A era da Revolução Industrial trouxe impactos em todas as esferas humanas. Das transformações geológicas, como o antropoceno, às revoluções culturais que vieram, tempos depois, a desembocar no positivismo lógico e nas revoluções energéticas do carvão e do ferro, posteriormente do petróleo e do aço. Quando Nietzsche (1844-1900) afirmou no final do sec. XIX que Deus tinha morrido, sua metáfora niilista apenas enunciava a era positivista da ciência, antropocêntrica e laica, onde as luzes da razão cartesiana que iluminavam a ciência da era industrial, tinham também desencantado o mito e a religiosidade que acompanhavam a humanidade desde a sua pré-história.
Quando György Lukács (1885-1971) afirmou que “o romance é a epopeia do mundo abandonado por Deus”, respaldado pela ascensão do romance nas sociedades capitalistas industrializadas entre os sec. XVIII e sec. XIX, o que se está a assinalar é o desencantamento do homem moderno: que ganhou em razão e perdeu em fantasia. A imaginação que está na base da criação da ciência é a matéria-prima da criação artística. A imaginação é a categoria cognitiva que faz a ligação entre percepção sensível e razão abstrata. A natureza não dá saltos, a capacidade imaginativa, a fabulação é o que une os homens em torno de um patrimônio mitológico comum, é o que torna a língua e a comunicação possíveis. As sociedades industriais e pós-industriais que mataram Deus (teocentrismo) para sofisticamente investir o homem como a medida de todas as coisas (antropocentrismo) e transformaram o romance no gênero literário por excelência de um mundo abandonado por Deus, a epopeia laica, pagaram um preço: o declínio do sagrado foi seguido pela perda do fascínio da imaginação.
O Frankenstein de Mary Shelley (1797-1851), ou Prometeu moderno, e a obra de Júlio Verne (1828-1905) estão na origem da ficção científica no sec. XIX. A ficção científica é a expressão estética da ciência, é a busca da poesia perdida pelo automatismo industrial e científico. Na ficção científica imaginação e razão se reconciliam, potencializando a projeção de futuros possíveis. Mais que antecipar inovações tecnológicas ou explorar a plasticidade da imaginação, a ficção científica nasce dessa fissura acima descrita entre razão científica e sensibilidade poética, o gênero sci-fi (science fiction) busca o encanto epopeico perdido em um mundo abandonado por Deus, onde a estética e seu encanto residem na criação tecnológica, na imaginação científica de fórmulas e teorias, os mantras da nova religião sem Deus (a ciência).
Isaac Asimov (1920-1992) é, assim como Vladimir Nabokov, um escritor estadunidense nascido na Rússia. Asimov imigrou ainda criança para os Estados Unidos, não aprendeu russo, escrevendo integralmente em língua inglesa. Asimov escreveu e publicou cerca de 500 (quinhentas) obras. Inquestionavelmente um dos escritores mais prolíficos da história da literatura ocidental. Escreveu obras didáticas, de ciência e também obras de ficção científica, nessa última notabilizou-se como um dos mestres de referência. Conhecido como O Bom Doutor, Asimov faz parte da era de ouro da ficção científica, anos 50 e 60 nos EUA. A revista estadunidense Amazing Stories do editor Hugo Gernsback foi a vitrine que impulsionou a era mais fecunda e literariamente rica do gênero de ficção científica no sec. XX. A variedade e fecundidade do gênero sci-fi é inabarcável, há mais de trinta variações, podendo-se destacar três grandes categorias como a ficção científica soft, a ficção voltada para glorificar a ciência e a inovação tecnológica; a ficção científica hard que aborda a perspectiva de um futuro distópico; e a ficção científica social que explora os aspectos humanos e sociais da inovação científica e tecnológica.
