As lágrimas correm pela face de Maria… Seu olhar de mãe contempla, com pesar reservado, a face do seu filho agonizante sob o sol cáustico da árida Judéia.
Aquele corpo definhado, massacrado pela agressão de seus algozes, banhado em sangue e feridas abertas, cozinhando sob um sol calcinante, desenha uma silhueta em forma de cruz. A cruz onde eram lentamente mortos os criminosos, os indesejados, os marginalizados da Judéia romana. A pena de suplício era um símbolo do poderio de Roma, o maior império do planeta. Império que detinha o poder de vida e de morte. Um império do tamanho do mundo, com suas legiões de guerreiros que conquistavam povos e estendiam as fronteiras da grande Roma sobre toda a humanidade. “Deus salve César!” O homem mais poderoso e afortunado sobre a terra.
Mas aquele corpo frágil, agonizante, que transpirava sangue por todos os poros, estendia seus braços presos em uma cruz como que querendo abraçar toda a humanidade. Humanidade que, como ele, sentia dor, agonia, angústia e solidão diante do sol impiedoso e da morte que se avizinhava sem qualquer pudor. Consumia-se em sede e fome, percebia-se abandonado por seus seguidores, homens e mulheres que acompanharam os seus passos e escutaram suas pregações. Uma legião de homens, mulheres, velhos e crianças que seguiram com admiração o rastro daquele homem que falava em amor e misericórdia. Multidão que habitava uma terra marcada pela seca, fome, sede, opressão e ocupada por um inimigo estrangeiro e militarmente mais forte.
Pregado em uma cruz, aquele corpo que se desintegrava, derretia-se em uma poça avermelhada que tingia sua pele e se acumulava sob os seus pés com as marcas da opressão tatuadas sobre o seu corpo. Carnalidade que expressava, em seus últimos momentos nesse mundo, a dor de um Deus que se crucificou, flagelou-se, e permitiu-se cobrir com o manto da dor, para se fazer humano. Um Deus que se fez humano e deu sua carne e sangue em um ato de misericórdia para redimir os pecados de uma humanidade inteira.
Jesus morreu naquele dia, entre dois ladrões: entre a blasfêmia e a piedade.
Maria, anônima e solitária, chorou as lágrimas que se misturaram ao sangue do seu filho morto.
As últimas palavras do homem foram: “Pai, por que me abandonaste?!”
A Palestina é como os romanos a chamavam desde o sec. II da nossa era, denominava-se mais precisamente Syria Palaestina, a parte sul da província romana da Síria. Um território que ia da costa oriental do mar mediterrâneo às fronteiras ocidentais dos atuais Iraque e Arábia Saudita. Compreendendo os territórios das atuais Jordânia, Israel, sul do Líbano, Faixa de Gaza e Cisjordânia. Foi nessa terra que floresceu o monoteísmo, a crença em um único Deus, a maior criação teológica da história que unificou todos os homens, de todas as origens, raças e credos sob um mesmo signo teológico, o signo de um Deus único. Deus que cobria a humanidade inteira, como a metáfora de um Deus crucificado que abraça toda a humanidade, em um ato derradeiro de misericórdia.
Entre o último suspiro de um Deus crucificado e a sua ressurreição se passaram mais de dois mil anos, a humanidade explodiu demograficamente, hoje somos 8 bilhões, 4 bilhões só na Ásia. O mundo, nesse intervalo de tempo, viu a queda de Roma, o império mais poderoso do mundo antigo. Assistiu ao florescer e à queda de outros tantos impérios, à eclosão de guerras, mortes, genocídios e ao gozo temporário daqueles que se acreditavam senhores do mundo, um mundo que sempre se lhes escapava por entre os dedos.
Foi em um dia qualquer, em meio ao deserto, pedras e o calor de um sol inclemente que um colono, de um assentamento judeu na Palestina, viu aquele homem magro, solitário e feio com o corpo coberto por marcas de feridas mal saradas, vagando em sua propriedade.
– Ei! Eiii!!! O que pensa que está fazendo?! Essas são minhas terras! Você enlouqueceu?!
O homem de aspecto sofrível se volta em sua direção, possivelmente um andarilho palestino, um mendigo sem abrigo de algum acampamento de refugiados e provavelmente enlouquecido pela fome, pensou Abraão.
