Na semana que começou com o Dia dos Namorados, decidi escrever sobre meu relacionamento amoroso com terceiros, não familiar mais duradouro e bem-sucedido: a Medicina.
Existe Medicina por amor?
Partindo da ideia de que Medicina é uma profissão, uma labuta, não. Não existe profissão nenhuma por amor. Todo mundo trabalha porque precisa de dinheiro. Por amor existem hobbies, não profissões, não Medicina. Troquemos o “trabalhe com o que ama e nunca mais trabalhará na vida” por “trabalhe com o que ama e nunca mais amará algo na vida”. Greys Anatomy que me perdoe, mas romantizar rotinas exaustivas de plantões só serve para fortalecer as formas de precarização das relações de trabalho as quais os médicos são submetidos: serviços que não contratam profissionais suficientes, salários que não são justos, excesso de trabalho e carga horária e ainda uma sobrecarga de funções e obrigações que não permitem que o trabalhador médico tenha saúde mental e ou física, logo ele, o que orienta os outros a cuidarem de suas saúdes.
Além disso, muitos serviços não estabelecem vínculo com os profissionais, somos absolutamente descartáveis, não temos garantia de direitos trabalhistas mínimos como 13°, férias e aposentadoria na maioria dos serviços que temos para trabalhar. Mas você deve estar achando estranho uma médica que tem uma posição privilegiada numa sociedade de fome e pobreza como a que vivemos, “reclamando” de suas condições de trabalho, ora, tem profissionais em situações muito piores. É importante destacar que esse texto é sobre a minha percepção das coisas, o famoso lugar de fala (não gosto desse termo), me sinto mais confortável falando sobre o que vivo e vejo. Sendo assim, esse texto é ambientado no cenário da profissão médica paraibana.
O problema da sociedade é o salário dos médicos que está ruim? Não, tenho plena consciência da nossa posição de privilégio social. Apesar do nosso salário ser um dos piores do Brasil e não pagar minimamente os estresses e esforço que fazemos para cuidar da saúde de nossos pacientes, o problema não é esse. A questão é que o salário de quase todo o restante da população é muito pior. Veja por exemplo um enfermeiro que passa cinco anos fazendo um curso (apenas um ano a menos, se comparado à Medicina) e tem uma carga horária comparável a do médico. Na grande maioria das vezes o enfermeiro desempenha atividades que demandam um esforço físico/intelectual igual ou maior do que o do médico e ganha, em média, menos que ⅓ do valor do salário do médico. Qual o sentido disso? Vamos nos indignar que o salário do médico é ruim? Vamos! Mas o dos outros profissionais de saúde tem sido muito pior, de uma forma absurdamente injusta e arbitrária e isso requer ainda mais indignação!!!
Costumeiramente sinto que a medicina me adoece. Nesse cenário de ampla desvalorização dos profissionais de saúde na Paraíba, vejo pouquíssimos médicos incomodados com os salários ínfimos que o restante da equipe de trabalho recebe. Essa falta de consciência me assusta durante o trabalho em equipe.
A positividade tóxica da medicina é um veneno diário. Os coaches de si mesmos que vejo no meio médico sentem orgulho por trabalharem com carga horária excessiva e subjugam quem não o faz. Qual o orgulho de destruir sua saúde física e mental? É o sentimento de superioridade que move esses médicos? Superior por quê? A doença da Medicina é o médico que não se trata, que não questiona suas atitudes e que não raciocina para além do conhecimento técnico médico. É assim que se anula a capacidade de empatia e de desenvolver sentimentos complexos através da prática de inteligência emocional, como sentir a dor do outro mesmo quando ela não nunca será sua ou se solidarizar com as dificuldades alheias.
Assim temos médicos robôs, medicine bots. Chegam aos serviços, preenchem papéis, tratam seus pacientes com uma fórmula igual para todos, com muita frieza e comportamentos mecanicistas. Qual o orgulho em trabalhar tanto a ponto de não ter tempo para estudar política, ciência social, religião, feminismo? Qual o orgulho em trabalhar tanto a ponto de não ter tempo de qualidade para fazer nada e ficar só consigo mesmo? Não tem nada de fraqueza em respeitar os próprios limites e trabalhar em horários aceitáveis. Chamo isso de “desmedicina”, quando os médicos não cuidam de suas saúdes da forma como cobram seus pacientes que o façam. Desmédicos deles mesmos.
Cada dia mais os serviços precarizam nosso trabalho e nos fazem cobranças absurdas do tipo: se você não está conseguindo dar conta de internar 50 pacientes em um plantão, que tal a gente fazer uma reunião em que a coordenação médica do serviço te cobre mais proatividade, em vez de aumentar a escala de profissionais e entender que não se lida com gente como quem lida com números? Na Medicina, nem sempre 1+1 = 2.
Depois não sabem porque temos tido cada vez mais alta a prevalência de suicídio entre médicos, quando depressão, burnout e distúrbios de ansiedade patológica são os maiores companheiros durante as jornadas de trabalho.
A maioria dos médicos que eu conheço está com a saúde mental e ou física fragilizada (para não dizer todos). Alguns sabem, outros escondem por baixo de uma rotina que os fazem ficar dormentes, pelo menos não se dão conta do vazio existencial que cultivam. E fora da Medicina, você tá bem?
