nosso repertório de palavras para rotular os outros costuma ser maior do que o vocabulário para descrever claramente nossos estados emocionais. Fomos educados a achar que nossos sentimentos não são importantes, frases como “menino grande não chora” ficaram gravadas em nossa memória sentimental.
Mas não é bem assim, os benefícios de enriquecer o vocabulário de nossos sentimentos são evidentes não apenas em relacionamentos íntimos, mas também no ambiente profissional. Reconhecer nossas vulnerabilidades pode ajudar a resolver conflitos e a ter empatia pelos sentimentos do outro. Uma estratégia é utilizar palavras que se referem a emoções específicas em vez de termos genéricos. Troque “poliqueixoso” por “portador de dor crônica”.
Médico com CNV: sabe que a dor nos deixa expostos e fragilizados, sente empatia pelo sofrimento do paciente e além de não o rotular, escuta atenciosamente suas queixas e procura soluções efetivas para ajudar, não somente encaminhando para outros profissionais.
Não seja impaciente, nem trate o paciente com abuso. Apenas toque a conversa com direcionamento, leve o assunto para onde você quer chegar, não precisa dar um fora no paciente, guie a consulta, você é o médico.
Muitas vezes o paciente não entende que você tem uma fila de outros pacientes para atender e que fazer atendimentos que não são de urgência vai atrasar o serviço. Porém, fazer uma consulta rápida só vai desgastar seu relacionamento com o paciente que vai se sentir mal atendido e, provavelmente, não vai aderir ao tratamento que você indicou. Escute suas queixas e leve a conversa aonde você quer que ela vá, não é preciso perder tempo e se desgastar discutindo com o paciente.
Exemplo:
Paciente Antônio: doutor eu vim porque estou com uma dor no joelho depois de jogar futevôlei, mas já que estou aqui, o senhor poderia ver essa minha unha do pé que está estranha e uma mancha que apareceu nas minhas costas?
Médico sem CNV: o PA tá cheio hoje, esses seus problemas não são emergências, vou passar um remédio pra dor e o senhor resolve esses outros problemas com outro médico. (sem sequer olhar para o paciente)
Tratou as queixas do paciente como problema, não escutou as queixas com atenção, relativizou a dor do paciente, empurrou a responsabilidade para outro profissional.
Paciente se sentiu atendido com pressa, não acolhido e não gostou da forma como sua queixa foi conduzida, vai procurar outro médico. Você gerou um gasto duplo para o serviço com duas consultas, seja no SUS ou em serviços particulares.
Médico com CNV: poxa, senhor Antonio, eu sinto muito que o senhor esteja sofrendo tanto, mas no momento o que mais incomoda é a dor no joelho, vamos focar em amenizar seu sofrimento agora e em outro momento o senhor pode receber atendimento para as outras queixas? Me fale mais sobre essa dor no seu joelho, como eu posso ajudar?
Linguagem respeitosa que mantém a distância de respeito entre o profissional e o paciente e ao mesmo tempo aproxima com termos coloquiais como “poxa” e ao oferecer ajuda. O paciente sai se sentindo acolhido e bem atendido, não é necessária uma nova consulta nesse momento, todos ficam satisfeitos.
O Pronto Atendimento é um lugar para queixas de urgência e emergência, além de outras situações que precisam de resolução imediata, não é o ambiente adequado para mostrar exames de rotina ou renovar receitas, mas é preciso entender que o médico sabe disso, os pacientes nem sempre entendem os níveis de atenção e complexidade dos serviços.
Acolha o paciente, mostre que seus exames são muito importantes, você pode até olhar os exames dessa vez e renovar suas receitas, mas explique com paciência que aquele não é o melhor lugar para isso, pois esse tipo de atendimento em PA atrasa o atendimento de outros pacientes com necessidades urgentes, além do que o ambiente do PA durante a pandemia tem sido muito contaminado por vários vírus e não é interessante fazer consultas que não são emergenciais nele para proteção do próprio paciente. Evite palavras negativas como “não posso”, “não vou”, troque por palavras gentis e amigáveis como “entre, seja bem-vindo, vamos conversar”, por exemplo.
