Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
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Empreendedores: presos do lado de fora
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Trabalhadores desvinculados de qualquer proteção social em meio à pandemia do coronavírus (Foto: Reprodução/Twitter/AleTenaRuizz)

Por Maria Augusta Tavares (Guga)

Quando a literatura econômica referia-se ao mundo dividindo-o em países desenvolvidos e países subdesenvolvidos, o que chamamos de trabalho informal era característica do subdesenvolvimento. Aliás, o que sempre denominamos trabalho informal foi, por décadas, conhecido como atividades pertencentes a um setor, que, segundo a OIT, não tinha ligação com o capitalismo – o setor informal. Um mínimo de acuidade era suficiente para que se perguntasse quem movia essas atividades. Trabalhadores, óbvio. Portanto, a designação não conseguia esconder a existência de parte da população economicamente ativa não absorvida pelo que se considerava ser a produção capitalista. Esse dualismo, nada inocente, tinha o propósito de apartar o capitalismo do que não fosse representativo daquilo que os liberais percebem como desenvolvimento. Assim, enquanto os níveis de desemprego fossem suportáveis, o Estado ia administrando a sobrevivência dessa parentalha pobre, que sobrevivia na informalidade. Não faltaram planos desenvolvimentistas, cujas promessas incluíam tornar todos os trabalhadores formais, portanto, assalariados e com proteção social. Entretanto, essa ilusão do pleno emprego, no Brasil, que fez parte dos projetos de criação da SUDENE, foi rapidamente engolida pela ditadura militar e por suas deploráveis finalidades, a partir de 1964.

Desnecessário dizer que o trabalho informal não deixou de existir. Ao contrário, o padrão toyotista e as políticas neoliberais que sustentaram/sustentam a reestruturação capitalista, pretensa saída para a crise dos anos 1970, engendraram um aporte legal para que esse tipo de trabalho pudesse se expandir mediante novas formas, sobretudo através da terceirização, tanto da produção como da gestão do trabalho. Diríamos que o trabalho informal deixou de ser trabalho apenas realizado por pobres, porque, sob denominações glamourosas, foi incorporado também por desempregados da classe média. Desde que não os chamássemos de trabalhadores informais, esses novos sujeitos, entre eles alguns patrões, nutriam a ilusão de terem autonomia e independência. Não sabem eles que não há independência no capitalismo nem para os verdadeiros capitalistas. Todas as atividades econômicas, umas mais, outras menos, estão submetidas às regras do mercado. Este sim, o patrão com letras maiúsculas, o pior deles. Mas, retomando a expansão da informalidade, podemos dizer que os empreendedores tendem a se imaginar embriões de capitalistas.

Algures, na Europa, há quase dez anos, num congresso em que se discutia o trabalho, sofremos uma severa contestação de um colega italiano, que se recusava a adotar o termo “trabalhador informal”. Apesar do conteúdo do trabalho de alguns ditos autônomos ser questionável, trabalho informal continuava sendo visto como coisa de pobre. No país dele, havia self employed, não trabalhador informal. Nas mesmas águas do self employed navega o empreendedorismo. Tenta-se pela semântica falsear a realidade. Numa palavra, o sujeito se define: sou empreendedor. E parece que, ao incorporar essa titulação, ele esquece de se perguntar a quem serve esse híbrido de patrão e empregado. Trabalha menos horas do que se fosse empregado? Tem autonomia real? A quem se destinam os “lucros” do seu empreendimento? Pagos os impostos, os fornecedores, o empréstimo bancário, os salários de seus empregados – se os tem – o que lhe resta é suficiente para pensar e viver como capitalista?

Com isso, não negamos as exceções. Mas não é delas que estamos a falar. As experiências de empreendedorismo bem sucedidas logo deixam a categoria da dor (empreende+dor) e tornam-se empresários. Nesse momento, a intenção é falar dos que carregam as dores, os empreendedores. Estes, a nosso ver, uma modalidade de trabalho informal. Seduzidos pelo capital e pelo Estado, muitos trabalhadores foram convencidos a enveredar pelo empreendedorismo. Por um lado, o empreendedorismo reduz os índices de desemprego, o que é significativo para o Estado. E, por outro, reduz os custos da produção capitalista, à medida que faz da pequena empresa o seu departamento externo, tanto em termos produtivos, quanto na circulação das mercadorias. Além disso, o empreendedorismo obscurece no imaginário social a categoria do trabalhador proletário, muito embora a questão social esteja a denunciá-lo. Mas, no campo da aparência, onde a maioria se situa, os empreendedores introjetam com tal intensidade o pensamento burguês, que passam a defender os interesses capitalistas como se fossem os seus.

Contraditoriamente, nos últimos meses, quando a crise econômica foi agravada pela pandemia do coronavírus, essa crença no sonho capitalista chama a nossa atenção ainda mais. Era plausível que os pequenos empresários se aliassem aos trabalhadores e estivessem a reivindicar apoio para as suas pequenas empresas. Contudo, isso os igualaria aos trabalhadores informais. Com raras exceções, decidiram, não sabemos se, consciente ou inconscientemente, engrossar o coro dos capitalistas e defender a volta ao trabalho, embora isso signifique uma ameaça à vida. Parece não perceberem que, diferentemente do grande empresário, do capitalista, que tem os seus gestores a lhes representar, os pequenos empresários/empreendedores são obrigados a estar na linha de frente, junto com os seus empregados. Estranhamente, eles não são capazes de perceber que à semelhança do trabalhador informal, sua atividade é igualmente regida pela lei do valor, que a mais-valia por acaso gerada na sua pequena empresa não lhe pertence e que a propagada independência é uma farsa.

Vejamos: o empreendedor não é pequeno ao ponto de ser agraciado pelo auxílio emergencial; não é empregado, portanto não tem um patrão com quem possa negociar, tampouco pode recorrer ao seguro-desemprego; não é suficientemente representativo da produção capitalista para ser socorrido pelo Estado, então, não há dúvida, sua única relação possível é com o mercado. Como dissera Marx, quando os trabalhadores foram expropriados da terra e de todos meios de produção, para se tornarem vendedores da sua força de trabalho, estão “livres como os pássaros”.  Mas não fora essa a liberdade prometida aos empreendedores. Estava implícita a possibilidade de viver melhor, até de mudar de classe social. Na realidade, estão livres e soltos, porquanto desvinculados de qualquer proteção social. Diríamos que, inversamente, o Estado e o capital é que estão livres deles, pois, em termos formais, nada lhes devem. Trata-se de um tipo de trabalhador cujas relações econômicas se dão diretamente com o mercado, este, repetimos, o pior dos patrões. Portanto, a independência dos empreendedores revelou-se uma forma de não pertencimento. Oxalá, aprendam alguma coisa na vivência da pandemia. A realidade já ofereceu inúmeros elementos para, a nosso ver, demonstrar que a independência do empreendedor equivale a estar preso do lado de fora.

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