Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
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“Em Paris, a madame faz aborto. No Brasil, a coitada morre” 
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(Foto: Flávia Lopes)

Seja em qualquer canto do mundo, nós mulheres somos alvo. Quando ando de noite, sozinha, pelas ruas de Paris, tremo de medo. Fico atenta. Desligo os fones de ouvido. Paro de escutar música. Prefiro o silêncio da rua a ter que escutar os andamentos de passos de homem atrás de mim. No Brasil nem me atrevo a uma caminhada noturna a solo. Mas a diferença entre Brasil e França está nas leis protetivas das mulheres após casos de violência. Se eu for estuprada, por exemplo, e com todo direito não quiser gestar esse feto, fruto da violência e da crueldade masculina, em Paris eu aborto. No Brasil, se o PL1904/24 for aprovado, vou à míngua. Mas nem todo mundo pode vir para Paris, não é mesmo? 

No efervescente contexto do polêmico PL que pretende criminalizar o aborto em casos já previstos em lei, em uma entrevista recente, o presidente Lula disse: “O aborto deve ser tratado como questão de saúde pública, você não pode continuar permitindo que a madame vá fazer um aborto em Paris e que a coitada morra em casa tentando furar o útero com uma agulha de tricô.” A fala de Lula é um cru retrato da desigualdade social no Brasil. As maiores vítimas nos casos de aborto são mulheres pobres que não têm o mesmo acesso de mulheres que podem recorrer a uma assistência médica, mesmo que seja fora do país. A condenação não é só sofrer com uma gestação indesejada, mas também ser assolada pelos males da pobreza. Não bastasse a tristeza que é carregar uma vida que pode lhe trazer a morte. 

A fala de Lula, quando diz que a madame pode fazer o aborto em Paris foi uma metáfora certeira: na França o direito ao aborto foi incluído recentemente, em 2024, como direito constitucional, ganhando solidez irreversível como direito adquirido. Enquanto isso, no Brasil, a discussão da pauta só retrocede. O direito ao aborto, até então, só é permitido em três casos: quando a mulher é estuprada; quando o feto é acéfalo ou quando há risco de vida para a gestante. Mas, até mesmo nesses casos, o PL 1904/24 equipara o aborto ao crime de homicídio e aumenta a pena máxima do crime de aborto para 20 anos para quem realizar o procedimento a partir da 22ª semana de gestação.

Assim, se você for estuprada, você tem 5 meses para abortar. Depois disso, quem vai ser abortada é você. Da sua vida, da sociedade, do seu futuro. Se você precisar abortar você tem um deadline: tem que descobrir logo a gravidez, arranjar todo o procedimento, superar o trauma e abortar. É porque é assim mesmo. Simples, rápido e fácil. Existe toda uma rede de informação acolhedora e linda esperando as mulheres no hospital. Quem dera essa ironia fosse verdade. Passou cinco meses? Prisão. Condenada a 20 anos de xadrez por tentar salvar sua vida tarde demais. 

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Em curtas linhas: não basta ter uma gravidez indesejada. Tem que ser presa por isso também. É isso que o Congresso quer. Lembrando que na maioria dos casos de aborto acontecem com mulheres de baixa escolaridade, populações minoritárias, de baixa renda e com mulheres jovens, muito jovens, maioria adolescentes. De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, divulgada em 2021, dados mostraram que 52% de mulheres que abortaram tinham 19 anos ou menos quando fizeram o primeiro aborto. Taxas mais altas foram detectadas entre as entrevistadas com menor escolaridade, negras e indígenas e residentes em regiões mais pobres.

Outra pesquisa que faz um levantamento sobre a questão do aborto, realizada pelo Instituto AzMina, divulgada em 2023, aponta que cerca de 25 mil meninas de 14 anos são mães anualmente no Brasil. Um dado interessante apontado pelo levantamento é que o Sistema Único de Saúde (SUS) fez, em média, 1800 abortos legais por ano entre 2015 e 2022.

Vale lembrar que, conforme o Código Penal brasileiro, qualquer relação sexual com um menor de 14 anos é considerada estupro de vulnerável. Nesse contexto, se fizermos uma conta rápida podemos ver quantas meninas (sim, meninas) viram-se diante de uma gestação não planejada. Muitos desses casos, quem sabe a maioria, foram estupradas. Se diminuirmos o número médio de mulheres que abortaram por ano, imaginando que eram todas meninas, pela média de meninas de 14 anos que são mães por ano no Brasil, ainda assim temos cerca de 23 mil adolescentes obrigadas a serem mães. Seja por falta de conhecimento, seja por falta de apoio familiar ou social. Seja por preceitos religiosos. Não importa. O fato é que foram crianças com a vidas interrompidas. Mais vale a vida de um feto que a vida dessas crianças, adolescentes, mulheres abusadas?

Enquanto a madame aborta na clínica segura de Paris, a coitada, pobre, adolescente, criança, estuprada, abusada, é condenada a gerir um filho, quando nem seu corpo pode com isso. Diante desses dados, não seria surreal dizer que a realidade esmagadora do Brasil é a de uma criança sendo mãe, tendo como pai um estuprador. 

Ser a favor do PL 1904/24, o projeto do aborto infantil, o projeto do estupro, é ser a favor de criminalizar a existência de ser mulher, pois se uma mulher é estuprada, engravida e aborta, pega pena maior do que aquele homem que a violou. E a violência, nesses casos, não está tão longe. Segundo o Mapa Nacional da Violência de Gênero, Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), base alimentada por registros de saúde informados ao SUS, aponta que 202.608 mulheres sofreram algum tipo de violência em 2022, dentre essas a sexual.

Se você é mulher e é contra o aborto, não aborte. Mas tenha consciência que só a sua existência por ser feminina corre o risco da violação sexual e que se engravidar e essa lei for aprovada você tem apenas 5 meses para decidir se continua a ser a favor do aborto ou não. Lembre-se, uma lei não é para uma pessoa, é para uma sociedade. O problema do aborto é questão de saúde pública e ser legalizado não vai “virar festa” como muitos dizem. Afinal, abortar causa dores, é traumático. Não se aborta uma gestação como se extrai um dente. 

Se você é homem e é contra o aborto, não opine ou faça vasectomia. Chega de homens querendo ditar o que mulheres devem ou não devem fazer com os seus corpos. Preocupem-se antes com os seus corpos violadores. Nem todo homem, mas sempre um homem. Desculpa lá, mas até calados vocês estão errados.

Enquanto a pauta cresce no Congresso Nacional em meio à espetacularização, enquanto pessoas debatem em redes sociais se existe vida antes de 22 semanas, enquanto o povo decide se é a favor ou não, a madame com condições vai a Paris abortar e a coitada do Brasil morre em casa, sem assistência depois de ter sido violada. E no fim, o que é abortado é a esperança que algum dia já existiu em ser mulher. 

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