Amanheceu! Não como qualquer outra manhã. Amanheceu mais cedo como se a noite fosse tomada pelo dia. Como se os raios de sol penetrassem cortinas adentro, rompendo a escuridão forçada pelo blackout, clareando varanda, sala, corredor, cozinha, quarto e banheiro: a casa toda. O corpo ensombrado pelo breu da noite, que ali se escondia, ficou procurando seu roupão, constrangido. O dia surgia como uma força nunca vista, parecendo um fenômeno milagroso. A manhã espantou a madrugada, e por sua vez, o dia não quis conversa com solares matinais, tangendo seus embaçamentos para o desnude de corpos inteiros. E o dia imperou subitamente, coroando-se. Não pediu permissão a ninguém, sequer se submeteu a um plebiscito. Absolutamente, corou-se com o sol de meio-dia. Nessa madrugada espantada, manhã tangida e dia coroado pelo sol: Silva sentiu o tempo.
Ele ficou diante de si mesmo, se refletindo. Não precisava mais de raios X ou de quaisquer novas tecnologias de diagnóstico de imagem. Todos os seus males já estavam diagnosticados, inclusive aqueles não reveláveis. Aqueles que nossa confusão mental nos impõe, mesmo a gente respondendo todo dia que tudo está bem pra todo mundo. Um protocolo de saudação mentirosa de forma reflexa. Contardo Calligaris dizia que, no Brasil, ninguém pergunta como você está. Aqui, se pergunta tudo bem para se responder tudo bem!
O tempo era suficiente para perceber que seu esqueleto não o sustentaria mais em pé. E, mais ainda, talvez seus pensamentos também não o sustentassem. Mas ele resistia e para não confundir sua cabeça, Silva se agarrava na linearidade temporal. Mesmo assim, ele não percebera que o tempo passava, e passava mudando a gente e passava mudando os outros; e passava passando: mudando os tempos, em movimento, para além do bem e do mal. E passava passando, menos como uma gramática: regrada, vendida, coercitiva; e mais coma uma crônica: transgressora, desmonetizada, libertária.
Silva fez tudo direitinho para aquilo que lhe foi dito como sendo a vida: menino comportado, certinho; adolescente que nunca deu trabalho, donzelo; aluno que completou seus estudos, sem levar pau; universitário que se formou conforme a dança, dois pra lá/dois pra cá; profissional que desenvolveu uma carreira weberiana, meritrocrático; adulto que se casou com prática sexual, como requisito de experiência; teve filhos, para se perpetuar; dono de casa que controlava as despesas num caderno de notas, depois numa planilha de excel; para, repentinamente, feito quem bebe cachaça num gole estalando os lábios, se ver limitado pela morte.
Nosso exemplo de homem, das praias de nossa cidade, nunca tinha pensado em seu fim. Achava que fazendo tudo o que fez, do jeito que lhe foi ensinado, seria blindado do tempo. Ele achava que fazer o dever de casa, passar o caderno a limpo e passar de ano lhe garantiria um lugar no céu. Austeridade moral, equilíbrio das contas e metas profissionais não seria difícil para Silva cumpri-las. Caso fosse governante, governaria feito um tesoureiro. Ele poderia perder a reeleição, mas estofaria o peito e postado no altar de sua superioridade moral, vocalizaria, como se fosse um tenor baixo: mas sou um homem honesto!
Entretanto, ele não era bobo, conhecia seus colegas de vida boa e jogava o jogo cinicamente, sem se achar cínico. E, como um burocrata, sabia que a retórica do trabalho escamoteia sua intenção disciplinadora. Mas esse mundo da disciplina não lhe metia medo. Porque Silva, sendo oprimido ou fazendo de conta que não oprimia, já estava acostumado à binaridade, pois ela fazia parte de sua vida. Ele já era íntimo da binaridade da vida como o fóssil era íntimo do tempo. Todavia, quando se deparou com o mundo do desempenho, se sentiu perdido, porque não encontrou mais as correntes para aprisionar nem para ser aprisionado. Esse novo mundo lhe libertava para ser senhor e prisioneiro de si mesmo, isso lhe deixou desequilibrado. Ele saiu dos trilhos e não sabia caminhar pelas trilhas. E passou a não se reconhecer mais ao reflexo do seu espelho. Envelheceu sem perceber as marcas do tempo em seu corpo. Mas, arregalando os olhos: apalpou seu corpo, encorajou-se para pegar na bunda e sentiu suas nádegas, murchas! Caminhando para o desespero, apertou sua cara com as mãos, resistiu à sua cegueira e rejeitou se apaixonar pela depressão.
E quando a luz que varou a casa varou também seu corpo, perfurando-o, deixando-o prisioneiro do sol, como um Sebastião; ele, repentinamente, como o dia que se assenhorou do sol, depois de um suspiro puxado de baixo para cima, e um grito expulso da garganta pela boca, frente a frente com o dia, que se pretendia rei, disse: sou velho, mas quero novos encontros, se o tempo me diz o meu limite, enfrento-o com os lerões do meu rosto que hão de germinar alegria com a luz solar. E neste mundo, vou tagarelar uma canção que fará eco à velocidade da tua luz: Sol que um dia explodirá, e como eu, morreremos! Mas, antes, vida, viveremos nossas festas!