Jornalista, internacionalista e empreendedora.
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O aniversário é do crime e quem ganha o presente é o criminoso
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(Foto: Klops.ru/Wikimedia Commons)

E lá se foram dois anos do dia em que a tela do meu whatsapp pessoal apareceu na projeção de uma reunião do trabalho, para minha surpresa e também do criminoso descuidado. “Comemoro” este aniversário de celular hackeado com a certeza de que o presente não é meu, mas do responsável pelo crime; e o presente é a impunidade.

Lembro daquele dia como se fosse hoje. Uma reunião comum com um grupo de trabalho para o Planejamento Estratégico da Autarquia. A consultora conduzia a pauta quando, por uma fração de segundos, vi a tela do meu whatsapp no projetor. Duvidei do que vi, mas a colega ao meu lado também identificou. Com o coração acelerado, tive a certeza do que eu e minhas companheiras de trabalho já vínhamos suspeitando há um tempo: éramos monitoradas, não apenas nos dispositivos corporativos, mas nos nossos pessoais.

A atitude do colega que apressou-se em tentar esconder o celular com o braço enquanto dedilhava o aparelho em códigos e mais códigos de informática, seguidos por um “tá tudo bem, Grazi?” do nada (sem que eu tivesse sequer aberto a minha boca, dirigido-lhe a palavra ou esboçado qualquer reação) referendaram a suspeita do responsável – de um dos.

Foram anos suspeitando que a nossa vida digital havia sido invadida, com fatos estranhos e coincidências difíceis de ignorar, debatíamos o assunto, mas nunca tivemos confirmação concreta, até aquele dia. Eu sempre evitei ter informações sensíveis no celular, mas sabe como é, a nossa vida está quase toda nesse aparelho. Na minha mente, me torturava a foto dos meus seios, enviada um mês antes pelo meu médico, antes da cirurgia que eu fizera. Mas tortura mesmo foi tudo que vivi sendo uma mulher jovem, inteligente e bonita ocupando um cargo ansiado por homens.

Eu fazia parte de um grupo pequeno de mulheres, que integrava o alto escalão da Autarquia. Comprometidas com o trabalho, competentes, proativas e detentoras da confiança do presidente, incomodamos. Antes de qualquer coisa, por sermos mulheres. Por ocuparmos, com excelência, o espaço que outrora pertenceu a um grupo de sanguessugas, que pouco ou nada fizeram em beneficio do órgão, e que desejavam prestígio, mas sem trabalho e sem responsabilidades.

Nós, mulheres, nunca somos bem-vindas, se atrapalhamos o status quo masculino, se subvertemos a ordem. Para eles, nosso lugar nunca é o da tomada de decisão, o do poder. Para eles, nos cabe a subserviência, a execução das ordens, a satisfação dos seus desejos. Servimos para fazermos com que se sintam seguros, poderosos. E, na verdade, é o que eles são: inseguros, dominados pela frágil masculinidade, que lhes parece ameaçada ao menor sinal de uma mulher que não se sujeita a eles e ao sistema que os beneficia.

Vimos, então, um grupo, ou melhor, uma quadrilha, que não tinha coragem de revelar-se; que, como ratos, agiam na escuridão do esgoto, tramando o mal e executando em silêncio cada uma das violências que vivemos. Monstros disfarçados de colegas de trabalho; criminosos que nos sorriam, mas viviam nos boicotando pelas costas. Covardes que ocupavam seu tempo para dificultar o nosso trabalho e nunca fazer o seu.

Eles sabem que são. Nós sabemos quem eles são. Mas há uma cortina de fumaça que os protege. Há um poder invisível que os legitima. E que nos massacra.

Sei que você quer saber se eu não fiz nada a respeito do assunto. E, bem, assim como no caso da importunação sexual (confira a minha primeira coluna), eu busquei todos os meios possíveis, administrativos e policiais, mas até hoje, prevalece a impunidade.

Os crimes digitais são difíceis de provar, dizem eles. Mas difícil mesmo é conviver com as micro e macro violências que vão minando nosso bem-estar, que vão nos privando de sermos quem somos em plenitude, que querem nos fazer acreditar que esses lugares realmente não nos pertencem. Eu saí. Eu não aguentei. As minhas colegas permanecem. Por lá, nada mudou. E como mudaria, se há a certeza da impunidade?

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