Diversidade é uma palavra vazia. Quando não tem aplicabilidade. É uma palavra vazia quando é pregada em teoria e esquecida na prática. É uma palavra vazia quando se aprisiona num discurso acadêmico que esquece o mundo real. Parece brincadeira de joguinho de gente grande. Falo motivada por um desconforto pontual que me despertou essa reflexão. Falo de um caso ínfimo, mas que é a só a ponta de um tenebroso iceberg submerso em águas obscuras e opressivas de um imaginário ocidental, europeu com síndrome de salvador.
Eis o ocorrido…
Era uma vez uma reunião de pesquisadores em uma tal universidade na França. Nessa reunião, participavam pesquisadores de alguns países europeus, principalmente franceses e italianos. Apenas uma brasileira. Essa mesma que vos fala. No início de uma apresentação, durante a reunião que ocorria também de maneira online via videoconferência, a pesquisadora que apresentava os resultados parciais da sua tese pergunta em francês: “Está todo mundo me entendendo bem?”
Uma professora pensou ser uma ótima oportunidade para fazer uma piada com o elo mais fraco. Acenou a cabeça na minha direção e respondeu: “nem todo mundo”. Era uma clara referência ao meu péssimo francês falado. Mas, um francês suficiente para entender o bullying e o objeto de pilhéria: eu.
Olhei nos seus olhos. Sorri amarelo. Não mostrei os dentes porque poderia parecer que eu iria morder. Aguardei o meu momento.
E ele chegou…
Depois dessa primeira apresentação, uma outra pesquisadora, também francesa, fez uma bela exposição sobre o seu atual projeto de pesquisa. O tema era lindo (ironic alert): diversidade na tecnologia. O objetivo? Desenvolver uma linguagem universalista, respeitando a diversidade e indo contra o imperialismo da língua inglesa no ambiente da tecnologia. Isso no âmbito de uma plataforma digital específica. Foram citados autores decolonialistas. Porque a ideia era descolonizar. Foram citados autores da América Latina. Porque a ideia era diversificar. Prestei atenção em tudo. Mas a única dúvida que pairava na minha cabeça era: Quais eram as reais estratégias de aplicabilidade desse projeto para que essa linguagem “universal” não recaísse sobre os mesmos vieses de sempre dos olhares ocidentais, masculinos e colonizadores? No fundo, a minha pergunta queria dizer: existe representatividade de outras minorias na prática?
Pedi a palavra. Pedi desculpas por não falar tão bem francês e perguntei em inglês. E iniciei falando “eu, como uma mulher brasileira, do Sul global… muito me interessa teorias que falem sobre descolonizar…” e mandei minha dúvida. Um ruído tecnológico atrapalhou minha fala. Alguém, no meio do meu questionamento, ligou o microfone. O som da microfonia quebrou o gelo. Quem dera tivesse quebrado o gelo do iceberg dos problemas mais profundos que estão nas raízes da questão.
A resposta que se seguiu foi evasiva. Não me convenceu. E para falar a verdade, nem lembro muito bem do que foi dito. Eu só queria mostrar um ponto e soltar no ar o questionamento: como se pode falar de desenvolver pesquisas sobre diversidade e tecnologia num lugar que não é nada diverso? Pior. Como se pode falar de diversidade e tecnologia quando esse lugar, além de não proporcionar a diversidade, ainda é ostensivo para o outro que vem de fora. Eu era a única da América Latina, do Sul global. Eu era a única a não falar o francês fluente. Na reunião não tinha uma pessoa negra. E eu também fui o único objeto de bullying, de professores (ainda mais essa!). Da mesma comunidade que prega diversidade. Contraditório, não? Mais uma vez a prática perdeu para a teoria e ficou só no papel.
O recado foi dado. Não sei se foi compreendido. E talvez eu possa ter perdido todas as chances de qualquer futura colaboração acadêmica. Mas, prefiro que a verdade seja dita a ter que compactuar com a síndrome messiânica que ainda assola o imaginário europeu, disfarçada de um discurso vazio sobre diversidade. Eu que estudo o imaginário de Portugal, e o europeu consequentemente, percebo no meu dia a dia que os mitos que fundamentam essas culturas se assemelham a fantasmas da colonização, embriagando o inconsciente coletivo dessas antigas nações. Daqui, o mundo parece ainda viver num passado, numa fantasia de glória imperialista que se manifesta nos mínimos comportamentos cotidianos. Aos corpos colonizados restam muros que embargam qualquer tentativa de permear esses espaços de representatividade e poder. E por isso minha persistência em permanecer e escrever.
Depois da minha pergunta, não sei se ficou clara a reflexão que eu quis sugerir, mas o incômodo persistiu para que eu escrevesse esse texto. E como quase tudo que escrevo vem de incômodos que acontecem na minha vida, esse é apenas mais um deles nessa minha jornada como imigrante. Escrevi para não esquecer. Por que agora, na minha memória, parece ter sido um sonho distante. E no meio de tantos pensamentos intrusivos esse permaneceu nublado na minha mente quase no precipício de numa tendência minha (ou seria uma tendência social de minimizar as violências simbólicas cotidianas) de fazer gaslight comigo mesma. Cheguei a me perguntar: “isso aconteceu mesmo?”
Aconteceu.
E esse incômodo é apenas mais um desses “sapos” que engolimos nessa caminhada de tentativas de ocupar espaços que nos pertencem por reparação histórica. De tanto sapo que engoli, meu estômago hoje é quase um lago ácido. Mas dessa vez, o sapo não foi engolido e ele pulou da minha boca e saltou na mesa. Alguém o comeu. Dessa vez não fui eu.