– Desculpe, meu senhor. Essas são suas terras?! (Disse o homem com voz amável em um tom de admiração)
– Sim, são minhas, serão dos meus filhos. E foram nossas desde sempre, segundo as sagradas escrituras do povo escolhido, o povo de Israel.
– Eu só queria um pouco de água… Estou sentindo muita sede, acho que tem uns dois mil anos que não bebo. (Sorriu)
O colono judeu o olha com desconfiança. Aquele homem é um palestino que veio perscrutar suas terras para depois trazer sua horda de assassinos, pensou. Depois de um breve silêncio o colono apontou a espingarda de dois canos para o forasteiro de aspecto repulsivo e andrajoso, vociferando com agressividade:
– Você tem cinco minutos para sumir da minha frente, das minhas terras, eu juro por Deus que se não sumir em cinco minutos eu estouro seu crânio!!!
Não muito distante dali, na Faixa de Gaza, uma mãe chora a morte do seu filho. Era uma criança de 9 anos. Ele foi morto em um ataque aéreo das forças militares de Israel na noite anterior. Sua casa foi destruída, há meses ela e seus outros três filhos não sabem o que é tomar banho, pois falta água. O alimento é racionado, ela é viúva, pois seu marido foi morto ao tentar cruzar a fronteira em busca de emprego, por um soldado de Israel, há 2 anos.
A Faixa de Gaza é uma estreita faixa de terra, apinhada por 2 milhões de almas oprimidas. Desde a década de 40, após o fim da Segunda Guerra, os habitantes de Gaza passaram a ser denominados de Palestinos, um povo sem estado, sem liderança, sem reconhecimento. Tendo como vizinhos os judeus, um povo historicamente perseguido, fundadores da mais poderosa tradição teológica do ocidente, que após o genocídio de 6 milhões de pessoas em terras europeias, resolveu regressar à terra prometida. Os palestinos, com um histórico de lutas e opressão, passaram a dividir, por força da pressão da comunidade internacional, suas terras com os judeus. Terras essas que não bastavam para tantos judeus que chegavam de todas as partes do mundo, que vinham às terras da antiga Palestina para criar um estado novo, o Estado de Israel.
Aos poucos, os Palestinos foram sendo empurrados para aquela estreita faixa de terra, a Faixa de Gaza. Desde a guerra dos seis dias, onde Israel derrotou o Egito e os demais países do mundo árabe e se apossou da Cisjordânia, os palestinos foram confinados naquele pequeno gueto em que se converteu a Faixa de Gaza. Gueto como aquele de Varsóvia, onde, anos antes, os judeus sentiram fome, sede e a força de um inimigo impiedoso e militarmente superior.
O corpo de Ismael Mohammed, 9 anos, é envolto na bandeira palestina, banhado em sangue, coberto de feridas, o seu rosto conserva a expressão angelical de um anjo. Sua mãe, Samira, cabisbaixa, chora a morte do filho em silêncio. Já gritou, vociferou, suas lágrimas derramaram copiosamente, agora, seu choro era para dentro. O corpo de seu pequeno Mohammed foi levado por uma multidão a gritar palavras de ordem contra o inimigo assassino de crianças. O pequeno Mohammed estava jogando com seus primos no terraço de casa quando uma bomba lançada pela força aérea israelense os colheu de forma fatal. Em meio aos escombros, o pequeno Mohammed teve sua alma precocemente devolvida ao poleiro das almas. Seu pequeno corpo, agora, foi vertido em troféu de guerra nas mãos e sob os gritos de seus compatriotas.
A noite caíra, as estrelas cintilavam em um céu claro e aberto, onde podia se ver o traçado luminoso da via láctea. Abraão, após a ceia, pensa na estranha visita daquele forasteiro magro, feio e com o corpo coberto de marcas. Contempla da sua janela a larga propriedade onde ele trabalhava de sol a sol para plantar e colher os frutos daquela terra sagrada, a boa terra que desde o início dos tempos estava reservada ao escolhido povo de Israel.
Aquele dia atípico o fez pensar, trouxe à sua memória as lembranças de seu pai, sobrevivente do campo de concentração de Sobibor, na Polônia. As histórias que ele lhe narrava sobre os perversos soldados da Schutzstaffel, a SS alemã. Das milhares de pessoas mortas nas câmaras de gás, do despojo de seus pertences, da existência desumana de fome e opressão onde o pedaço de uma batata podre boiando no esgoto era uma iguaria disputada a tapas por judeus e ucranianos sobreviventes ao ímpeto assassino da SS.
