Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
ads
Exótica, ladra, feiticeira e puta
Compartilhe:
(Foto: Jennifer Santos)

Por que xingar só a mãe se podemos ofender toda uma linhagem genealógica, não é mesmo? É assim que eu me sinto, ofendida nesse grau, quando me dizem: “Você tem uma beleza exótica”! Com uma só frase uma pessoa consegue ofender todos os meus traços fisionômicos herdados pela minha linhagem mestiça. ARGGGGG!

Dá vontade de gritar ou dar uma aula sobre o conceito de xenofobia. Beleza exótica! Exótica para quem? Para os padrões europeus, claro! Beleza é beleza! É preciso desmistificar o padrão normativo!

Desde que vim morar na Europa lido com alguns tipos de diferenças – para não dizer preconceitos – e passei a compreender e entender mais a minha identidade enquanto brasileira e latino-americana. Mas compreendi principalmente o sentido de xenofobia. Na pele! Até então nunca tinha sentido essa sensação de sofrer preconceitos xenófobos. Porém, o mundo encantado do lugar confortável na minha bolha social desabou quando saí do Brasil. A minha ficha caiu mesmo há uns dois anos quando aconteceram três significativos casos.

Vou contar.

O primeiro foi quando alguém – não me lembro quem – me disse que eu era muito bonita. Eu fiquei logo “toda besta”. Respondi numa falsa modéstia: “Ai, para! Obrigada!”, botando o cabelo pra trás da orelha e rindo “timidamente” desviando o olhar. Daí a pessoa amiga continuou: “É bonita sim. Tens uma beleza exótica!”

Todo brilho do elogiu se foi. E eu pensei “E eu sou algum tipo de animal!?” – claro que sou… se formos pensar em termos da taxonomia biológica eu sei que sou Homo sapiens sapiens, mas quando me chamaram de exótica me senti uma gorila, presa numa jaula de estereótipos. Aliás, não é o termo “macaco” que costuma ser utilizado por racistas!?

Pois bem! Fiquei irritadíssima na hora e tentei entender de onde vinha aquela irritação. E eu entendi. Entendi que o desconforto veio de uma sutil camada de xenofobia por trás daquele elogio que com uma só frase conseguiu ofender todos os meus aspectos genealógicos que me identificam: meu cabelo grosso, meu nariz e meus lábios de latina, meu corpo nada magro e meus dentes – traços estéticos que muito provavelmente foram herdados por uma ancestralidade negra e indígena. Que afronta aos meus antepassados me chamarem de exótica!

Eu sei que a pessoa nem fez por mal, porque muitas vezes reproduzimos discursos que se consolidaram como verdade durante muitos anos na nossa construção social. Para ela, me elogiar assim era dizer que eu era diferente, que minha beleza era incomum. Tudo bem, eu entendo. Mas, a palavra exótica designa aquilo que é estranho. Se eu sou estranha, o que é o normal então? A branca de olho claro, nariz afilado, corpo esguio etc. etc.

Xenofobia significa aversão ao que é estranho, alheio ao seu ambiente. E, segundo o Dicionário Etimológico Resumido da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, vem do grego e é constituído por dois termos: xénos – que quer dizer estrangeiro, e phob, de raíz etimológica phobéomai que significa “ter terror”. E foi desse terror que veio meu desconforto! Um terror invisível, mas que se sente.

Clique aqui para ler todos os textos de Flávia Lopes

O segundo caso foi passado algum tempo depois de entender um pouco mais a minha “beleza exótica”. Um dia, trabalhando no caixa de um supermercado, uma senhora, ao receber o troco de mim, da compra que fez, começou a contar o dinheiro… de-mo-ra-da-men-te, enquanto me olhava com um tom de julgamento, como se eu tivesse errado o troco. Eu olhei para a fila que estava atrás dela, meio-dia, hora do almoço, todo mundo com fome, inclusive eu e perguntei: “Está tudo certo!?”. Ela me respondeu: “Estou só confirmando, pois sabe como são os brasileiros né!?”- disse isso fazendo um gesto com as mãos que significa “roubo”. E num diálogo com menos de dois minutos ganhei outro adjetivo: ladra.

