Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
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Lula, falso democratismo enfraquece a democracia
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Foto: Ricardo Stuckert – PT

O governo Lula mal começou, mas já deu algumas demonstrações de não ter aprendido com erros passados. O presidente tem feito discursos muito parecidos com os de 20 anos atrás, o que não é aceitável se avaliarmos tudo que ele e o Brasil passaram nessas duas últimas décadas.

É inegável que temos uma mudança de rota imensa em relação aos direitos humanos, respeito aos vulneráveis, busca por pluralidade, igualdade de gênero, combate a preconceitos, resgate cultural, combate à fome e à pobreza e um discurso que aponta a necessidade de reduzir a desigualdade no país.

O Brasil é um país extremamente conservador. Os preconceitos são instituições. Basta ver que a simples revogação de uma portaria do Ministério da Saúde, editada por Bolsonaro, que criminalizava o aborto após estupro, levou a CNBB a emitir uma nota dura condenando o ato. Não foi o Malafaia, nem o Edir Macedo, foram os bispos católicos, que não são tratados como radicais. 

O nosso país também é um poço de desigualdade. Embora não seja explicitamente declarado, não é demasiado afirmar que, socialmente, esta nossa sociedade concebe que a existência de miseráveis é inevitável. São muitos os exemplos que tratam a pobreza como se fosse uma opção,  uma vez que tendem a negar as raízes da  situação que mata de fome e que fere a dignidade das pessoas.

Em relação aos erros que vejo nesse início de Governo Lula, as questões que me preocupam sinalizam que, se esse for o caminho, muito pouco irá mudar no que diz respeito ao fortalecimento da democracia e  ao combate à desigualdade. Parece que mesmo depois de tantas agruras que o presidente passou, ainda não foi suficiente para rever falas e formular um discurso consistente, que sirva para estabelecer novos conceitos no país e não apenas mudanças conjunturais que sempre serão frágeis e suscetíveis às trocas de governantes.

Dois episódios marcaram os receios que citei. A reunião que Lula fez com os reitores das Universidade Federais e uma entrevista que deu à Globo News. Na primeira situação, o presidente acertou quando valorizou um setor que sofreu fortes ataques de Bolsonaro. As universidades foram marginalizadas. Foi feita uma verdadeira campanha para que fossem desacreditadas, com ataques à ciência, cortes nos recursos e distribuição de fake news sobre professores, alunos e funcionários.

Essa ação era parte do plano de alienação do bolsonarismo, que atacou todo e qualquer setor que representasse o pensamento crítico no país. Dizer aos reitores que isso não irá mais acontecer, que voltará a investir nas instituições e a ciência será valorizada era necessário. Um ato justo e acertado. Mas quando Lula resolveu falar sobre democracia nas universidades ele esqueceu que era o presidente do Brasil e voltou para o falso democratismo que foi prática nos seus dois governos anteriores.

Estou me referindo à indicação dos reitores, quando afirmou que sempre irá indicar o mais votado na lista tríplice. O meu questionamento pode parecer absurdo. Afinal, parece muito democrático um presidente afirmar que irá indicar quem teve mais votos entre professores, alunos e funcionários nas universidades federais brasileiras. Aí está, a meu ver, o erro sobre o conceito de democracia.

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Na hora que o Lula estabelece essa fala como regra, ele desconsidera que foi votado por mais de 60 milhões de brasileiros. Não existe como fracionar, tem que sempre representar a maioria da população do país e lembrar que setores do Estado não podem ser entregues a pequenas corporações privilegiadas, se isso não estiver em consonância com o voto que foi dado ao presidente. E essa regra vale para o Lula e para qualquer outro presidente que seja eleito, inclusive o Bolsonaro.

Os professores, alunos e funcionários que estão numa universidade pública não são proprietários dessas instituições. A imensa maioria da população não tem acesso às instituições do Estado Brasileiro, estão fora delas, sem oportunidade de ter um cargo público ou estudar numa escola superior federal. Mas todos pagam a conta e, sendo assim, a gestão dessas instituições deve refletir o voto que foi dado ao presidente da república e não a vontade do professor do curso de medicina, ou o aluno de direito, ou o funcionário da reitoria.

