O diálogo entre Direito e Literatura não é novo, Antígona de Sófocles (442, AC) dá o testemunho desse vetusto diálogo. Como diálogo é também dialético, as ideias e formas discursivas se interpenetram e mutuamente se enriquecem. Inegavelmente Direito e Literatura conjugam em seu diálogo o discurso poético e retórico. O discurso da forma e percepção (poética) e o discurso da persuasão e do poder (retórica).
O movimento jusfilosófico Direito e Literatura (Law and Literature) remonta aos Estados Unidos do começo do século 20, a Benjamin Cardozo (1870-1938), juiz da Suprema Corte norte-americana, que lançou a pedra fundamental do movimento ao trazer a forma da literatura para o direito, propondo a leitura e interpretação dos textos jurídicos como textos literários. Para Cardozo (novaiorquino descendente de judeus sefarditas de origem portuguesa) os romancistas e poetas eram os principais professores do direito na primeira metade do século 20.
Entretanto será apenas nos anos 70 e 80 que Law and Literature ganhará corpo e substância no meio acadêmico estadunidense. “The legal imagination” de James Boyd White é a obra que inicia a fase do movimento com maior enraizamento acadêmico. Para James White a teoria do direito se dá como retórica constitutiva, indagando sobre a possibilidade da crítica do direito não restrita apenas aos textos legais, mas através de textos literários. O movimento Direito e Literatura, nos EUA, divide-se em duas grandes correntes: Law in Literature (Direito na Literatura), que analisa textos literários que têm como temas questões jurídicas; e Law as Literature (Direito como Literatura) que usa as técnicas de interpretação de texto da literatura no direito, interpretando textos jurídicos como textos literários: a literatura jurídica seria uma literatura específica.
Ronald Dworkin (1931-2013), filósofo e jurista estadunidense, criou uma metáfora ilustrativa desse movimento: o “romance em cadeia” (chain novel). Em sua obra “Uma questão de princípio”, Dworkin propõe que o juiz ao interpretar e aplicar o direito não age de forma isolada (solipsismo judicial), mas sim inserido dentro de uma tradição, onde o processo interpretativo seria como um romance que não é escrito por um só autor, mas por vários autores. O direito seria como um romance coletivo e intergeracional, um romance em cadeia, onde cada juiz ao interpretar e aplicar o direito seria responsável por um capítulo desse romance, devendo guardar coerência (integridade institucional) com os capítulos anteriormente já escritos por outros. Dworkin, assim, em sua metáfora do romance em cadeia, propõe uma interpretação construtiva do direito, atenta a decisões, estruturas, convenções e práticas institucionalizadas. O intérprete do direito é como um escritor em cadeia que deve escrever o seu capítulo em coerência com os capítulos já escritos do romance, o que não significa que não pode haver mudanças, a narrativa pode mudar de curso, desde que guarde coerência com a integridade narrativa da história.
O romance em cadeia de Ronald Dworkin põe em evidência que o direito é uma construção coletiva, parcial, incompleta e protagonizada pela interpretação como criação do direito. Como texto literário o intérprete não pode interpretar o que bem quiser, sob pena de quebrar a corrente interna que dá unidade hermenêutica ao texto. Questão também levantada pelo semiólogo italiano Umberto Eco em “Os limites da interpretação”, onde chamava a atenção para a estrutura aberta do texto que não obstante sua abertura não possibilitava qualquer interpretação. O texto tem uma coerência e estrutura interna que condiciona as possíveis conexões de sentido, autorizando umas e desautorizando outras.
Direito e Literatura ao promover o diálogo entre duas grandes tradições do conhecimento humano, possibilita um maior conhecimento das bases epistemológicas do processo de interpretação. Direito e Literatura mostra o que a hermenêutica (teoria da interpretação) tem de perceptiva e intuitiva (poética e literária), bem como de política e institucional (retórica e jurídica). Percepção, forma e poder se interpenetram para desnudar a essência interpretativa da arte poética e retórica que permeiam direito e literatura, camadas do discurso que se justapõem para evidenciar que a hermenêutica é o horizonte existencial onde produzimos, codificamos e interpretamos mais que textos e instituições, a própria vida que se dá como interpretação e construção de significados.