O mundo literário de Asimov constrói-se na perspectiva da ficção científica social, os mundos estético-literários criados pelo gênio inventivo de Asimov contemplam três grandes metasséries: 1) a série da robótica, iniciada pelo livro de contos Eu, Robô; 2) a série da Fundação; 3) a série do Império Galáctico. As metasséries de Asimov formam um universo autônomo, conexo e sofisticado, pois trazem conceitos e estéticas inovadoras, como os cérebros positrônicos, cérebros de robôs que possuem inteligência artificial, constituídos de platina-irídio onde os circuitos cerebrais produzem e eliminam pósitrons, partículas recém-descobertas na época em que Asimov vislumbrou os cérebros positrônicos. A psicologia robótica personificada pela doutora Susan Calvin, personagem criada por Asimov. A psico-história, ciência que baseada na teoria cinética dos gases, poderia prever a história humana. A psico-história parte da tese de que o comportamento de um indivíduo é imprevisível mas o da massa humana não. O homem-massa é previsível, a tese de Asimov, personificada em Hari Seldon personagem da trilogia Fundação, é de que um universo de vários bilhões de seres humanos têm seu comportamento matematicamente previsível, o mesmo não se pode afirmar de um só indivíduo. Hari Seldon propôs, na trilogia Fundação, um modelo matemático de comportamento de bilhões de pessoas no curso da história, como o fez Adolphe Quételet (1796-1874) matemático, astrônomo e sociólogo belga no começo do sec. XIX, ao defender o uso da probabilidade como modelo de estudo sociológico, as hoje populares estatísticas sociais.
Isaac Asimov é uma espécie de Honoré de Balzac (1799-1850) que pintou um amplo mural não da França da Restauração, como o fez o genial escritor francês, mas de um futuro distante onde a humanidade se espalharia e ocuparia outros planetas habitáveis ao longo da galáxia. O universo de Asimov é tridimensional abrangendo a robótica, inteligência artificial e as implicações para a humanidade desse império que tende a ser galático para questionar o que sobra de humanidade em um mundo que excomungou o mito e a religiosidade para inventar uma nova fé, a da ciência e do seu admirável mundo novo de estética futurista.
Em 1921 estreava no Teatro Nacional de Praga a peça “Robôs Universais de Rossum” (Rossumovi Univerzální Roboti), obra do escritor tcheco Karel Capek (1890-1938), marco que criou o termo robô, do tcheco robota, significando trabalhador forçado, servidão. A peça de Capek ajudou a popularizar, em outros idiomas, o termo robô mas mais que isso, a obra inovadora de Capek disseminou no imaginário coletivo a distopia tecnológica em que os robôs dominariam e escravizariam a humanidade até a extinção desta. Os robôs descritos na peça de Capek são organismos biológicos artificiais mais próximos do que hoje a ficção científica chamaria de replicantes, humanoides feitos de tecido orgânico. Rossum, na peça do escritor tcheco, é um rico industrial inglês que decide produzir humanos artificiais para realizar todo o trabalho pesado e, com isso, libertar a humanidade para uma espécie de ócio criativo. A experiência não dá certo, assim como a de Frankenstein, e os robôs se voltam contra a humanidade, primeiro escravizando-a, depois extinguindo-a. Na época em que a obra de Karel Capek foi concebida não tinha surgido a revolução da microbiologia, a engenharia genética, bem como não havia a tecnologia mecatrônica que nós hoje associamos à palavra robô. A peça de Capek diz muito do começo do sec. XX e do impacto que o fim da Primeira Guerra e o conceito fordista de linha de montagem produziam nas mentes das pessoas daquele tempo.
A metassérie dos robôs de Asimov é uma contestação à visão negativa dos robôs. No clássico “Eu, Robô”, o conto de estreia, Robby, narra a história entre uma garotinha, Glória, e um robô doméstico de primeira geração, Robby, um robô que auxilia nos trabalhos domésticos e que não fala. O conto se passa no final do sec. XX, 1998, lembrando que o livro “Eu, Robô” de Asimov é de 1950. Asimov em sua metassérie dos robôs não apenas foi responsável pela criação e popularização do termo robótica mas também pela “humanização” dos robôs que até então eram vistos, no imaginário coletivo, como ameaças à humanidade. No conto Robby, o robô doméstico de mesmo nome não apenas cria um vínculo afetivo com uma criança, mas supera o preconceito da mãe da menina que queria se ver livre daquele espantalho de latas, até que este salva a vida de Glória.
Entretanto, é no conto “Andando em círculos”, do livro “Eu, Robô”, que Asimov formula as famosas três leis da robótica. A narrativa se passa em Mercúrio, primeiro planeta do sistema solar onde a humanidade no começo do sec. XXI começa a explorar atividade mineradora. O uso de robôs na exploração de ricas reservas do elemento químico selênio é especulado por Asimov, nesse conto. O selênio é usado na indústria do vidro, na medicina veterinária, potencializa a resistência da borracha vulcanizada e compõe células fotoelétricas utilizadas em fotômetros. Na série de contos de “Eu, Robô”, Asimov explora dilemas envolvendo as três leis da robótica. Mas o que dizem as famosas três leis da robótica? A primeira lei da robótica prescreve: “Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.” A segunda lei da robótica enuncia: “Um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.” A terceira lei da robótica complementa: “Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e Segunda Leis.” As três leis da robótica de Asimov, nascidas da literatura de ficção científica, mostram a interseção entre literatura e ciência, abrindo discussões que vão além de literatura e ciência, explorando as implicações éticas e sociais da interação entre homens e tecnologia. As três leis da robótica objetivam humanizar o desenvolvimento tecnológico, visam assegurar um núcleo de humanidade em face da automação que inevitavelmente surge no rastro da tecnologia mecatrônica.
