Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
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Democracia “de araque”
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Dep. Arhur Lira, presidente da Câmara dos Deputados – Foto: Valter Campanato – Agência Brasil

O Brasil precisa debater com seriedade seu modelo de democracia. Após um longo período de ditadura, de 1964 a 1985, passamos por uma transição com a anistia ampla, geral e irrestrita, seguida por uma eleição indireta para presidente e a assembleia constituinte que resultou na Constituição de 1988.

Em meio ao cenário tenebroso que vivemos por mais de duas décadas, qualquer mudança que parecesse nos livrar da ditadura e construir bases democráticas era vista como grande avanço. Porém, o processo pós ditadura deixou uma série de armadilhas que poderiam ser utilizadas pelos “democratas” que protagonizaram a reabertura no Brasil.

Os erros são muitos. Podemos começar pelo processo de anistia que colocou no mesmo patamar torturados e torturadores. Foi algo idêntico a absolver um estuprador, porque o ambiente era propício a prática do estupro. O Coronel Brilhante Ustra homenageado por Bolsonaro por ter torturado a presidente Dilma Rousseff, foi considerado tão inocente quanto qualquer jovem que lutou contra ditadura e foi submetido a sessões de tortura pelos militares.

A opção permissiva de saída da ditadura rende até hoje, com manifestações golpistas, apologia à tortura, crimes políticos e defesa do fechamento do Supremo e Congresso Nacional. As instituições brasileiras foram coniventes quando não tomaram medidas cabíveis. O exemplo mais notável é o do próprio Bolsonaro, que durante 30 anos como parlamentar sempre fez apologia a ditadura, ao ponto de ter no mural do seu gabinete fotos de colegas deputados federais com os seguintes dizeres: “se a ditadura fosse tudo que dizem, essa corja não estaria viva”. 

Preferiram a omissão, como se fosse apenas um devaneio sem repercussão. Caberia perda do mandato e prisão. Certamente, serviria de exemplo para que o país entendesse, que apesar da complacência da anistia, esse tipo de crime não seria mais tolerado. O que parecia um gesto insignificante de um deputado, resultou na sua eleição para presidente, seguido por todos os absurdos e crimes que promoveu no cargo.

Mas as armadilhas à democracia brasileira não param no erro histórico. Os herdeiros da ditadura, construíram um modelo político capaz de perpetuar distorções. Temos um regime presidencialista refém do Congresso. As regras eleitorais gestadas na Constituição de 1988 permitem que a composição da Câmara dos Deputados seja desconectada da eleição para presidente. Isso deveria ser algo bom, mas, na prática, virou algo preocupante. Visto que, se for conveniente aos deputados, podem inviabilizar governos e destituir o presidente, mesmo sem amparo legal. 

Essa mesma Câmara de Deputados que tem Arthur Lira como presidente foi responsável pelo impeachment de Dilma Rousseff. Naquela oportunidade, o presidente da Câmara era Eduardo Cunha, que foi preso por corrupção e, agora, elegeu a filha deputada. Inclusive, foi beneficiária do dinheiro que o pai roubou. Não se pode imaginar que os intuitos mudaram se os atores são os mesmos ou ainda piores.

A proporcionalidade que temos no Congresso Nacional, em nada reflete as partes da sociedade brasileira. Por qualquer viés que se observe, do ideológico ao étnico, temos um conjunto de parlamentares que refletem a desigualdade no Brasil. Consequentemente, os interesses que defendem são os seus.

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O Brasil está refém de uma democracia capenga. Basta verificar que os parlamentares são eleitos sem nenhum compromisso ideológico ou social. No modelo que temos hoje, os deputados federais são eleitos no primeiro turno. Na sua grande maioria sem um vínculo programático com as eleições majoritárias. Tanto que, após serem eleitos, tomam os caminhos no segundo turno que lhes pareçam mais convenientes. É comum encontrar parlamentares eleitos por partidos que apoiaram Bolsonaro, apoiarem Lula no segundo turno ou após a eleição assumirem o apoio para quem foi eleito presidente.