Abraão carregava na sua própria carne aquelas memórias e histórias. O extermínio da família de seu pai, onde ele fora o único sobrevivente e a fuga desesperada de Sobibor, onde ele foi um dos cinquenta a escapar com vida dentre centenas de fugitivos assassinados. Para Abraão a construção de um estado Judeu foi o maior feito da história desde a fuga do cativeiro no Egito. Desde fins do sec. XIX coexistia a doutrina racista que tinha no povo judeu seu alvo preferencial na Europa; e a doutrina sionista que pregava a reunificação do povo judeu no Oriente Médio. Esse preconceito antissemita não foi uma invenção germânica, existia de forma difusa por toda a Europa. Ele aparece na literatura de Gogol, em Taras Bulba, romance que retrata a formação da identidade nacional ucraniana, onde o judeu é descrito como um vilão. E está presente também na esclarecida França, onde parte considerável de sua população apoiou a ocupação alemã nazista e colaborou com a deportação de Judeus para campos de extermínio.
Aquela terra que hoje dava frutos foi semeada com o sangue dos seus antepassados, Abraão era só o titular atual de uma propriedade que vai além de seu patrimônio, faz parte do patrimônio de um povo inteiro como condição de possibilidade para as gerações vindouras do povo escolhido de DEUS.
Abner é um militar do exército de Israel, Tzahal em hebraico. Desde os dezoito anos, Abner segue um rígido regime militar. O exército de Israel é o quarto mais poderoso do planeta e é conhecido mundialmente pelo rigor draconiano de seus treinamentos. Desde que aquele conflito eclodiu, Abner pilotava um tanque blindado, algo que lhe dava orgulho e o fazia sentir irmanado ao seu pai e avô. Filho de Abraão, sempre ouviu as histórias de perseguições e assassinatos contra o seu povo, sabia que cabia a ele a defesa de sua história, de seu povo e de seu território.
O gigante de metal que cortava barreiras, arames e barricadas em território palestino caçava os inimigos de sua estirpe, o Hamas era a própria encarnação de todos aqueles séculos e séculos de intolerância, de egípcios a nazistas. Onde o sangue judeu foi derramado e suas tradições negadas pela ignorância e preconceito de povos estrangeiros. Seu tanque cortava aquele solo pedregoso e seco, eclodia em disparos contra um inimigo covarde que não mostrava o rosto e se escondia atrás de sua população civil de velhos, mulheres e crianças. Abner é um militar que ora, jejua e conhece a Torá em todos os seus detalhes, a poesia teológica reverbera sobre o seu blindado que é a encarnação dos exércitos de guerreiros judeus, como o seu próprio nome sugere, como os exércitos do lendário rei Saul.
Desde que voltara ao mundo em forma humana, Jesus só encontrou fome, sede, guerra e morte. Vagou pelo deserto, avistou o primeiro ser humano após dois mil anos e recebeu como cartão de visitas uma ameaça de morte. Se em sua primeira passagem, Jesus encontrou o Oriente Médio oprimido pela ocupação romana, sendo perseguido, condenado, torturado e assassinado. Em sua segunda aparição, o filho de Deus se deparou com uma terra marcada pela discórdia, por radicalismo, insensibilidade e muita violência. Se o Império Romano era coisa do passado, o Império da Discórdia era coisa do presente. Por onde passou, dessa vez Jesus foi completamente ignorado, confundido com um andarilho ou um refugiado, de Israelenses e Palestinos não encontrou nenhuma receptividade. A primeira pessoa que dele se aproximou, o enxergou e resolveu aplacar sua sede foi uma jovem palestina de 17 anos. Morena de olhos negros e cabelos castanhos, ela, após semanas, foi o primeiro ser humano a falar civilizadamente com o filho do criador após dois mil anos…
Madeeha era o seu nome, uma garota palestina de 17 anos, sem família e que vivia nas ruas de Gaza desde os 10 anos. Sobrevivera pela indulgência e pelos serviços que seu jovem corpo prestava. Madeeha tinha uma memória seletiva, dos pais não recordava muito, apenas de uma enorme explosão que jogara tudo e todos pelos ares. Vivia do lixo, abrigando-se entre os escombros e à noite aprendera a alugar o corpo em troca de comida. Apesar de uma existência extrema e oprimida, Madeeha conservava um estranho brilho no olhar, um rosto lindo e moreno que aquela atmosfera de morte, dor e sofrimento parecia não subtrair. O brilho vital persistia e a animava a sobreviver a cada dia nas ruas tomadas por mendigos famélicos, lixo e escombros na populosa Cidade de Gaza.