Eu disse sem medo e irritada pela fome que piora meus ânimos: “Sei sim como são os brasileiros! Aprendemos tudo com as caravelas que foram lá ao Brasil. Muito obrigada, tenha um bom dia!” Acho que ela não entendia que ofendendo o Brasil estava automaticamente também ofendendo Portugal já que foram os portugueses que colonizaram nosso país. Dito isso, despachei a senhora com um sorriso falso na cara. “Próximo cliente, por favor…”

O terceiro caso, uns meses depois, aconteceu no meu primeiro dia de trabalho numa fábrica. A chefe da linha de produção me apresentou para todos os companheiros de trabalho e logo depois aproximou-se de mim uma menina que falou: “Ah, és brasileira! Dizem que as brasileiras ou são putas ou são feiticeiras!”. Menos de um minuto e ganhei mais dois adjetivos!

Eu não entendi de primeira, porque as vezes o sotaque português é difícil de perceber, mas quando entendi já era tarde demais para dar a minha resposta que pensei: “Sou brasileira sim e é melhor ter cuidado comigo pois eu sou os dois, puta e feiticeira”. Mas, infelizmente, essa minha resposta foi para a galeria de coisas não ditas gravadas na minha mente. Tudo bem, só mais um sapo que engoli.

Três casos. Quatro adjetivos. Uma dor. Mas, entristece-me muito mais em saber que esses “pequenos episódios” de xenofobia que sofri em Portugal não são isolados.

De acordo com o Relatório de Experiências de Discriminação na Imigração em Portugal, um estudo de 2020 elaborado pelo Projeto #MigraMyths- Desmistificando a imigração, desenvolvido pela Casa do Brasil de Lisboa, 85,6% dos respondentes da pesquisa afirmaram que já sofreram algum tipo de discriminação em Portugal baseada em preconceitos e estereótipos sobre a imigração. A maioria deles eram brasileiros (77,1%) e mulheres (82,7%).

O Relatório diz: “No que se refere às comunidades imigrantes em Portugal, a comunidade brasileira é a maior, sendo as mulheres também maioria. No caso destas mulheres, os estereótipos de gênero cruzam-se com muitos outros, na sua maioria ligados à ‘brasilidade’ e a ideia de um corpo disponível, hipersexualizado, legado de uma visão colonial e da objetificação das mulheres.”

Eu fui uma dessas mulheres. Minha representatividade está nas estatísticas.

As três ocorrências que sofri me fizeram entender na prática o que era xenofobia. Que grande aula que tive! Que belos professores! Fizeram-me refletir tanto sobre o assunto que aprendi que ninguém está imune ao bichinho da xenofobia. A reflexão do lugar da vítima é mais dolorosa, sim, mas muito mais preciosa. Claro que não é regra. Isso só se torna verdade quando a dor bate fundo e mergulhamos num lugar sensível da alma que desperta um olhar mais afetivo, de alteridade e empatia para com o próximo, porque é isso que é preciso para aceitar a diversidade e entender que não existe padrão na espécie humana. Viajar e viver fora nos ajuda muito nesse sentido, é um ótimo recurso para aprimorar e expandir nossa percepção empática, e paciência também.

Empatia, aliás, nunca é demais, pois o próximo pode ser você. Todos nós podemos ser vítimas ou agressores de preconceitos “invisíveis” que já estão internalizados na nossa construção social de alguma forma. Seja em pequenas, médias ou grandes escalas. Em diferentes contextos sociais. Dentro ou fora do próprio país. Pois há diferença sempre, em todos os lugares. Eu falei das minhas experiências em Portugal, mas isso pode acontecer em qualquer canto.

Mas, gostaria de lembrar que Portugal também não é só feito de preconceitos, encontrei no país muitos portugueses acolhedores. Aliás, esses foram mais numerosos na minha trajetória, e por eles também tenho imensa gratidão. Com eles também aprendi sobre acolhimento na prática.

Entretanto, a xenofobia é um bichinho feio e exótico, que não se vê, mas se sente sutilmente porque está enterrado em uma camada muito profunda em alguns comentários e pequenas ações. Às vezes até um “elogio” pode estar carregado de percepções “exóticas”. E correndo um risco grande em parafrasear contraditoriamente o famoso escritor Antoine de Saint-Exupéry: parece que nem tudo que é invisível aos olhos é essencial, não é mesmo!?

Compartilhe:
Palavras-chave
xenofobia