O povo votou foi no Lula e seus indicados devem refletir o voto popular. Não existe eleição para reitor, existe uma consulta entre os integrantes das universidades, para compor uma lista tríplice, que será levada ao presidente. Isso já é um privilégio, que pode ferir a vontade popular.

Mas a preocupação com essa fala do Lula é mais ampla. Porque se ele estabelece essa regra de atender às corporações, valerá também para a indicação de juízes e ministros, como também para  a Procuradoria Geral da Pública. Será que exemplos como o do Procurador Geral Rodrigo Janot, que foi indicado por ser o mais votado de uma corporação de lavajatistas, não foi um erro? Óbvio que foi. O presidente da república tem obrigação de indicar quem atende às demandas sociais da mesma forma que ele. Olha o estrago que foi feito no país, quando a Procuradoria Geral da República ficou sob o comando do mais votado, que servia a interesses de pequenos grupos e não aos do povo.

As universidades devem ter autonomia de cátedra, mas não se pode confundir democracia com soberania interna. A conta é de toda sociedade, logo, é a vontade dela que deve prevalecer. Espero que o presidente Lula repense sua fala e não incorra no erro de fazer indicações para cargos que não respeitem o voto popular.

A outra questão que me deixou preocupado foi a fala de Lula em uma entrevista a Globo News, que afirma com muita ênfase: “o empresário não ganha muito dinheiro porque ele trabalhou. Ele ganha dinheiro porque os trabalhadores dele trabalharam”. E completa fazendo um discurso em defesa do consumo como referencial de dignidade do trabalhador. 

Lula nunca teve muita clareza do que é classe. Seu discurso sempre foi sindicalista. Sendo assim, comete erros quando, de um modo pouco claro conduz à ideia de que o dono da bodega, que tem um ajudante,  seja parte da mesma classe que o dono do Itaú ou da Ambev. Na verdade, eles são de categorias distintas, não pertencem à mesma classe. O dono da bodega, da loja, do escritório e tantas outras atividades empresariais não são capitalistas. Qualquer discurso que lhes faça pensar que o são, os desloca, muitas vezes propositalmente, para que apoiem politicamente quem na verdade é seu inimigo.

É como o caso da taxação de grandes fortunas no Brasil. Quantas pessoas têm um patrimônio de mais de R$100milhões, ou até menos, R$50milhões? Qualquer um que pare para pensar, terá dificuldade em listar no seu ciclo de relacionamentos alguém que tenha tanto dinheiro.

O empreendedor, pequeno e micro, representa mais de 90% das atividades produtivas no Brasil, mas não detém as riquezas na mesma proporção. Os dez maiores grupos empresariais do Brasil é que ficam com o bolo. Logo, essa delimitação precisa ser feita de modo absolutamente fiel à realidade. O discurso político adotado pelo presidente deve ser claro o suficiente para dizer que o pequeno empreendedor não é capitalista e sua situação, também, é muito vulnerável. De outra forma, a solução que aparentemente é simples, já que são tão poucos com tanto, para tantos com tão pouco, fica destorcida e quem deveria apoiar a redução da desigualdade se comporta como grande capitalista e assume um discurso de agente da exclusão.

Ainda nessa lógica sindical, Lula volta a utilizar o consumo como referencial libertador. É óbvio que o consumo numa sociedade capitalista está relacionado ao sucesso. Mas isso não pode ser o referencial de política pública. Não podemos entrar na lógica do dublê de economista e apresentador liberal, Ricardo Amorim, que, certa vez, disse: “em Cuba só tinham três coisas que funcionavam: a segurança, a educação e a saúde”. Frase essa que também foi parodiada pelo ministro da economia de Bolsonaro, Paulo Guedes.