A evolução da robótica, descrita na literatura de Isaac Asimov, não se restringe ao livro de contos “Eu, Robô”, vai além e cobre um espaço cronológico de milênios, ao ponto de descrever o surgimento de robôs humanoides com cérebros positrônicos e inteligência artificial ou mutantes genéticos como O Mulo que aparece na Trilogia da Fundação. A perspectiva de desenvolvimento futuro da robótica e inteligência artificial e seu impacto social levam Asimov a formular a lei zero da robótica: “Um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.” A lei zero da robótica de Asimov é uma formulação deontológica de carácter universal, como um imperativo categórico kantiano, tem a pretensão de abranger a humanidade. As três leis fundacionais da robótica, complementadas pela lei zero, formulam a ética humanista da robótica, uma formulação que delimita o espaço ético do humanismo tecnológico.
A Inteligência Artificial (IA) está na crista da onda na era das redes sociais (ciberespaço), mas afinal o que é a Inteligência Artificial que causa espanto e, ao mesmo tempo, admiração? A Inteligência Artificial é um campo do conhecimento interdisciplinar que reúne a ciência da computação, ciências cognitivas e a filosofia da mente, dentre outras. Basicamente a IA estuda o “comportamento inteligente” em seres humanos, animais e máquinas para emular, copiar esse “comportamento inteligente” em artefatos por meio da engenharia (WHITBY, p.19).
Portanto, o objeto da IA é o “comportamento inteligente”, seu estudo e consequente reprodução em artefatos construídos através da engenharia. Aí já surge o primeiro grande dilema que levará às duas grandes abordagens ou paradigmas da IA. O paradigma simbólico (IA Forte) defende que para se estudar a inteligência e reproduzi-la artificialmente, através de artefatos, é necessário se criar uma mente consciente. O paradigma conexionista (IA Fraca) afirma que basta estudar o “comportamento inteligente” para se produzir artefatos que “simulem” inteligência. O paradigma conexionista (IA Fraca) é o que tem obtido, até agora, os melhores resultados, empregando técnicas como aprendizagem de máquinas (Machine Learning), programação em linguagem natural (PLN) e redes neurais artificiais. Na IA Fraca, paradigma conexionista, há a necessidade de especialistas (oráculos) que alimentem a máquina ou programa com dados e a treinem.
Assim, a IA é uma abordagem da inteligência que se caracteriza por ser controversa e abrigar uma grande variedade de modelos e técnicas. Para fins meramente didáticos, a breve história da IA, até os nossos dias, pode ser dividida em dois grandes modelos teóricos: IA Forte, paradigma simbólico; e IA Fraca, paradigma conexionista. Ambos os modelos podem ser ilustrativamente sintetizados pelo Teste de Turing e pelo argumento do Quarto Chinês.
No Teste de Turing, formulou-se um jogo de imitação onde o intérprete deve descobrir se as respostas às questões propostas são provenientes de uma máquina ou de um ser humano. Se a máquina conseguir se passar pelo ser humano em 1/3 dos testes, ela está reproduzindo comportamento inteligente e poderá, assim, ser também considerada uma máquina inteligente. O Teste de Turing foi formulado pelo matemático e cientista da computação britânico Alan Turing (1912-1954) em artigo de 1950 intitulado: “Computing Machinery and Intelligence”. Neste artigo, Turing visava a responder se seria possível uma máquina pensar. O matemático sugere que a pergunta seja modificada, dada a ausência de acordo em torno das palavras “pensar” e “máquina”. Turing sugere que em vez de “as máquinas podem pensar?” a questão seria “as máquinas podem simular comportamento inteligente ao ponto de que os humanos acreditem que ela é inteligente?” Turing, com isso, evita enfrentar questões epistemológicas e metafísicas em torno do que é o pensamento e a natureza da inteligência, focando na construção de artefatos inteligentes. O Teste de Turing pavimenta o caminho para aquilo que o filósofo norte-americano John Searle chamaria de IA Fraca.
