Dizem que a mentira recontada muitas vezes torna-se verdade. Nenhuma mentira sobrepõe a história, mas uma versão muito mais disseminada que outra pode confundir, ainda mais quando se trata de um dia de diferença, ou de um ponto de vista. Disso os militares sabiam bem quando concretizaram o golpe de 1964. E se não conseguiram apagar da memória uma ditadura sangrenta que governou o Brasil ao longo de 21 anos, em dois pontos sobre o início do regime eles empreenderam esforço tremendo para interferir na forma como a história seria contada.
São muitos os termos possíveis para não chamar o Golpe de 1964 de “golpe”. Antes de avançar, foi golpe, não há o que discutir. Diante da gravidade do feito, os militares se preocupavam na forma como jornalistas e historiadores registrariam o fato. Então, criaram antes um motivo para o golpe: um inimigo imaginário chamado “comunismo”, como se este realmente existisse no Brasil. Repetiram a mentira da iminência de um “golpe comunista” e novamente mentiram, na cara dura, ao dizerem que o golpe deles era um “contragolpe” para evitar o golpe que viria. Tese estapafúrdia. Parece a teoria do tratamento precoce, aquele remédio que você toma antes de ficar doente para não ficar doente. Mas remédio não é preventivo, só serve para quem está doente. Não é de hoje que os militares mentem. Na grave falha de caráter que impossibilitava assumirem o golpe, criaram também outros eufemismos para golpe, como “movimento” e “contrarrevolução”.
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É primeiro de abril
O motivo desta mentira contada pelos militares que arquitetaram o golpe contra a democracia em 1964 chega ser patético. O presidente João Goulart foi deposto em 1 de abril, data em que se concretizou a tomada de poder. Para os milicos, seria gravíssimo se além do atentado contra a nação a data coincidisse com o Dia da Mentira. Por isso divulgaram amplamente que o “movimento” começara no dia anterior, quando as tropas do general Olímpio Mourão Filho marcharam de Juiz de Fora (MG) em direção ao Rio de Janeiro. Assim disseram e dizem até hoje que o golpe – ou movimento, como eles preferem – data de 31 de março, e nesta mentira muitos democratas embarcam.
Não é à toa que os ultraconservadores se incomodam tanto sempre que um democrata fala diretamente para o povo. Incômodo especial acontece quando o democrata em questão é Lula. A indignação dos golpistas se dá pela incapacidade de olhar nos olhos das pessoas. A quem só interessa dominar, a concepção de construir nunca chegará.
Mais que democrata, Jango propunha justiça social para um país em que o tema já era motivo de muito derramamento de sangue desde as ligas camponesas, no interior da Paraíba. Jango falava diretamente à população e recebia os líderes dos movimentos populares. Essa proximidade com o povo cultivava o rancor dos militares antidemocráticos. O que assanhou de vez os quartéis foi a proposta de desapropriar terras improdutivas para fazer a reforma agrária.
Abaixo, transcrevo alguns trechos dos últimos discursos do presidente João Goulart, o Jango.
“O que se pretende com o decreto que considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável. Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, que se apoderaram das margens das estradas e dos açudes. Reforma agrária com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. É negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro.” – João Goulart, comício da Central do Brasil, Rio de Janeiro, 13 de março de 1964.
“Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.” – João Goulart, comício da Central do Brasil, Rio de Janeiro, 13 de março de 1964.
“Não tiram o sono as manifestações de protesto dos gananciosos, mascarados de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer a impunidade para suas atividades anti-sociais.” – João Goulart, comício da Central do Brasil, Rio de Janeiro, 13 de março de 1964.
“Sei das reações que nos esperam, mas estou tranquilo, acima de tudo porque sei que o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua força e da sua unidade, e não faltará com seu apoio às medidas de sentido popular e nacionalista. Quero agradecer, mais uma vez, esta extraordinária manifestação, em que os nossos mais significativos líderes populares vieram dialogar com o povo brasileiro, especialmente com o bravo povo carioca, a respeito dos problemas que preocupam a Nação e afligem todos os nossos patrícios. Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. E, para isto, podemos declarar, com orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas da Nação.” – Presidente João Goulart em comício para cerca de 200 mil pessoas na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964.
“Com fé em Deus e confiança no povo, quero afirmar, claramente, nesta noite, na hora que, em nome da disciplina, se estão praticando as maiores indisciplinas, que não admitirei que a desordem seja promovida em nome da ordem; não admitirei que o conflito entre irmãos seja pregado e que, em nome de um anti-reformismo impatriótico, se chegue a conclamar as forças da reação para se armarem contra o povo e contra os trabalhadores; não permitirei que a religião de meus pais, a minha religião e a de meus filhos, seja usada como instrumento político de ocasião, por aqueles que ignoram o seu sentido verdadeiro e pisoteiam o segundo mandamento de Deus.” – João Goulart, discurso durante reunião de sargentos no Automóvel Clube, Rio de Janeiro, 30 de março de 1964