Rodrigo Caldas é advogado, mestre em Direitos Humanos e escritor. E-mail: autognomes[a]gmail.com
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Dostoiévski e a geopolítica do século 21
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Retrato de Fiódor Dostoiévski (Foto: Vassilij Grigorovič Perov, 1872)

Na segunda metade do século 19 a Rússia era um império medieval, onde a maior parte de sua população vivia no campo em uma condição de semiescravidão. A Revolução Industrial tinha chegado timidamente a alguns poucos centros urbanos, como Moscou e São Petersburgo. A aristocracia russa vivia antenada com o que ditava a moda francesa ao passo que o seu povo, a imensa maioria dos russos, amargava uma existência de miséria e fome. O gênio literário de Dostoiévski (1821-1881) descortinou para além da paisagem social da Rússia Czarista, também sua paisagem interior, que revelou a universalidade do drama existencial humano. Personagens como Ivan Karamazov (de “Os irmãos Karamazov”), um intelectual niilista que retrata o protótipo dos bolchevistas do século 20; O príncipe Míchkin (de “O Idiota”), misto de Don Quixote e Jesus Cristo; ou Raskólnikov (de “Crime e Castigo”) estudante que pratica um duplo latrocínio por se crer acima do bem e do mal, uma espécie de super-homem (Übermensch) nietzschiano, são apenas alguns dos inúmeros personagens que dão vida a uma literatura que o crítico literário Mikhail Bakhtin (1895-1975) chamará no século 20 de polifônica, no sentido de que os personagens não são meros veículos da ideologia do escritor, mas antes, têm vida própria, com visões de mundo singulares e muitas vezes contrapostas ao do próprio narrador. Sua obra também antecipa as questões que serão formuladas no século 20 pelo existencialismo.

Dostoiévski é o melhor retrato do espírito russo: inquieto, criativo, apaixonado pelo jogo de azar e portador da epilepsia que deu um tom dramático a uma existência convulsiva. Na obra de Dostoiéviski saltam alguns dos elementos basilares do espírito do povo russo: a fé cristã ortodoxa, a bíblia era para Dostoiéviski o maior monumento literário da humanidade; o espírito belicoso russo, com seu histórico de guerras e heroísmo, que reporta aos czares fundadores do Império Russo; e o filoeslavismo presente em toda sua obra, que defende que os russos não são europeus, tendo um destino próprio com ambições imperialistas. O fim do Império Czarista em 1917, quando os bolcheviques liderados por Lenin chegam ao poder e após o assassinato de toda a família imperial dos Romanov (1918), a dinastia final dos czares russos, representou não o fim dessa vocação imperialista, mas apenas um intervalo, a mudança de discurso e de roupagem política. A URSS que vence a Alemanha Nazista, rivalizará com os EUA e defenderá sua vocação imperialista.

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A história do povo russo, de Ivan o Terrível a Vladimir Putin, é a história de um império salvacionista e militarista que nunca foi afeito à democracia e aos direitos humanos, valores ocidentais estranhos à sua vida política institucional marcada pelo autoritarismo e mudanças bruscas e sangrentas de poder que logo ganham uma feição imperialista e opressora. Assim foi nos tempos dos czares, repetiu-se, com outro discurso, nos tempos da URSS e voltou com mais força com a queda do muro de Berlim. O filoeslavismo que emana da obra de Dostoiévski ganha a forma do eurasianismo dos anos 1920 e 1930 do século 20 e ressurge como neo-eurasianismo na era Putin no século 21, tendo em Alexander Dugin seu teórico. Uma estratégia geopolítica que tem no ocidente um inimigo que deve ser combatido para o bem do povo russo, como forma de afirmação de seu destino histórico de um império militarista-salvacionista.

O conflito no leste da Ucrânia não pode ser lido apenas como o direito soberano do povo ucraniano de decidir sobre seu destino histórico. O que está em jogo não é o direito ucraniano de se alinhar ao ocidente, à União Europeia e aos EUA, ou permanecer sob a esfera de influência russa. O conflito no leste da ucrânia é mais que um conflito fratricida, é o sinal da retomada do imperialismo russo que nunca desapareceu, só estava adormecido. Putin é o líder político de um império que desperta e tem no ocidente seu inimigo geopolítico. O Atlantismo (ocidente) vive seu declínio com a crise estrutural do capitalismo, onde o mundo unipolar foi cindido, os EUA vivem há décadas uma crise não apenas econômica mas também civilizacional. A Europa Ocidental, sua aliada desde o fim da Segundo Guerra, também está mergulhada em crises cujo sintoma é o renascimento do fascismo e da ultradireita. Velhos personagens que pareciam sepultados voltam ao cenário histórico repaginados. O Império Russo ressurge sob a forma do neo-eurasianismo, defendendo uma aliança com a China e a Índia como forma de remodelar o tabuleiro das forças geopolíticas globais, revivendo, ainda que em escala minoritária, sua vocação imperialista.

A geopolítica do século 21 redescobre o imperialismo russo e constata que os velhos fantasmas presentes na pena de um escritor russo do século 19 têm muito a dizer sobre os destinos da política global dos nossos dias.

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