O argumento do “Quarto Chinês” é uma contestação ao Teste de Turing, formulado pelo filósofo John Searle que consiste basicamente na seguinte situação: imagine uma pessoa em um quarto com um manual de instruções em português, o único meio de comunicação com o mundo exterior é uma abertura por onde entram rabiscos escritos em um papel e por onde eles são respondidos na mesma linguagem de rabiscos. O homem que está no quarto não entende a linguagem dos rabiscos, tão somente segue as regras do manual em português. Entretanto, as pessoas que estão fora do quarto são chineses e estão crentes que estão se comunicando com alguém que está no “Quarto Chinês”. O argumento do Quarto Chinês visa questionar o “comportamento inteligente”, uma vez que simular um comportamento inteligente não significa inteligência em si mesma. No exemplo do Quarto Chinês o homem que não sabe chinês, não sabe sequer o que aqueles rabiscos são, apenas age como uma unidade central de processamento. Ele segue as regras que estão escritas em português, apenas. John Searle mostra a insuficiência da resposta de Turing sobre a possibilidade de as máquinas pensarem. Os adeptos da IA Fraca, paradigma conexionista, contestam Searle, ao afirmarem que o homem é apenas uma unidade do quarto chinês e que o quarto, enquanto sistema, pensa. A contradita de Searle é de que nem o homem enquanto parte nem o quarto como um todo sistêmico pensam, pois o argumento do Quarto Chinês é um problema de filosofia da linguagem, não sendo possível agir de forma inteligente baseado em uma linguagem onde só existe a sintaxe, as regras de associação entre signos, sem o referente dos objetos e sem os protocolos de comunicação entre usuários. O comportamento inteligente é um problema linguístico que deve ser atacado em sua tridimensionalidade sintática, semântica e pragmática. O argumento do Quarto Chinês de John Searle aponta para a insuficiência do paradigma conexionista, onde o problema para a construção de máquinas inteligentes exige uma abordagem sobre a natureza mesma da inteligência e não um simulacro dela.
A IA Forte aborda a Inteligência Artificial sob a perspectiva de construção de máquinas inteligentes e autoconscientes capazes de agir de forma intencional. Isaac Asimov aborda a questão no conto “O Homem Bicentenário” onde um robô inteligente e consciente luta para possuir o mesmo status de um ser humano na sociedade. No conto de Asimov o que se levantam são questões éticas relativas ao desenvolvimento de tecnologia que resulte na produção artificial de mentes inteligentes, sencientes e autoconscientes. A IA Forte rompe com o conceito de inteligência antropocêntrico. Indaga acerca das propriedades da inteligência que podem ser reproduzidas de modo artificial por máquinas que não sejam meros simulacros da inteligência mas que sim produzam inteligência de forma autônoma. A IA Forte existe como paradigma mas por abordar questões mais complexas possui poucos resultados práticos até agora. O nó górdio da IA Forte é tornar computável o senso comum, conceito vago e ambíguo. A falta de instrumental matemático adequado para isso e a limitação tecnológica do estágio atual, tornam a IA Forte mais uma fonte de especulação da filosofia da inteligência artificial. Nada impedindo que no futuro esse instrumental tecnológico seja construído.
Apesar de impressionantes e até assustadores os resultados da IA contemporânea, o que se tem, no momento, é apenas o início do que se aponta ser uma longa jornada. Entre o Teste de Turing e o Quarto Chinês, a inteligência artificial se manifesta como mero simulacro, onde a questão que se coloca é se o desafio de construir máquinas pensantes e inteligentes não seria uma tentativa de o homem saltar sobre sua própria sombra.
A cibernética é a teoria do controle aplicada a sistemas complexos. O termo “cibernética” surge, com esse sentido, na obra de 1948 do matemático estadunidense Norbert Wiener (1894-1964): “Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina.” É nessa obra que Wiener define a cibernética como “o estudo científico do controle e comunicação no animal e na máquina”. A cibernética está associada aos sistemas autorregulados, seus conceitos-chave são: controle, recursividade e informação. Mais recentemente o termo cibernética caiu em desuso, adotando-se o conceito de controle e automação. A cibernética, em síntese, é a ciência do controle de sistemas complexos de vários tipos: técnico, biológico ou social. Basicamente o que estava no âmago dos estudos de Norbert Wiener era como sistemas mecânicos ou biológicos controlavam a informação e reagiam a estímulos sem perder o foco em seus objetivos. Cibernética tem uma estreita relação com a teleologia (teoria dos fins) visando definir princípios e regras do controle da energia e informações para a realização de determinados fins.