Jesus sentia fome, sede e seu corpo estava trêmulo de fraqueza. Sem forças para cumprir a sua missão, o filho de Deus sentia as forças o abandonarem. Não imaginava que seria um retorno tão difícil, após dois mil anos a humanidade não aprendera nada, todos os vícios persistiam e agora eram ainda piores. Entre os escombros do último bombardeio israelense a Gaza, o filho do criador chora como chorou há mais de dois mil anos no deserto. Seu corpo trêmulo e fragilizado pela fome encontra o olhar afável de Madeeha, a jovem e bela prostituta palestina. Ela lhe oferece água e comida ao som das explosões do exército de Israel e os zumbidos dos foguetes do Hamas.
Ahmed era jovem, impetuoso e seu coração fervilhava em um ódio atroz àquele que julgava ser o causador de todos os males, o diabólico Estado de Israel. Com suas botas negras e camisa verde, Ahmed era um soldado do Hamas, uma organização política e filantrópica, nascida como o braço palestino da Irmandade Muçulmana do Egito. Uma organização política que promove assistência social na Faixa de Gaza e resistência armada a Israel. Seu objetivo é criar um Estado Palestino em seu território histórico, com isso negando a existência de Israel. Ahmed foi treinado por organizações paramilitares, carrega no corpo e na alma os embates contra o exército de Israel, é um sobrevivente que não pensa em outra coisa senão destruir o Estado Sionista que oprime o seu povo, o povo palestino.
Jesus andou entre o povo, falou de amor e misericórdia, clamou para que todos os oprimidos e insultados o seguissem em seu reino de justiça e concórdia. Mas por onde passou, do deserto, aos assentamentos judeus e Faixa de Gaza, o filho do criador não encontrou seguidores. Só recebia aquele olhar de desconfiança ou, quando muito, um sorriso zombeteiro e desdenhoso. Jesus, em Gaza, foi levado diante de uma liderança local, pois se dizia o rei dos judeus, o filho de Deus. O jovem Ahmed, guerreiro ardiloso de vários embates contra as poderosas forças militares de Israel, diante de Jesus não fez mais que ignorá-lo, ordenando aos seus soldados que o espancassem e o jogassem para fora da Cidade de Gaza, pois estava ocupado demais para tratar com aquele famélico enlouquecido e prestidigitador.
Jesus foi espancado, torturado e jogado na periferia de Gaza. Madeeha, a jovem prostituta, foi sua única seguidora fiel. Em suas delicadas mãos o filho do criador encontrou tratamento para suas novas feridas, assim como aquelas que os romanos gravaram em sua pele há mais de dois mil anos. No olhar de Madeeha, Jesus encontrou um brilho de ardor, um ardor de uma mulher apaixonada e que o desejava. Jesus a convenceu, com muita relutância dela, de que ele não poderia amá-la como ela queria, pois era um deus encarnado em forma humana. Seu amor era um amor que iria além do desejo carnal, era um amor pela humanidade inteira, ainda que essa mesma humanidade não o entendesse. Ela também não o entendeu e continuou apaixonada pelo homem que fala em amor, fé, justiça e em um reino onde os últimos seriam os primeiros.
Jesus, sentindo que tinha escolhido o momento errado para voltar, resolveu mais uma vez adiar o reino de Deus na terra. Sentia que os homens deveriam antes encontrar sua paz interior, a concórdia, mas em um ato derradeiro, dois mil anos depois, Jesus seguido de Madeeha se colocou como um escudo humano, entre o exército de Israel e o Hamas. Em meio a uma multidão de famintos, desabrigados, desiludidos de ambos os lados, Jesus caminhou entre um corredor de fogo, entre os foguetes do Hamas e os tanques e baterias antiaéreas de Israel. Entre o coração cheio de ódio do soldado Ahmed do Hamas e o orgulho salvacionista de Abner, o soldado de Israel, que pilotava e assassinava através do seu tanque de última tecnologia, Jesus, desiludido, evaporou no deserto da Palestina, deixando atrás de si a indiferença daqueles que não o ouviram. Era então uma legião de exaltados que citavam a Torá e o Corão e se explodiam de ambos os lados. No rastro de Jesus, só o olhar doce de uma jovem prostituta pareceu entender sua passagem…