Nunca, jamais, em hipótese alguma diga: “se quisesse se matar teria morrido” para o paciente ou para a equipe. Não diga que o paciente queria só chamar atenção. Você pode até achar essas coisas, mas quando você fala isso na frente da equipe, você incentiva todos a tratarem o paciente com pouca importância, a menosprezarem sua dor.
Mesmo que o paciente quisesse só chamar atenção e não quisesse de fato morrer, de toda forma ele está em sofrimento e o sofrimento psíquico não tem dipirona que ajude. Mesmo que seja uma adolescente que está fazendo escândalo no corredor porque brigou com o namorado, não cabe a você julgar, você é o médico, não é a mãe dela.
Trate a situação com respeito e seriedade, após os atendimentos médicos necessários, converse com a paciente e escute-a. Naquele momento ela pode estar achando que é o fim do mundo e a dor dela ser enorme porque o namorado terminou o relacionamento com ela, mas é o mundo dela, a dor dela no auge da adolescência, não cabe a você dizer que não é uma dor importante. Sofrimento é sofrimento. Faça encaminhamentos quando necessário, mas não desvalorize a dor de ninguém.
Médico sem CNV: faz avaliações e aplica condenações não verbais: face de condenação, pré-julgamentos, posturas intimidadoras ou negativas como braços cruzados, não encara o paciente olho no olho, faz piadas com os membros da equipe sobre a condição da paciente.
Médico com CNV: apenas observa a situação. Ao avaliar emitimos julgamento de valor, generalizações estáticas baseadas no nosso próprio repertório emocional, ou seja, quando a gente avalia alguém, essa avaliação diz muito mais sobre nós mesmos. Em vez disso, observações são específicas, consideram contextos e incentivam a empatia.
Às vezes o paciente está com vários problemas pessoais e não consegue dormir e associa essa dor antiga ao que o incomoda atualmente. Ou é de fato a dor que o incomoda, mas ele não consegue dormir, antes era uma dor, agora é uma dor e uma insônia, o incômodo duplicou. Lembrando da fisiologia, durante a noite a queda do cortisol aflora sintomas de processos inflamatórios, logo as dores realmente vão piorar. Então, se um paciente chega ao PA de madrugada com dor há vários dias, dê a devida atenção.
Recentemente vimos uma estudante de medicina que fez chacota com uma paciente que “atrapalhou” sua hora de descanso e logo em seguida morreu, como se interromper seu descanso para tentar salvar a vida da paciente fosse algo inútil.
Como assim não foi importante tentar salvar aquela vida? Mesmo que a chance de sobreviver seja remota, tentar salvar o paciente sempre será mais importante do que a sua hora de descanso, por mais cansada que você esteja. Se você assumiu um plantão deve ter condições de trabalhar, se está exausta então deveria estar descansando em casa.
Eu sinto muito por essa garota que não desenvolveu habilidades básicas em empatia. Não deveria ser médica até aprender a respeitar o sofrimento alheio. Faculdades, por favor, incluam nos currículos acadêmicos disciplinas como: qualidade de atendimento, humanização de atendimento, inteligência emocional e comunicação não violenta. A sociedade agradece.
Todo paciente é o amor da vida de alguém e, mesmo que ele seja abandonado e não tenha mais ninguém no mundo que se importe com ele, seja você a pessoa que vai oferecer compaixão no momento de fragilidade. Sinta a dor do outro no outro e pratique a empatia. Não precisa entender ou acreditar, apenas respeite e considere. Muitos pacientes só querem se sentir vistos e importantes. E eles são. Não os veja como inimigos.
Se você acha que estou romantizando a medicina, saiba que, em caso de erro médico, o que pode te salvar de um processo é uma boa relação médico-paciente e, como todos nós estamos sujeitos a erros, recomendo que você dê atenção e trabalhe para ter uma boa relação com seus pacientes e aposente a máxima “o maior inimigo do médico é o paciente”. O maior inimigo do médico é a falta de conhecimento, tanto de técnica quanto tácito.
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