Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
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Não à educação para o empreendedorismo
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Luciano Huck resolveu palpitar sobre o ensino médio: “O Novo Ensino Médio deveria estar acima de diferenças ideológicas. Mesmo com difícil implementação, não faz sentido retroceder à estaca zero. O esforço para oferecer uma escola mais atrativa para os alunos e conectada com as suas expectativas de vida e carreira deve ser permanente”.

Alguém poderá perguntar qual a justificativa para discutir as declarações de um palpiteiro. Ora, trata-se de um defensor ferrenho do empreendedorismo, cujo programa, no maior canal de televisão do Brasil, é visto semanalmente, aos domingos, no horário em que a maioria dos trabalhadores está em casa. Em posição contrária à de especialistas da educação e a milhares de estudantes submetidos ao pacote que consideramos formação para o empreendedorismo, o apresentador defende que rever o que está posto seria retroceder à estaca zero. Seguindo a lógica habermasiana, ele se vale de uma linguagem que tende ao convencimento da maioria. Espertamente, convoca os seus seguidores a pensar como ele, fundado numa inverdade, facilmente incorporada como verdade, qual seja: colocar-se “acima das diferenças ideológicas”.

(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

O curto texto escrito pelo palpiteiro serviria de referência para discutirmos os conteúdos de algumas disciplinas que estão sendo tratadas como supérfluas. Especificamente, duas palavras sobressaem naquele discurso: retrocesso e ideologia. Supostamente, ao ser revista, a educação estaria retrocedendo à estaca zero. E, ao mesmo tempo, os discordantes são acusados de estarem sendo movidos por uma determinada Ideologia.

Qual seria o marco zero apontado?

Ideologia é só o pensamento da esquerda?

Dir-se-ia que a ignorância fomentada pelo currículo em questão é também o farol com o qual se quer iluminar (ou tornar nebuloso) o pensamento da população. A nosso ver, uma manipulação bastante prejudicial, uma vez que no centro dessa discussão está o futuro de uma geração.

Considerando que estamos numa sociedade capitalista, portanto regida pelo liberalismo, podemos dizer que o retrocesso referido corresponde tão somente a mantermo-nos no lugar de onde, com pequenas e rápidas oscilações, nunca saímos. Nessa trilha, diríamos aos menos avisados que o ensino proposto e advogado por essas figuras que seguem à risca o caminho traçado pelo senhor mercado não traz a novidade pela qual querem nos convencer. Mudar pela semântica nunca mudou a realidade. Muito poderíamos dizer sobre o empreendedorismo, mas vamos apenas afirmar que o trabalho informal, quando chamado por esse nome pomposo, não exclui as características do trabalho precarizado. E sobre o ensino que se quer manter, diríamos que só se distingue do liberalismo de Adam Smith na maquiagem que o mercado atual requer, e, pior, este consegue, em alguns aspectos importantes, ser ainda mais atrasado do que o que se defendeu à época.

Adam Smith, tido como o pai do liberalismo, vocês sabem, é um dos mais importantes economistas da história. É possível provar, através do seu pensamento, que a educação que se quer oferecer aos filhos dos trabalhadores está na cartilha do liberalismo desde o século XVIII. Contudo, há que se demarcar uma diferença importante entre o liberalismo de Smith e o que temos hoje. Smith declarava sem rodeios como devia ser a educação para o trabalhador − a gente comum, como ele chamava. Ali não estavam incluídos os filhos da elite. Se houvesse essa honestidade no discurso atual, o debate seria feito em outras bases. Mas não, defende-se um determinado currículo, aparentemente único, para pertencentes a classes sociais distintas cujas condições objetivas, para além do objetivo implícito, são permeadas pelos limites da escola pública.

Bem, vamos às falas do Smith1. Quem leu Riqueza das Nações vai lembrar. Quem não leu, ainda é tempo. Vocês hão de concordar que aquele liberal não sentia vergonha das suas ideias. Sim, ele não precisava mascarar a sua ideologia. Não por acaso a mesma que os atuais envergonhados tentam esconder, sob uma inexistente neutralidade. Com todas as letras, Smith escreveu:

Mas embora a gente comum não possa, em qualquer sociedade civilizada, ter tão boa instrução como as pessoas de posição e fortuna, contudo as partes fundamentais da educação, ler, escrever e contar, devem ser cedo adquiridas na vida das pessoas, de tal modo que a grande parte até das pessoas que se destinam às ocupações mais inferiores, tenham tempo de as adquirir antes que tenham de se empregar nessas ocupações. Com uma despesa bastante reduzida o público pode facilitar, encorajar, e mesmo impor a necessidade da aquisição dessas partes mais essenciais da educação ao conjunto das pessoas. (Idem, p. 421)

Fiel ao pensamento liberal, ele não propunha que os filhos da classe trabalhadora estudassem filosofia ou tivessem acesso à musica clássica, mas entendia que precisavam “ler, escrever e contar”, o que já parece demasiado aos apologetas do empreendedorismo. Nesse sentido, sugeria:

O público pode fazê-lo através da criação em cada paróquia ou distrito de uma pequena escola, onde as crianças possam ser ensinadas através de um pagamento tão reduzido, que até o trabalhador comum o possa suportar; o mestre será em parte, mas não totalmente pago pelo público, porque se fosse totalmente ou em sua grande parte pago por ele, depressa aprenderia a negligenciar a sua actividade. (p. 421)

Não passa despercebida a conotação dada ao serviço público, também nossa velha conhecida. Sobre isso, uma passagem smithiana é elucidativa do pensamento liberal:

Não há instituições públicas para a educação das mulheres e, por essa razão, nada há de inútil, absurdo ou excêntrico no curso normal da sua educação. É-lhes ensinado aquilo que os seus pais e tutores julgam necessário ou útil à sua educação, e nada mais. (p. 416)

Numa só tacada o autor desqualifica as instituições públicas e a capacidade de escolha das mulheres. Ainda assim, insistimos que a proposta atual é pior que aquela. Deve ser por fatos como esse que alguns autores passaram a usar o termo ultraliberalismo para se referir ao encaminhamento da economia contemporânea. Convenhamos que ler, escrever e contar requerem, no mínimo, conhecimento de português e de matemática, o que não tem sido devidamente ofertado. Talvez o atual currículo possa ser explicado por certas demandas do mercado. À medida que se desenvolvem as tecnologias de informação e comunicação, muitos componentes de uma profissão podem ser rotinizados. Com isso, as perguntas rotineiras são respondidas automaticamente, donde se deduz que a exigência por conhecimento tem sido reduzida, o que pode explicar a demanda por trabalhadores de mais baixa qualificação. Se o nosso raciocínio estiver correto, o currículo “empreendedor” é compatível com essa realidade e não deixa de significar uma economia, tanto para a educação pública quanto para uma parte da educação privada, uma vez que, na maioria das escolas, a exigência por professores é rebaixada e os salários acompanham essa tendência.

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Esquecemos a ideologia? Não, de forma alguma. Toda esta conversa é um confronto de ideologias. Grosso modo, ideologizar está em conformidade com a nossa posição no mundo. Neste, malgrado os questionamentos atuais acerca das classes, entendemos que as fundamentais – capitalistas e trabalhadores – permanecem. Por escolha ou por ignorância, sempre nos colocamos em um desses dois lados. Pela lógica, trabalhadores estariam ideologicamente à esquerda e capitalistas à direita. Mas não é bem assim. A classe dominante tem o poder de disseminar as suas ideias, o que as legitima universalmente, inclusive entre os oprimidos, dado que muitos nem se dão conta das relações nas quais se origina a opressão.

Certamente, enquanto se faz essa discussão nas hordas do capital, há trabalhadores a embarcar no discurso de que a ideologia de esquerda está lutando para fazer a educação retroceder à estaca zero, quando o que se quer é exatamente o contrário. Garantir que os filhos da classe trabalhadora desenvolvam a sua capacidade de pensar não é um retrocesso, mas um avanço contra o qual a classe dominante é incapaz de ceder. Lembremos, por exemplo, como as cotas raciais são combatidas, apesar de ninguém desconhecer a exclusão imposta às populações negras e indígenas ao longo da história do Brasil.

A essa altura, seria procedente trazer Marx para abrilhantar o nosso debate, mas não vou fazer isso. Melhor combater a direita com o seu próprio veneno. Fiel ao propósito de demonstrar que o ensino médio voltado ao empreendedorismo é só a tentativa de executar uma pena a que estão condenados os trabalhadores desde o início do capitalismo, insistimos em afirmar que o liberalismo do século XVIII – que não era melhor, mas apenas sintonizado ao momento histórico – tornou-se ainda pior neste século XXI. E os palpiteiros liberais sabem disso, tanto que têm vergonha de explicitar o que pensam, daí por que fingem estar do lado dos trabalhadores, aproveitando-se dos espaços midiáticos, para confundir e ampliar seguidores. Mas até um liberal, se honesto, sabe – Smith sabia – das consequências sociais da ausência de educação ou de uma educação direcionada a reduzir as faculdades intelectuais.

Um homem sem o uso pleno das faculdades intelectuais que lhe são próprias é, pode dizer-se, mais desprezível do que mesmo um cobarde, e parece estar mutilado e deformado numa parte ainda mais essencial do carácter da natureza humana. Mesmo que o Estado não viesse a tirar qualquer vantagem das camadas inferiores do povo, deveria mesmo assim interessar-se por que não fossem completamente ignorantes. O Estado, contudo, não deixa de recolher consideráveis vantagens na sua instrução. Quanto mais instruídos forem, menos sujeitos estão aos enganos do entusiasmo e da superstição, que entre as nações ignorantes frequentemente ocasionam as mais terríveis desordens. (Idem, p. 425).

Pensemos, enquanto nos é dada essa possibilidade. Não é justo que pactuemos com a nossa própria condenação.

1 Todas as falas podem ser encontradas em “Riqueza das Nações”, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

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novo ensino médio