Por Maria Augusta Tavares (Guga)*
Escrever é o meu modo de resistir, de dizer que estou viva e de atestar, quando tenho retorno, que o leitor também está. Escrever sobre a realidade, tomando o trabalho como objeto central é a minha forma de dizer que tenho esperança no futuro, que o mundo não vai acabar e que, portanto, é imprescindível que falemos sobre esse elemento, sem o qual nenhuma sociedade sobrevive: o trabalho.
O trabalho é eterna necessidade, defende o velho Marx e todos os marxistas. Mas, você, liberal convicto, antimarxista, arriscar-se-ia a afirmar que é possível viver sem trabalho? Não têm sido poucas as tentativas de se teorizar sobre o fim do trabalho. Nesse sentido, o neoliberalismo estreitou a relação capital/Estado e, mais unidos que antes, investem em políticas que permitam esconder o trabalho, sem deixar de usar os trabalhadores.
À semelhança daquele general que tentou esconder os mortos por Covid-19, o capitalismo quer obscurecer o trabalho, mascará-lo, negar a sua existência. Mas nem o trabalho nem os mortos podem ser jogados embaixo do tapete, como se fossem lixo. Tentativa vã, porque nem o maior tapete do mundo, com aproximadamente 5.624 metros quadrados, que fica na Mesquita de mármore de Abu Dhabi, se prestaria a esse falseamento da realidade. Aquele tapete, que se inicia pelo design do artista iraquiano Ali Khaliqi, precisou de 38 toneladas de algodão e lã e do trabalho de 1200 tecelãs da Província de Khorasan, cuja produção durou um ano e meio. Embora a natureza do trabalho não seja exatamente a mesma, trabalharam o artista, as tecelãs, os que plantaram e colheram o algodão e, ainda, os que teceram a lã.
Alguém poderá dizer que no afã de defender o trabalho eu fui buscar um exemplo fora da realidade, por ser, predominantemente, trabalho manual e artesanal. A sociedade do século XXI tende à exclusão de atividades com essas características. Para muitos, artesanato é coisa do passado. Afora uns poucos desajustados sociais que se recusam a viver o tempo presente, a maioria da população, mundialmente, incorporou a tecnologia, a microeletrônica, as relações de produção capazes de serem executadas virtualmente. Portanto, para ser realista, convém que se fale do desenvolvimento tecnológico.
É inegável que a máquina reduz trabalho vivo. Ninguém tem dúvida que o desenvolvimento capitalista está a reduzir a quantidade de postos de trabalho, mas isso não serve como justificativa para se afirmar o fim do trabalho. Sobretudo, depois da pandemia que o mundo está a enfrentar, torna-se muito difícil negar a centralidade do trabalho. Será que alguém tem dúvida que o trabalho é uma eterna necessidade? Ou será que essa negação é mais uma atitude oportunista para favorecer o capitalismo?
Espertamente, quando nem se registra ainda o desaceleramento da curva de contágio do covid-19, os empregadores, na sua maioria, estão a apelar para as necessidades dos trabalhadores, como se isso importasse. Por trás dessa aparente preocupação com a sobrevivência dos trabalhadores, os empresários estão, de fato, aflitos, em face da redução do capital. Ora, se o trabalho não fosse necessário, eles fechavam as portas, paravam as máquinas e esperavam pacientemente que o coronavírus lhes devolvesse o comando. Mas, não. Estão a exigir que a atividade econômica tenha prosseguimento, mesmo sabendo que muitas vidas serão colocadas em risco. Mas, para não admitir a imprescindibilidade do trabalho, esses empregadores insistem em atribuir ao emprego a conotação de uma dádiva, como se estivessem a fazer um favor aos trabalhadores. Na sua infinita bondade, há empresários que propõem a não contratação de trabalhadores que assumam a sua condição de classe, o que equivale a pensar pela esquerda. Nesse sentido, a recomendação é consultar as redes sociais dos candidatos a emprego, para saber qual a ideologia que os orienta. Desse ponto de vista, o trabalhador que pensa como trabalhador, não é patriota, uma vez que o seu foco em lugar de ser os deveres são os direitos. Note-se: o direito é o X da questão.
A pandemia não deixa nenhuma dúvida sobre a necessidade do trabalho. Há trabalhos essenciais e trabalhos acessórios? Como verificamos, essa classificação não resistiu às determinações capitalistas. É preciso produzir mercadorias, é preciso fazer circular as mercadorias, é preciso convencer as pessoas a consumir as mercadorias produzidas. Essa história de trabalho essencial acaba por indicar que muitos produtos são acessórios, o que não agrada em nada o capitalismo. Tampouco ao Estado, pois além de ter o recolhimento de impostos reduzidos, vê-se obrigado a devolver em benefícios ao trabalhador – mesmo que minimamente – o que consubstancia a sua fonte de riqueza.
Se estamos de acordo, não se pode prescindir do trabalho. Seja você liberal ou marxista, vai concordar que o trabalho é necessário. Mas, o custo variável da produção inclui, além do salário, a proteção social ao trabalhador. Ora, isso é demais, pensa o (neo)liberal. Desse modo, ignora que trabalhadores adoecem, que trabalhadores cansam, que trabalhadores envelhecem. Portanto, não basta receber o salário, principalmente porque este é sempre insuficiente. Para a maioria da população, o salário não atende nem às necessidades básicas. Então, os direitos do trabalho são a única garantia que têm os trabalhadores de não serem reduzidos à mendicância, quando não conseguirem vender a sua força de trabalho. Parece óbvio, não? Mas não é o que pensam os neoliberais. Estes querem usufruir da força de trabalho que seja necessária à acumulação capitalista, desresponsabilizando-se pelos odiáveis direitos, que esses trabalhadores “comunistas” reivindicam.
O que faz o Estado? Apoia os trabalhadores na sua reivindicação por direitos? Não. Há governos, como é o caso do Brasil, cujo presidente diz textualmente: o brasileiro terá que escolher entre direitos e emprego. Mas, para ser fiel às leis trabalhistas, emprego e direitos são indissociáveis. Como solucionar esse impasse? Simples. Basta transformar os trabalhadores em empresa. É o que tem feito o Estado em favor do capital, portanto em desfavor dos trabalhadores, embora muitos não percebam.
Isso explica o porquê de tantas campanhas a promoverem o empreendedorismo. O empregador precisa da costureira, do motoboy, do motorista, do digitador, do cabelereiro etc. Se os empregasse, teria custos maiores, certamente. Entre o salário por tempo e o salário por peça, se ambos são legais, é claro que o empregador vai optar pelo que lhe garanta maiores lucros. Interpelar o empregador seria perda de tempo, porque de nada adianta exigir consciência a quem tem como fim precípuo ganhar dinheiro. Seria o caso, então, de questionar o Estado, a partir dos direitos fundamentais dos quais o mesmo é signatário, porque ao decretar a morte do emprego numa sociedade que não deixou de ser capitalista, milhões de trabalhadores estão sendo condenados, uns a morrer precocemente e outros a envelhecer como desvalidos.
*Professora aposentada do DSS da UFPB e Pesquisadora Integrada ao IHC da Universidade Nova de Lisboa