Isso é feito sem um alinhamento político verdadeiro. O que se tem é uma acomodação de interesses, fazem opção pelo acordo entre partes. Trocam-se votos no Congresso por facilidades para liberação de verbas pelo executivo. Porém, caso os deputados resolvam que a parte que lhes cabe deverá ser maior, restará o embate, chantagem e até impeachment do presidente.

Parece absurdo. Afinal, o presidente foi eleito pela maioria, como podem os deputados manipularem essa vontade, ao ponto de termos um governo que não reflete os anseios populares, mas sim um grande acordo político. Isso é fruto dessa aberração democrática que é o Brasil. 

Diversas reformas no país já foram feitas. Algumas pequenas maquiagens, que chamaram de reforma política. Porém, nunca mudaram efetivamente a legislação que trata dos partidos e instâncias partidárias. Tanto que temos exemplos de presidentes de partidos, que mesmo presos continuaram comandando as legendas. É o caso de Roberto Jeferson e Valdemar Costa Neto.

Os partidos têm estruturas cartoriais, que não permitem processos de renovação, alternância e quebras de oligarquias. Os processos de escolha dos dirigentes são feitos de forma restrita para que o controle fique mais fácil, muitas vezes, com colegiados formados por familiares e amigos.

São essas estruturas que dão origem a nomes como Arthur Lira, Eduardo Cunha e tantos outros ícones do lobby parlamentar, que atuam como instrumentos de interesses particulares e grupos empresariais em detrimento da democracia e da vontade popular. 

Recentemente, Arthur Lira fez uma ameaça ao presidente Lula em relação as dificuldades que teria para aprovar matérias simples no Congresso. O presidente da Câmara deu a entender que Lula está na mão do grande arranjo que montou na Câmara dos Deputados e que se quiser governar, terá que entregar uma gorda fatia do executivo para servir aos interesses de Lira e dos seus.

Alguém pode dizer, assim é a democracia, a maioria dos deputados tem direito de impor seu posicionamento em relação ao presidente da República. Mas qual posicionamento? Alguém sabe dizer o que os parlamentares ligados a Arthur Lira pensam e defendem? Quais são as opiniões sobre os temas mais importantes para a população brasileira? A população votou nele porque ele defendeu a manutenção da taxa alta de juros, a permanência das reformas trabalhista e previdenciária que tirou direitos do trabalhador? Não. Em momento algum, esses deputados fazem o debate público durante a eleição sobre os temas que agora querem ditar a decisão.

Essa turma que hoje defende os interesses do mercado com discurso de responsabilidade fiscal e estabilidade econômica, destinaram bilhões e bilhões para o orçamento secreto, obras e ações sem qualquer planejamento que servisse a algum objetivo estratégico do país. Usaram dinheiro público para distribuir em suas bases eleitorais, de forma sabidamente corrompida, como tantos exemplos atestam. Basta dizer que, em um dos casos, destinaram dinheiro para extrair praticamente todos os dentes da população de uma cidade no Maranhão.

O Brasil que está prestes a encaminhar a reforma tributária, terá como condutor essa Câmara dos Deputados. Todos os deputados propagam a necessidade de reduzir impostos, mas não dizem como a conta irá fechar. Para o pobre pagar menos sobre o consumo não se pode continuar isentando lucros, dividendos e grandes fortunas ou cobrar percentuais baixos sobre a propriedade.

O liberal brasileiro que gosta de utilizar os Estados Unidos como modelo de tributação para o consumo, não revela que lucros, dividendos e o equivalente ao nosso ITBI podem chegar a 30%. Afinal, quem ganha com especulação, seja financeira ou imobiliária, tem que pagar impostos por isso. São esses poucos privilegiados que concentram toda riqueza do Brasil. Só teremos mudanças quando começarem a pagar a conta.

Entretanto, pouco se pode esperar. Assim como foi com as reformas trabalhista e da previdência, que condenou trabalhadores a morrerem antes de se aposentar, a reforma tributária conduzida pelo Congresso atual pode agravar as distorções e a desigualdade econômica que perdura no Brasil. A democracia de araque desenhada pós ditadura deixou brecha para que arbitrariedades fossem feitas travestidas de atos democráticos. 

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