A biônica é basicamente uma técnica que recorre aos modelos e soluções de problemas biológicos para solucionar problemas de engenharia e design. A biônica está vinculada à cibernética e à robótica, fazendo uma analogia entre sistemas naturais (biológicos) e mecânicos na busca de soluções para problemas de engenharia. Exemplos da biônica que estão consagrados no cotidiano é o uso do velcro em roupas, inspirado no modelo biológico do carrapicho, ou a aerodinâmica das asas em aviões inspirada nos pássaros. Mais recentemente surgiram as próteses biônicas, os exoesqueletos que controlados pelo pensamento podem trazer o movimento para pessoas paraplégicas. Os estudos do neurocientista Miguel Nicolelis estão na vanguarda do controle de exoesqueletos pelo pensamento, trazendo uma alternativa para pessoas acometidas pela paraplegia. A biorrobótica é o campo que aproxima a cibernética, biônica e robótica, projetando robôs que simulem organismos biológicos. Tais estudos, no momento, são incipientes, estando legados à ficção científica, como no filme Blade Runner através dos replicantes, organismos biológicos criados artificialmente, androides mais próximos de um clone do que um robô.
A robótica, como até aqui descrita, é a aplicação da engenharia mecatrônica (que reúne engenharia mecânica e eletrônica) para produzir máquinas que auxiliem os humanos em trabalhos penosos ou perigosos. Não por acaso, como já assinalado, a palavra robô significa originariamente em tcheco “servo”. A robótica está indissociavelmente vinculada à cibernética, biônica e inteligência artificial. A robótica de enxame, por exemplo, é a robótica social que recorre ao modelo comportamental de sociedades de insetos e de como estas solucionam problemas em grupo. A robótica de enxame inspirou a “inteligência de enxame” na IA que pensa a articulação da inteligência no nível social em modelos menos complexos que o humano, como uma sociedade de formigas, por exemplo.
A cibernética, biônica, robótica e inteligência artificial conjugadas podem abrir o caminho, em um futuro não tão distante, para a emergência de uma nova humanidade onde sistemas biológicos, mecânicos e artificiais constituam uma nova realidade cada vez mais complexa capaz de explorar as fronteiras da engenharia genética, física quântica e astronomia, superando as limitações materiais e geopolíticas do nosso planeta. Uma humanidade híbrida que conjugue inteligência natural e artificial capaz de descobrir e habitar novos mundos (exoplanetas), apta a explorar o potencial energético de estrelas e, em um futuro mais remoto, de uma galáxia inteira, como vislumbrado na Escala de Kardashev (escala para medir o grau de desenvolvimento tecnológico de uma civilização). A biorrobótica e a inteligência artificial que ainda estão em sua aurora, apontam para um futuro cibernético e galáctico, por ora, só descortinado pela ficção científica social como na Trilogia da Fundação de Isaac Asimov ou na ficção científica hard de um filme como Blade Runner com sua poesia niilista distópica, inspirada no romance de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Eletric Sheep? (Androides sonham com ovelhas elétricas?).
Onde está a sociedade está o direito (Ubi societas ibi jus), as relações jurídicas emergem onde emerge o espaço social, pois são relações sociais qualificadas deontologicamente (normativamente) e com algum nível de institucionalização. Na medida que a IA ganha corpo e volume social, ela passa a ingressar na esfera das relações jurídicas, afetando bens, direitos e a intersubjetividade humana. Um fenômeno já visível são as lawtechs, startups com matrizes tecnológicas que desenvolvem produtos e prestam serviços na área jurídica. Algo que pode dinamizar a velocidade na prestação do serviço jurisdicional, a famosa lentidão da justiça pode ser equacionada pelo uso de ferramentas de IA que façam o serviço repetitivo da burocracia judiciária. Bancos de dados e cruzamentos de informações podem potencializar em muito a celeridade da justiça. Entretanto, há limites para o uso da IA na praxe forense: o limite ético. Em recente caso, Roberto Mata vs Avianca Inc., processada na justiça federal de Manhattan, Nova York, EUA, o advogado do autor em réplica à contestação da Avianca, apresentou farta e detalhada jurisprudência que analisada pelo juiz federal em todos os bancos de dados disponíveis, não foi encontrada. Em audiência especialmente designada o advogado admitiu ter usado o chatGPT e que este inventou toda uma jurisprudência para fundamentar a réplica apresentada. O caso Roberto Mata vs Avianca Inc. abre um precedente perigoso no uso de tecnologias de IA na praxe forense e do limites éticos do seu exercício.