Certamente, o maior desafio do governo Lula é proporcionar o que realmente garante dignidade a todos, que é saúde, educação, moradia, segurança e alimentação, mas também promover distribuição suficiente que proporcione às pessoas o direito de consumir. Porém, isso não se consegue com um discurso que estabelece enfrentamento entre partes de um mesmo lado, dado que a maioria do empresariado brasileiro é formado por pequenos e micros, além de milhões de empreendedores individuais.

Um país que pensa em ser mais justo, deve ter dirigentes que percebam as armadilhas do capitalismo, sistema tão inteligente e organizado que se legitima cooptando até aos que oprime. O empreendedorismo que recebe tanto estímulo do Estado visa fazer diferentes acreditarem que são iguais. Esquecem que por mais bem-sucedido que seja a atividade empresarial praticada, se ela não detém o controle dos meios de produção e do comportamento do mercado, é só mais uma peça vulnerável, que pode ser descartada, caso não sirva mais para manter o sistema que busca sempre explorar e ampliar a desigualdade.

Para Lula atingir seus objetivos de redução da pobreza, distribuir riquezas e dar dignidade a todos, deve delimitar claramente quem é quem entre capitalistas e trabalhadores. É como no caso da fome. Se temos um setor da economia que fatura bilhões, produz o suficiente para alimentar 1,3 bilhão de pessoas, como podemos ter mais de 100 milhões de brasileiros e brasileiras que não sabem se farão as três refeições diárias? Quem ganha tanto deve entender que é parte da sua função social alimentar o povo do seu país. Logo, se não existe a possibilidade do agronegócio se transferir para outro país e é daqui que tira tudo que lhe garante a produção e competitividade mundial, não pode o Brasil ser punido pela especulação em torno do preço dos alimentos pago pelos países que não produzem.

É esse tipo de postura, que mostrará quem é quem. Não podemos achar que o agro ou qualquer outra atividade empresarial é boa para o Brasil, se a base dos seus lucros é maior em decorrência da especulação que da produção. O modelo adotado hoje no Brasil é esse, onde o produtor de soja, arroz, milho ou minério de ferro ganha mais com os movimentos especulativos que com o produto que extrai da nossa terra, do nosso país. Enquanto recebem aplausos pelos números recordes em volume de produção e venda, temos em paralelo o aumento de pessoas pedindo comida nos sinais e portas de supermercados. Esse modelo não pode estar certo. Falta quem tenha coragem de com a autoridade de um presidente dizer isso em alto e bom som.

O Lula de 2023 não pode ser o mesmo de 2003. O capitalismo de hoje é muito mais cruel. É o ambiente que faz o entregador do Ifood e o motorista do Uber acreditarem que são donos dos seus destinos e que o Estado é só um parasita que quer taxar as empresas que lhe proporcionam uma ocupação. O discurso genérico de Lula coloca o empreendedor como escudo do capitalismo, já que não consegue dizer aos milhões de pequenos e microempresários que eles não são da mesma classe que os Safra, Setubal, Marinho, Leman, Moreira Salles e outras famílias que detêm as riquezas do país.

Só teremos uma massa minimamente esclarecida, se o Governo Brasileiro tiver coragem de dar nomes aos bois e aplicar medidas que quebrem a concentração de renda. De outra forma teremos só mais um período de ampliação do consumo, com uma classe média baixa gigantesca, que servirá sempre para alimentar o grande capitalista e sem qualquer consciência de que sua condição é vulnerável pela inexistência de um Estado que tenha coragem de repartir o que os bilionários acumulam sem qualquer responsabilidade social.

Lula precisa entender que num país com quase 14 milhões de microempreendedores e 6,4 milhões de micro e pequenos empresários, o que representa mais de 99% das empresas ativas no Brasil, a solução para a distribuição de renda e construção da dignidade está em escancarar que 100 milhões de brasileiros vivem em insegurança alimentar, por conta desse 1%, que concentra toda riqueza, sem que os governantes tenham coragem de mexer nos seus ganhos. Generalizar conceitos só serve para  esconder as verdadeiras classes que existem no Brasil e os motivos reais da desigualdade.

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