Quantos médicos que você conhece fazem atividade física regular, se alimentam bem, fazem terapia, dormem bem e todas as outras coisas que eles mesmos falam para você fazer para cuidar da sua saúde? Eu não me lembro agora de nenhum. Os médicos que eu conheço são pessoas com depressão, transtorno de ansiedade generalizada, gastrite, doença do refluxo, bursite, obesidade, hipertensão, vício em drogas ilícitas e lícitas, principalmente benzodiazepínicos, dislipidemia, diabetes, lombalgia, síndrome do intestino irritável, insônia crônica refratária, hipertensão, síndrome da apneia obstrutiva do sono, inúmeros tipos de distúrbios alérgicos e não, essa não é a descrição de efeitos colaterais de uma bula de medicamento, são efeitos colaterais contidos na bula médica. Todas essas doenças passam em algum momento pela falta de autocuidado e estresse crônico intenso.
A medicina é a doença de mim mesma
Cura e mazela
Que me mata e me perpetua
E que eu possa viver através dela.
Desde 2018 vivo uma constante inquietação com a Medicina e a criatura médica. Não me sentia médica quando me formei… me sentia verde, imatura. E era, ainda sou, estamos eternamente em processo de amadurecimento enquanto humano e enquanto médico. Será que não priorizar o desenvolvimento pessoal, a saúde mental, o ficar bem com você mesmo tem produzido bons médicos – médicos que riem da desgraça alheia, que fazem pouco caso, que se importam unicamente com o dinheiro que ganham?
Eu não quero escolher uma especialidade porque não tem atendimento de emergência e, por isso, é mais tranquila, ou porque teria menos trabalho, ou porque ganharia mais, ou porque tem uma carga horária melhor para mulheres (como se isso fizesse algum sentido), ou porque dá para atender a população fazendo uma pós-graduação de final de semana e se autointitulando especialista. É essa a motivação? É por isso que se é médico? E ajudar o próximo, ficou onde? Que vida vazia deve ser a de quem vive a medicina com essas pretensões.
Eu não quero escolher com o que vou trabalhar por esses motivos, não quero definir uma carreira de anos por modismo ou por falta de objetivo. Motivações fúteis não me encantam. A Medicina não pode ser sobre isso. Qual o impacto que você vai causar na vida das pessoas pensando desse jeito? O que o seu trabalho vai trazer para a sociedade se você só pensa nas suas próprias questões? Só vejo o bolsonarismo como resposta. O ego médico é a pior parte da medicina.
É obrigatório saber em qual área da medicina você quer se especializar logo quando se forma? Eu ainda não sei. E se eu quiser ir com calma e focar na minha saúde mental primeiro? Em gostar e ter orgulho de mim enquanto pessoa? Sou menos médica por isso? Ou menos competente? Há quem ache, eu não. A maioria dos médicos que conheço entrou em piloto automático desde que se formou: trocou de carro, engravidou, casou. Ok, esse é um caminho possível, mas e se eu quiser fazer um caminho diferente? Não tem espaço?
O piloto automático do médico parece que o leva a um lugar de raiva. Conheço incontáveis profissionais do Sistema Público de Saúde que trabalham com raiva, odeiam o SUS, acham que o SUS é uma bagunça e não serve para nada. É comum escutar comentários assim entre os colegas médicos. Em geral esses médicos pensam assim justamente porque são robôs, entraram no piloto automático da medicina e não pararam para pensar em política, saúde pública e suas próprias funções sociais dentro do SUS.
Esses mesmos médicos que odeiam o SUS e desejam que ele acabe não entendem e nem procuram entender os fluxos do sistema, esquecem que foram vacinados durante suas vidas inteiras via SUS, de graça. De graça? De graça não! O problema do SUS é quem acha que não estamos pagando pelos seus serviços, todos nós pagamos continuamente. O SUS não é de graça, não é bagunça, é um tesouro do nosso país e é muito triste que tenhamos médicos que não entendam isso e disseminem fake news sobre ele. O médico analfabeto funcional social, e nesse caso a palavra analfabeto está sendo usada como uma ofensa. Não é que a meritocracia usurpou dessa pessoa a oportunidade de acesso ao conhecimento, ao contrário, a meritocracia deu a essa pessoa tanto acesso à educação, logo ao poder, que ela preferiu usar de forma seletiva em benefício próprio, apenas.
A Medicina deveria ser exercida como uma das linguagens do amor (atos de serviço) quando você direciona seu amor ao outro, exatamente como em um relacionamento amoroso romântico. Não se deveria amar a Medicina (ou apenas ela), mas a quem você a direciona. Em um relacionamento amoroso romântico você nem sempre ama a relação, você ama a outra pessoa e segue mesmo com as dificuldades e desentendimentos pela pessoa, não necessariamente pela relação. Assim é a linguagem do amor na Medicina. Dizer que é Medicina por amor parece que deturpa o objetivo final da coisa: o amor ao próximo e parece que você ama apenas a Medicina em si, o status social de ser médico e talvez para alguns seja exatamente a isso que direcionam seu o amor. Mas na Medicina, independente de religião, o amor é ao próximo.
Me sigam no insta @priscilawerton para mais reflexões sobre a Medicina e o amor.
Até.