Mãe, mulher, jornalista e repórter da TV Câmara de João Pessoa. Escritora de crônicas nunca publicadas.
Mãe, mulher, jornalista e repórter da TV Câmara de João Pessoa. Escritora de crônicas nunca publicadas.
Menina, amanhã de manhã
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Com 36 anos eu me separei. Uma filha, emprego, 9 anos de análise, alguma autoestima, alguma insegurança e uma cicatriz em cada perna. Sabia que não acreditava em avião, mas acreditava em disco voador; e que reunião de pais só com fone de ouvido, de preferência um headphone, que é pra não ouvir nem o meu inconsciente.

Já sabia que não daria mais tempo de virar noites em Sónar, nem escalar o Villarrica – tem coisas que se você não faz no tempo certo só resolve com tatuagem.

Com 36 anos eu voltei a pagar meu aluguel sozinha, minha conta de luz, água e comprei quatro cadeiras de jantar – em 12 vezes. Eu ainda não sabia que sentar na cadeira que você mesma comprou poderia dar tanto prazer a um sanduíche de frango. Talvez por isso tenha demorado tanto pra comprar a mesa para o apartamento na Rua Marechal Hermes, comendo no chão e depois na cadeira, diante de uma janela, por quase seis meses – os budistas sabem tudo.

Com 36 anos eu me dei conta que não tinha mais minha mãe pra discutir com ela, e que não era com ela que eu resolveria os falos da infância. “Não tenho mais minha mãe”. Repito isso de vez em quando pra mim mesma.

Com 36 anos deixei pra trás uma casa onde fui feliz por 9 anos, quer dizer, quase feliz. “A felicidade é um desejo insaciável” – não foi Nietzsche quem disse isso?

Foi onde vi minha filha pronunciar aos 23 meses as primeiras palavras, dançar com o musical Frozen, gritar “gol!” e chorar com aquele 7 a 1 da Alemanha. Ela ficava feliz quando juntava nós três, de manhã, com caras de sono, pra ir à praia. Tava acabando.

Com 36 anos e em carne viva por ter desfeito aquela família. Eu não sabia que hoje, um ano depois, estaríamos distantes no almoço de domingo e que sobreviveríamos, os três, a uma angústia que parecia não ter fundo. Eu também não sabia que pensaria em casar de novo, ter outro filho, e que a gente pode ser par desfeito, mas ímpar desfeito tem mais a ver. Meu anticomputador, coitado, é mesmo um sentimental.

Com 36 anos eu descobri que todos os homens com quem eu me envolvi dos 20 aos 29 anos não me dariam tesão hoje. Que o jogo de poder, fantasiado por mim, talvez tenha perdido a graça. Entendi que preciso da interlocução pra sobrevivência da minha espécie e que Nietzsche mais uma vez tinha razão quando disse que devemos escolher pra casar alguém com quem possamos conversar.

Com 36 anos eu me vi um Ser atravessado pela linguagem. Descobri que neurotizo o sexo, que toda vez que alguém se aproxima, inconsciente e subitamente me afasto com medo de que todos os meus gatilhos sejam desvendados.

Com 36 anos descobri que eu tenho o botão do cinismos para além do meu controle. E que Solta é o verbo. Solta.

Com 36 anos eu não sabia que o mundo viveria no modo zoom, que mandar nudes seria como mandar vinho ou flores, que eu seria incapaz de me entregar à nenhuma série, atividade que só exige ficar na horizontal. Eu não sabia que sentiria medo, angústia e que choraria diante do Jornal Nacional.

Com 36 anos eu senti o cansaço dos nove minutos de George Floyd. Vi, não surpresa, uma pequena ilha com 11 milhões de habitantes não amargar as consequências da pandemia do coronavírus. E ouvi um líder dizer que a terra é redonda, sim.

Com 36 anos eu não sabia que perder mãe, irmã e separar eram três categorias peso pesado e que eu seria nocauteada aqui no meu tatame.

Com 36 anos eu escutava Céu, Caetano, Belchior e George Harrison– tudo ao mesmo tempo.

Com 36 anos eu tinha os desenhos de Lis, e tinha ela feliz a qualquer hora do dia. Não tinha Clarice nem Bob, não tinha isolamento social. Tinha o cigarro, que agora é o celular, e tinha o Gregório Duvivier cantando aquela música do Tom Zé “menina amanhã de manhã quero te dizer que a felicidade vai, desabar sobre os homens, vai, desabar sobre os homens”. Eu também, Tom, quero que a felicidade desabe sobre os homens.

Com 36 anos tinha medo e coragem, tinha horizontes e despedidas, tudo sendo bom e ruim ao mesmo tempo. Era aceitável não ser mais tão jovem e desagradável também não ser.

Com 36 anos eu não sabia que continuaria sem saber como fazer pra não ter medo de dizer.

De repente 37. Ainda não sei. Ainda bem.

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