Arrancou sozinho nas costas dos defensores. Eram só o atacante e o goleiro, cara a cara, numa posição que ele não costuma perder. Olhando para trás, o time adversário já contava com o gol feito, e a partir dali teriam que correr mais para recuperar o prejuízo. O improvável aconteceu. Aquele lance ficaria marcado na história pelo feito perdido, em vez do mérito de quem se adiantou a fechou o ângulo. A narrativa costuma evidenciar os protagonistas. Da mesma forma, minutos depois, ele perdeu outro lance onde teve a oportunidade de chutar direto ou cruzar para um companheiro. Não fez nem uma coisa, nem outra.
O duelo de Neymar na conquista da classificação do PSG para as semifinais da Liga dos Campeões se desenhava para o fracasso. Do outro lado estava um Atalanta bem encaixado e extremamente motivado. Parecia que o craque brasileiro estava zicado, e ficaria marcado naquele dia pelos gols perdidos. E após o gol da equipe italiana, o resultado era ainda mais pragmático.
A memória vista apenas a partir de um punhado de números seria extremamente injusta. Quem assistiu ao jogo pôde ver o quanto Neymar era o melhor em campo independentemente do resultado, com toques desconcertantes, passando vez por outra no meio de dois adversários, chutando direto e também deixando companheiros na cara do gol. Era Neymar e mais 10, mas, sozinho, ninguém ganha em esportes coletivos.
Uma mudança completa no ataque e o time francês foi outro do meio pro fim com a entrada de Mbappé, Draxler e Choupo-Moting. Neymar seguiu em alto nível até o apito final e participou dos dois gols do PSG. No segundo, especialmente, com um passe de gênio para Mbappé. Um passe daqueles, meus amigos, não é sorte. E por mais contestado que seja fora de campo, dentro das quatro linhas ele está entre os melhores do mundo.
Nas redes sociais, o nome de Neymar foi o mais comentado desde a manhã da quarta-feira (12) até o final da partida. Como tudo no Brasil, há política e polarização envolvidas, e em torno de Neymar não seria diferente. No Twitter, uma verdadeira guerra digital foi travada entre os defensores do jogador pedindo o modelo moicano no cabelo e caixa de som nas mãos, aquele jogador moleque que só não fazia chover quando entrava em campo vestindo a camisa do Santos.
Na oposição ao craque brasileiro, os militantes de plantão aproveitaram para levantar o histórico bolsonarista de Neymar com diversas fotos dele ao lado do presidente Jair Bolsonaro e seus filhos.
Bolsonaro: “Hoje todos brasileiros estarão juntos comigo na torcida pelo Neymar.” Disparou. #NeymarDeMoicanoNaChampions #neyday pic.twitter.com/7kiW50cCaL
— ESPN BR (de 🏠) (@ESPNAMBR) August 12, 2020
BOLSOKID, BOLSONARO, ADULTO NEYMAR E NEYMARZINHO EM MAIS UM ENCONTRO#NeyNaro #BolsoNey pic.twitter.com/INfHGHQVDr
— MULA LIVRE 🐴 (@OLulaEstaPreso) August 12, 2020
Neymar dificilmente será um Sócrates, que usou sua voz para combater injustiças sociais. Assim como também fazem até hoje Casagrande e Raí, e se tornaram ícones do esporte, lembrados também por sua postura antifascista. Esperar de um jogador mais do que ele pode entregar é injusto. E diante de uma atual cultura de cancelamento, o público busca erros do passado para inviabilizar tudo o que a pessoa pode vir a fazer. É um erro contra Neymar, e contra todos os que ajudaram de alguma forma a eleger Bolsonaro. Vale condenar quem, apesar deste desgoverno, se mantém como defensor do presidente.
É na discussão que se viabiliza a mudança, e se for mantida a polarização, tudo fica como está. Para a retomada de um governo progressista, acolher em vez de atacar quem fez a opção pelo atual presidente e percebeu que não foi uma boa escolha é imprescindível. Neymar pode continuar a ser bolsonarista, pode assumir uma postura antifascista, ou pode até não querer mais sequer tirar fotos com políticos. Se a sociedade quer cobrar algo dele, que sejam os R$ 188 milhões devidos à Receita Federal. Atirar pedras por conta de um voto passado não ajuda a construir um futuro melhor.
Texto publicado na edição de 14.08.2020 do jornal A União