A Inteligência Artificial é um fenômeno irreversível, segundo estudiosos, sendo irrefreáveis os seus impactos na vida social. A administração estatal pode usar IA para criar programa de “pontuação social” onde os cidadãos seriam classificados segundo um score de pontuação, os mais bem classificados teriam benefícios como abatimento de preços ou isenções tributárias e os em pior classificação ficariam sujeitos a interdições sociais. Um mecanismo eficiente e “totalitário” de controle social. Evidentemente o uso de IA para pontuação social põe em vulnerabilidade o regime dos direitos fundamentais do cidadão. O mesmo se diga do uso de IA para selecionar currículos para fins de contrato de trabalho, a manipulação de dados pode criar dificuldades hercúleas para certos grupos sociais ingressarem no mercado de trabalho, favorecendo outros perfis sociais. A IA pode manipular o mercado de trabalho e enfraquecer a atuação do direito sindical. O uso da IA no Direito Penal pode induzir à construção de um certo perfil criminológico a ser combatido, enquanto outros podem ser secundarizados, como o crime de colarinho branco. Isso pode levar os órgãos de persecução penal (Polícia Judiciária e Ministério Público) a uma maior especialização na repressão da criminalidade periférica, criando uma espécie de nova teoria lombrosiana, um lombroso cibernético manipulando dados e estatísticas para criminalizar minorias e excluídos.
As implicações do uso da IA na vida pós-moderna e seus efeitos éticos e jurídicos começam a chamar a atenção da comunidade internacional. A Unesco (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) clama aos governos que regulem o uso da IA na educação. No âmbito do sistema global de proteção dos Direitos Humanos, a Unesco vem apontando a necessidade de regulação do uso de ferramentas tecnológicas e uso da IA no processo educacional. O ponto central levantado pela Unesco é sobre o agravamento da exclusão digital, onde de um lado arregimentam-se países e empresas que são capazes de coletar, armazenar e gerenciar grandes volumes de dados e, de outro lado, aqueles que participam da coleta de dados mas não da tomada de decisão. Claramente a divisão entre países e empresas do mundo desenvolvido e do mundo subdesenvolvido. A Unesco lançou, seguindo esta linha, o Guia para o uso da IA generativa na educação e pesquisa (Guidance for generative AI in education and research), onde textualmente prescreve: “Os desenvolvedores de sistemas de inteligência artificial generativa (GenAI, na sigla em inglês) devem ser responsabilizados por garantir a adesão a valores fundamentais e propósitos legais, respeitando a propriedade intelectual e mantendo práticas éticas, ao mesmo tempo em que previnem a disseminação de desinformação e discursos de ódio”.
No âmbito do sistema regional de proteção europeu, a Comissão Europeia aprovou, em 2023, o E.U. AI Act que regulamenta o uso da IA na União Europeia. O regulamento da Comissão Europeia limita o uso da IA generativa, ferramenta apta a gerar textos e imagens, estabelecendo que determinadas plataformas de softwares contenham avisos específicos com a finalidade de alertar os usuários. O E. U. AI Act contém os seguintes objetivos: (1) garantir que os sistemas de IA colocados no mercado da União Europeia e utilizados são seguros e respeitam a legislação em vigor em matéria de direitos fundamentais; (2) garantir a segurança jurídica para facilitar o investimento e a inovação em IA; (3) melhorar a governança e a aplicação efetiva da legislação existente sobre direitos fundamentais e requisitos de segurança aplicáveis a sistemas de IA; (4) facilitar o desenvolvimento de um mercado único para a utilização da IA de forma lícita, segura e confiável. Seja no âmbito global ou regional, começa a surgir uma normativa no plano do Direito Internacional Público (DIP) que visa proteger a “pessoa humana” em face da revolução trazida pela IA. A era dos ciberespaços torna a vida humana mais dinâmica, ampliando os espaços físicos para abranger os espaços virtuais. A dimensão psicofísica do ser humano agora ganha novas dimensões: a virtual ou digital. O tradicional princípio vetor da dignidade humana, na era dos ciberespaços e da virtualização da vida, exige uma reformulação: a dignidade humana só será integral na medida em que abranja também a dimensão virtual ou digital. No seio da comunidade jurídica começa a surgir a percepção da “integridade digital como um novo direito fundamental”. Dando um passo mais adiante, a integridade ou dignidade digital merece tutela constitucional e também internacional, de modo a que se construa uma malha normativa protetiva na esfera transnacional, evitando que se induza à divisão de nações de primeira e segunda categoria, em matéria de “integridade digital”. Não bastando tutelar os dados da pessoa em bancos digitais, pois seus dados são uma projeção de sua personalidade, mas também que esses dados não possam ser usados para lhe causar danos. Aos poucos, surge na consciência jurídica a necessidade de se delinear um “mínimo ético comum” capaz de tutelar a dignidade humana em face do irreversível desenvolvimento da IA.
Isaac Asimov, em sua Trilogia da Fundação, cria o conceito da “psico-história” que seria a ciência das multidões de bilhões, baseada na matemática da complexidade, capaz de prever o comportamento da humanidade ao longo dos milênios. A psico-história evidentemente até hoje só existe na ficção, embora o insight de Asimov tenha base na ideia dos sistemas complexos e na possibilidade de modelação matemática dos mesmos. A complexidade vem sendo objeto de estudo nos últimos séculos, desde a descoberta dos ecossistemas, da psicologia social e estudos meteorológicos, passando-se ao desenvolvimento de um tratamento matemático de sistemas não-lineares e complexos. Desde a formulação da Teoria das Probabilidades pelo matemático e astrônomo francês Laplace (1749-1827) ao seu uso na sociologia por Adolphe Quételet (1796-1874), as estatísticas sociais, desenvolve-se uma matemática capaz de modelar e tornar previsível o comportamento de sistemas complexos, sejam eles físicos (meteorologia), naturais (ecologia) ou sociais (economia, psicologia social). Os sistemas complexos tornaram-se objeto da ciência da complexidade. Um dos pioneiros foi o russo naturalizado belga Ilya Prigogini (1917-2003) cujos estudos em termodinâmica de processos irreversíveis o levaram a formular a Teoria das Estruturas Dissipativas, uma das principais abordagens sobre sistemas complexos. Hoje inúmeras são as áreas que estudam sistemas complexos, algumas, a título de exemplo: cibernética, complexidade, inteligência artificial, teoria do caos, teoria da catástrofe e geometria fractal. Os sistemas complexos, como a sociedade humana, têm como características básicas as “propriedades emergentes”, onde o todo é maior que o somatória das partes, fazendo emergir novas propriedades; e o carácter “multiescala”, onde em cada escala de complexidade há regras específicas. A psico-história de Asimov, embora fictícia, é literatura alicerçada em rica informação sobre o estado da arte da ciência de sua época, o que permite a formulação de especulações plausíveis sobre o desenvolvimento futuro da humanidade. Como assinala o psico-historiador dos mundos possíveis Isaac Asimov:
“Era um império colossal, que se estendia ao longo de milhões de mundos de um braço a outro da poderosa multiespiral que era a Via Láctea. Sua queda também foi colossal- e demorada, pois tinha um grande caminho a percorrer.
Ela vinha caindo havia séculos antes que um homem realmente se desse conta da queda. Esse homem era Hari Seldon, o homem que representou a única fagulha de esforço criativo deixada em meio à decadência que se acumulava. Ele desenvolveu a ciência da psico-história.
A psico-história lidava não com o homem, mas com as massas humanas. Era a ciência das multidões; multidões compostas por bilhões. Ela poderia prever reações a estímulos com a precisão com que uma ciência menor poderia prever o ricochete de uma bola de bilhar. A reação de um só homem não poderia ser prevista por nenhuma matemática conhecida; mas a reação de um bilhão é outra coisa.” (ASIMOV, p. 303)
“- Porque tenho fé nos princípios da psico-história. Ela é uma ciência estranha. Atingiu a maturidade matemática com um homem, Hari Seldon, e morreu com ele, pois nenhum homem desde então foi capaz de manipular suas complexidades. Mas, nesse curto período, ela provou ser o instrumento mais poderoso jamais inventado para o estudo da humanidade. Sem fingir prever as ações de indivíduos, ela formulou leis definitivas capazes de análise e extrapolação matemática para governar e prever a ação em massa de grupos humanos.” (ASIMOV, p. 331)
Já se disse que a matemática é a ciência dos mundos possíveis, a complexidade é a característica de sistemas não lineares e a ficção científica é o gênero literário que une ciência e arte. A composição criativa entre insigths matemáticos, a complexidade de sociedades humanas e a percepção estético-literária está na base da Trilogia da Fundação, literatura de excelência conjugada com especulações plausíveis de possíveis cenários futuros à luz da ciência. A psico-história de Asimov mais do que aludir à possível modelagem matemática da humanidade como sistema complexo, desvela o desejo humano de saber, o que Hari Seldon (personagem criador da psico-história) pretende é controlar a complexidade e salvar a humanidade de sua iminente autodestruição em uma hecatombe civilizatória. A psico-história é o sonho iluminista de libertar a humanidade de sua vicissitude através da ciência. A inteligência esclarecida dominando o acaso da natureza em busca de sua autopreservação.
É a Inteligência Artificial a nossa invenção final? Personalidades como o físico Stephen Hawking, o linguista Noam Chomsky e o bilionário Elon Musk ecoaram o alerta de perigo para a humanidade com o desenvolvimento das pesquisas em IA. Em 2023 a Future of Life Institute divulgou uma carta aberta com a assinatura de mais de mil cientistas pedindo uma pausa de 6 (seis) meses nas pesquisas de IA. Desde os primórdios da ficção científica, há o mito das máquinas inteligentes que se voltam contra o criador e destroem a humanidade. A IA tem por objeto o “comportamento inteligente”, visa produzir artefatos que auxiliem o homem por meio da engenharia. Como visto no exemplo do Teste de Turing, não se pode falar que existe de fato uma inteligência. A inteligência é o produto da evolução biológica ao longo de milhões de anos, onde eventos aleatórios e a seleção natural moldaram a inteligência natural. Os artefatos inteligentes até agora produzidos “simulam a inteligência”. A IA Fraca, paradigma conexionista, é muito boa em processar um colossal volume de dados e em reconhecer padrões, mas isso ainda não é inteligência propriamente dita. Como afirma o neurocientista Miguel Nicolelis a Inteligência Artificial não é nem inteligente (até o momento), nem artificial. Não é inteligente pois a tecnologia de que dispomos não é capaz de produzir uma mente inteligente artificialmente, nem é artificial pois são os humanos, com sua ciência, que produzem as “máquinas inteligentes”. Ao que se sabe até o momento, a inteligência não é inteiramente computável, redutível a um algorítimo. O senso comum é o produto de milênios de evolução humana e é extremamente pragmático para fins de preservar a vida humana. O senso comum não é computável. O mesmo se diga da intuição artística e da transcendência metafísica. Pelo menos em um futuro visível a inteligência artificial não pode ameaçar a inteligência natural: a primeira não tem cem anos, a segunda emergiu ao longo de milhões de anos.
A Inteligência Artificial, compreendida em seus devidos termos, é, antes, uma nova fase da revolução tecnológica, onde as máquinas “simulam comportamento inteligente”, auxiliando o homem em tarefas penosas e perigosas. A Inteligência Artificial compreendida eticamente, como nas três leis da robótica de Asimov, pode, em cooperação simbiótica com a Inteligência Natural, ser muito útil à humanidade. O real perigo da IA reside no plano político e nas relações de trabalho. A IA pode acentuar o fosso entre nações ricas e pobres, pois é nos países desenvolvidos que se concentram as pesquisas em IA e o seu desenvolvimento, com isso a IA pode se transformar em instrumento de domínio geopolítico. Nas relações de trabalho a IA pode tornar os trabalhadores ainda mais dependentes do capital, não apenas pelo fim de postos de trabalhos pois a mesma tecnologia que destrói postos cria outros, mas devido à dependência cada vez maior da mão de obra em relação à tecnologia de IA que não está sob seu controle. Por ora e em um futuro visível, a IA é uma ameaça sim: à igualdade e justiça social. Em um futuro distante de centenas ou mesmo milhares de anos, aqueles que temem a ameaça da IA podem repousar na poesia literária de Isaac Asimov e na sua lei zero da robótica: “um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal”.
ASIMOV, Isaac. Trilogia da Fundação. Trad. Fábio Fernandes e Marcelo Barbão. 2 ed.- São Paulo: Aleph, 2019.
_____________ Eu, Robô. Trad. Aline Storto Pereira. 1 ed.- São Paulo: Aleph, 2014.
LEE, Kai-Fu. Inteligência Artificial: como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos comunicamos e vivemos. Trad. Marcelo Barbão- 1 ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
WHITBY, Blay. Inteligência Artificial: um Guia para iniciantes. Trad. Claudio Blanc.-São Paulo: Madras, 2004.
FONTES DE MÍDIA ELETRÔNICA:
Entrevista com Isaac Asimov- 1988- A World of Ideas with Bill Moyers
Explorando os Três Universos de Isaac Asimov/Fundação, Robôs e Império Galáctico:
Trilogia da Fundação (Isaac Asimov) RU US/Tatiana Feltrin: